
Entidade civil dedicada à defesa e à promoção de direitos das mulheres negras, a Criola lançou, em outubro, o dossiê Mulheres Negras e Justiça Reprodutiva (2020-2021), dedicado a abordar a perda de direitos que afetam, em especial, mulheres negras e periféricas de todo o Brasil.
A publicação tem como ponto de partida a justiça reprodutiva, um conceito desenvolvido por mulheres negras, ativistas, pesquisadoras e protagonistas da própria realidade cujo objetivo é apontar desafios enfrentados para a garantia de acesso a direitos que, muitas vezes, estão previstos na Constituição, mas não chegam às famílias brasileiras.
Nascido a partir das articulações com a área da saúde, a justiça reprodutiva busca demonstrar como outras dimensões da vida das mulheres afetam a garantia a uma saúde reprodutiva plena, como o acesso a direitos (econômicos, sociais, culturais e ambientais), acesso a assistência à saúde e a direitos sexuais e reprodutivos e, por fim, situações de violências operadas pelo Estado.
A pandemia é apresentada como o momento crítico de desamparo às mulheres negras brasileiras. Boa parte dos dados se referem ao período entre 2020 e 2021, com o uso de índices de 2019 para temas que ainda não tinham números mais recentes à época da pesquisa – dificuldade que as pesquisadoras identificam como uma estratégia do Estado.
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“Vivemos um momento em que temos diversos centros de pesquisa de grupos especializados em trabalho com os dados, mas quando estamos diante da necessidade de entender a vida de mulheres negras, encontramos estatísticas nebulosas e controversas, que só nos excluem do debate por políticas públicas de qualidade”, critica a coordenadora da pesquisa do Dossiê, Lia Maria Manso.
De acordo com o relatório, por exemplo, 65,93% da mortalidade materna se concentram em mulheres negras, segundo dados coletados pela pesquisa no decorrer de 2019. Já os óbitos por aborto são mais recentes e ocorreram durante a pandemia: 45% das vítimas eram mulheres negras.
Lia Maria Manso conversou com a Gênero e Número sobre os desafios para desenvolver um estudo focado em mulheres que, muitas vezes, são invisibilizadas pelas principais estatísticas socioeconômicas do país devido à ausência de dados dedicados a entender seus principais desafios.
Em um contexto de perda de direitos, Lia destaca a prioridade do dossiê em construir uma narrativa que traz, ao centro, os ciclos de sobrevivência enfrentados por mulheres negras neste momento de desamparo social e político.
De que forma a justiça reprodutiva ajuda a destacar o cruzamento dos problemas enfrentados em cada uma das dimensões de mulheres negras e periféricas e por que pensar neles a partir da saúde?
Antes mesmo de entrar no conceito de justiça reprodutiva e aplicá-la como uma estratégia política, a Criola já atuava, desde o seu início, em 1992, a partir da luta de mulheres negras dentro dos principais espaços de debate sobre a saúde pública, com a ideia de saúde integral. Com ela, entendemos que temos que olhar diversos aspectos de vida: se temos que pensar na saúde daquela mulher, temos que pensar no ambiente em que ela está inserida, sobre as relações que ela estabelece com o trabalho, com o lazer, com as relações afetivas, com as relações políticas, o contexto de acesso ao próprios recursos de saúde…
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A saúde integral é uma ideia que se consolidou no espaço do SUS e que afirma justamente que a gente tem que olhar o sujeito como um sujeito e não um sujeito compartimentado ou sujeito a partir do quadro doença. A gente tem que olhar a garantia do bem-estar daquele sujeito, daquela sujeita. Isso significa falar de interseccionalidade, ou seja, dependendo do público para o qual a gente olha e entendendo que o acesso à saúde, mesmo dentro do próprio SUS, vai ser diferente de acordo com o grupo, e precisamos encontrar como operam as oposições de hierarquias. Em outras palavras, temos que reconhecer que o atendimento a uma mulher negra trans periférica vai ser diferente daquele direcionado a uma mulher negra, mas classe média, que por sua vez enfrenta questões diferentes de uma mulher branca e pobre.
