PEC da Anistia e o cinismo dos partidos políticos

Foto: Gui Mohallem/ instagram @gui.mohallem

Evorah Cardoso

Hannah Maruci

Mulheres são 51% e pessoas negras são 56% da população brasileira, mas ocupam, respectivamente, 16% e 43% de todos os cargos eletivos no país. Temos direito a votar e a ser votados, mas com campanhas eleitorais subfinanciadas e sem visibilidade. Conquistamos ações afirmativas para corrigir a desigualdade na representação política – no Judiciário e no Legislativo – mas os partidos sempre resistem em cumpri-las. Vivemos em uma democracia, se o sistema político exclui mais da metade da população dos espaços de poder?

A última prorrogação da democracia é a PEC 9/23, apelidada pelos movimentos sociais de PEC da Anistia, em que os partidos buscam “perdão” por não cumprir  o repasse de verbas para candidaturas de mulheres e pessoas negras, previsto na Constituição desde 2022.

Levantamento feito pela Tenda das Candidatas mostra que essa pode ser a quarta anistia concedida pelo Congresso aos partidos que não cumprem políticas de ações afirmativas de gênero e raça. Assim, ao contrário de uma ação pontual, vemos que se trata de uma dinâmica sistêmica, que contribui para a narrativa de que tudo bem não cumprir as cotas, pois não há consequências.

Nunca tivemos no Brasil uma eleição com as mesmas regras da anterior. A prática já institucionalizada de “mini” reformas políticas em todo ano ímpar poderia ser utilizada de forma positiva. Se esses momentos fossem aproveitados para balanços sobre as regras eleitorais e sobre como aprimorá-las de modo a produzir um sistema mais democrático e, portanto, representativo, com certeza teríamos hoje um cenário menos deplorável no que diz respeito à sub-representação de mulheres, negros, indígenas e LGBT+.

No entanto, as regras, principalmente as que inserem ações afirmativas, não contam nem com o tempo hábil de serem testadas antes de serem totalmente deslegitimadas e desmoralizadas por “perdões” aos partidos políticos que foram incapazes de adaptar suas estruturas machistas, racistas e LGBT+fóbicas às leis que buscam reverter esse cenário.

Se os partidos sempre puderem se autoanistiar, quando chegará a democracia? Quando os partidos políticos colocarão as cotas de financiamento como prioridade, se sempre puderem contar com uma possível anistia? Da direita à esquerda, legendas que defendem a PEC 9/23 não se constrangem em legislar em causa própria sobre um assunto que diz respeito a cerca de 40 milhões de reais de recursos públicos desviados da sua destinação constitucional. Também não se constrangem os partidos que historicamente levantam bandeiras e constroem uma retórica a favor da participação de mulheres e pessoas negras na política e contam com seu apoio e seus votos.

A PEC da Anistia foi aprovada no dia 16 de maio deste ano pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados. Dos 55 parlamentares que votaram, apenas 10 foram contrários à sua admissibilidade. Embora esteja no começo de sua tramitação – ainda vai passar por comissão especial e plenário da Câmara. Em seguida, se aprovada, seguirá para o Senado, – já é possível atestar o cinismo político de boa parte dos parlamentares e dos partidos que votaram para que ela pudesse começar.

Dos 45 parlamentares que votaram a favor da PEC da Anistia, 21 entraram em aparente contradição, pois no ano anterior votaram a favor de considerar o repasse de recursos a candidaturas de mulheres e pessoas negras como parte da Constituição (Emenda Constitucional 117/22).

Por que fizeram isso? Talvez porque estivessem menos interessados, à época, em reduzir a desigualdade na representação política e mais interessados em garantir mais uma autoanistia de todos os repasses não feitos até ali, medida incluída na mesma emenda constitucional. Contradição ainda maior é a de 8 desses parlamentares, que em 2015 chegaram a votar a favor de uma proposta que reservava um mínimo de cadeiras para mulheres na Câmara dos Deputados (PEC 182/07, não aprovada).

A anistia que se discute em 2023, amplamente defendida pela maioria dos partidos, é danosa não apenas para mulheres e negros, mas para todos os grupos minorizados na política. Seja porque esses outros grupos também têm como horizonte de luta trilhar os mesmos caminhos dos movimentos negro e de mulheres em prol do reconhecimento de ações afirmativas na política, seja porque estas ações afirmativas já beneficiam outros grupos minorizados que se interseccionam com o de mulheres e negros na política. É o caso das candidaturas LGBT+ de mulheres e negros.

As LGBT+ são o grupo social mais sub-representado na política, pois ocupam apenas 0,16% de todos os cargos eletivos do país, embora estudos revelem que constituem entre 9% e 12% da população brasileira. Diante da ausência de ações afirmativas para LGBT+ na política, são as ações afirmativas para mulheres e pessoas negras que favorecem essas candidaturas.

Segundo dados levantados pelo VoteLGBT, entre as 18 LGBT+ eleitas de 2022 (quase o dobro de 2018), 16 eram mulheres e 14 eram negras, o que já deve ser considerado como um impacto da previsão legal desses repasses.

Mas de que adianta algumas poucas eleitas romperem essa barreira política, se estarão completamente isoladas em suas casas legislativas e sujeitas a mais violência política por conta disso? Não basta se contentar com o simbolismo da chegada de poucas.

O cinismo político dos partidos está asfixiando a mobilização social por mais democracia e representatividade, está impedindo a ascensão de novas lideranças políticas representativas de movimentos sociais, está contribuindo para a composição de casas legislativas cada vez mais conservadoras e proativas contra os direitos desses mesmos grupos que estão sendo excluídos sistematicamente da política. E a democracia, esta não pode mais esperar, sob o risco de nunca chegar.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da GN

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Evorah Cardoso

Doutora em Direito pela USP e coordenadora de pesquisa e incidência do VoteLGBT.

Hannah Maruci

Hannah Maruci é mestra e doutoranda em Ciência Política pela USP e diretora executiva d'A Tenda das Candidatas

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