Por Anielle Franco
É como tenho me referido a essa eleição que se aproxima. Ao mesmo tempo em que as eleições de 2022 se estabelecem como um marco no que pode ser uma possibilidade concreta de reconstrução do Brasil, com a eleição da maior bancada de mulheres e pessoas negras, indígenas e LGBTQIA+ da história, nunca vivenciamos tanta violência política, racial e de gênero, e um nível tão grande de desesperança quanto ao sistema político. A esperança em concretizar um Brasil antirracista, democrático, popular e ecologicamente equilibrado, um país verdadeiramente construído por e para aquelas e aqueles que “andam a pé e têm calos nas mãos”1, tem sido posta à prova: quem defende tal projeto tem sido, cotidianamente, obrigado a arriscar sua vida e vencer o medo.
Não somente pelo número de casos de violência política que temos sido invadidos quase diariamente, ou pela enxurrada de fake news que têm movimentado as redes sociais e muitos debates, ou até mesmo pela urgência de uma reforma na foto do cenário político, como afirma a candidata à deputada federal pela Bahia Vilma Reis. Mas sim pela urgência de termos no Congresso e em todas as câmaras do país pessoas que se comprometam com valores humanos, dignos e democráticos para todos.
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É importante que, ao olharmos para o futuro, não percamos de vista tudo que já foi feito antes de nós estarmos aqui. Ver os passos de Antonieta de Barros, de Benedita da Silva, Marielle Franco é o que tenho feito ao longo deste ano, ao construir o Instituto Marielle Franco
No último ano, para além de agir pensando nas necessidades urgentes, nós, mulheres negras, atuamos pensando e projetando o futuro. Nessa linha, é importante que ao olharmos para o futuro não percamos de vista tudo que já foi feito antes de nós estarmos aqui. Ver os passos de Antonieta de Barros, de Benedita da Silva, Marielle Franco é o que tenho feito ao longo deste ano, ao construir o Instituto Marielle Franco. Nesse momento, onde há um recrudescimento de direitos sociais, políticos, onde há a ampliação das desigualdades, é cada vez mais importante apontar o caminho e lado em que estamos, o lado dos direitos humanos, da defesa da vida e da dignidade. Este lado é impulsionado pelos processos transformativos do futuro e passa necessariamente pela disputa dessas eleições e pelo projeto liderado por mulheres negras.
As mulheres negras podem ser as agentes de um verdadeiro processo de transformação e reconstrução da sociedade brasileira. As mulheres negras rejeitam um modelo de Estado que se ocupe em apenas remediar problemas, ou um modelo de sociedade que abra mão de valorizar aquilo que é essencial para vida
Assim como escrevi com Ana Carolina Lourenço, no livro “A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras Brasileiras”, lançado em 2020, em meio a pandemia e um futuro absolutamente incerto não só para a política brasileira, mas para o futuro de milhares de candidatas e candidatos. As mulheres negras podem ser as agentes de um verdadeiro processo de transformação e reconstrução da sociedade brasileira. As mulheres negras rejeitam um modelo de Estado que se ocupe em apenas remediar problemas, ou um modelo de sociedade que abra mão de valorizar aquilo que é essencial para vida. Nosso trabalho neste ano tem se dedicado à contribuição do processo de visibilização das respostas e soluções empreendidas pelas mulheres negras brasileiras frente ao atual contexto de crise social, política e econômica.
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O legado que minha irmã deixou também está em disputa nessas eleições e impacta de forma profunda a construção de outras perspectivas de futuro e sociedade, onde nós mulheres negras temos papel primordial na interlocução da mudança e por um mundo mais justo e igualitário. Este legado da Mari, de Lélia, de Benedita, de Luiza Barros e tantas outras, se traduz no feminismo negro, esse feminismo que evidencia que as opressões de raça, classe e gênero estão conectadas só havendo libertação para nós, mulheres negras, quando as amarras racistas, patriarcais e de classe foram superadas.
O bem-viver brasileiro pós-2022 depende necessariamente de quanto nós colocaremos na frente os projetos verdadeiramente comprometidos com a vida de todos. E para nós, essa construção passa necessariamente pelo que mulheres negras historicamente vêm plantando nesse país. Sementes de esperança, sementes de enfrentamento às violências políticas impulsionadas pelo ódio, sementes de projetos eleitorais feito por nós e para nós.
A eleição das eleições é sobre a gente estar à frente fazendo por nós.
Não outros corpos, que não nos representam, fazendo por nós.
Temos direito, capacidade e garra para darmos um novo rumo à política desse país, de forma digna e sem racismo. Nossos passos vêm de longe, mas se fazem presente em nossa força ancestral que seguirá lutando por dias melhores e negros.
*Anielle é jornalista, educadora, diretora-executiva do Instituto Marielle Franco e assina cooluna mensal na Gênero e Número.