Diante disso, a justiça reprodutiva surge como uma forma de reduzir essas iniquidades que sabemos que existem.
Na pesquisa, vocês realizam um esforço para trazer dados qualitativos – e a partir da escuta de mulheres negras. De que forma isso se complementa aos dados coletados nos principais órgãos de informação?
A gente também desenvolveu uma metodologia de trabalho popular, coletivo, a partir dos territórios, e isso também é uma forma de geração de pesquisa, porque leva a uma validação dos dados pelas próprias mulheres que vivem essa realidade e combatem as principais questões trazidas pelo racismo, o que é um passo importante quando estamos trabalhando com a aplicação de estratégias da justiça reprodutiva.
Para o desenvolvimento do trabalho, buscamos ter uma janela temporal reduzida e recente, de 2020 a 2021, mas, para muitos dados, precisamos recorrer ao ano de 2019, algo que demonstra a falta de acesso a dados quantitativos e de qualidade sobre a situação de mulheres negras em diversas dimensões, o que é preocupante e mostra que já há uma tentativa de, com a falta de acesso aos dados, restringir o debate sobre as políticas públicas que deveriam ser realizadas para a população negra. Vivemos um momento em que temos diversos centros de pesquisa, de grupos especializados em trabalho com os dados, mas quando estamos diante da necessidade de entender a vida de mulheres negras, encontramos estatísticas nebulosas e controversas, que só nos excluem do debate por políticas públicas de qualidade.
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O desmonte do Bolsa Família diz muito sobre as decisões do Estado, e o momento em que mulheres negras perdem mais uma ferramenta de transferência de renda é a evidência de que estamos diante de uma política de morte para boa parte da população. Isso mostra que o que se aproxima do nosso horizonte não vai ser fácil de ser enfrentado
Por que trabalhar a perda de direitos a partir da crise ocasionada pela pandemia? Quais dados acabam sendo agravados pelo período?
O que percebemos é que a pandemia foi utilizada como um pretexto para a redução de acesso à assistência social e a assistência à saúde, e constatamos isso não apenas com dados quantitativos – já que muitos deles eram frágeis – mas com a escuta qualitativa de mulheres que tiveram dificuldade de atuar politicamente nos seus territórios porque precisaram se desdobrar em múltiplos trabalhos para que pudessem sobreviver à crise. Os dados revelam, por exemplo, uma complexa crise de acesso a alimentos, não só se olharmos isso de forma geral, mas também pela perspectiva de entender que não houve a possibilidade, para essas mulheres e suas famílias, de escolher a alimentação mais adequada para eles.
Também ficou evidente como o Estado respondeu a uma crise criada por ele mesmo, ampliando a violência a partir da sua presença em comunidades, com a atuação de paramilitares nas regiões que acentuaram essa situação. E destaco como o período agravou, em relação à saúde reprodutiva, a dificuldade para o acesso a serviços de aborto legal e daqueles que acolhem mulheres em situação de violência, porque de todas as cem mulheres escutadas para a pesquisa, nenhuma delas tinha ouvido falar ou tinha acesso a informações relacionadas ao aborto legal, e isso a despeito de elas relatarem como viveram, durante a pandemia, situações de violência durante a gravidez, ou de exposição a situações de violência sexual. Então, se o Direito já não estava efetivo ali antes, a pandemia facilitou esses desmontes.
Estamos assistindo ao fim do Bolsa Família (que será substituído pelo Auxílio Brasil, com duração até dezembro de 2022), um programa que favorecia diversas famílias com mulheres negras à frente e em situação crítica. De que forma isso deve acentuar os riscos em torno das dimensões que a justiça reprodutiva olha, e busca combater?
Nós temos uma longa, e problemática trajetória, de como a pobreza e a falta de direitos são observadas no Brasil. Então falar de uma longa classe trabalhadora que não tem acesso a saúde, ao lazer, ao trabalho, olhar os dados preocupantes dessa falta de direitos é olhar para a história das famílias negras e das mulheres negras no Brasil. Tivemos décadas de mobilizações encabeçadas pelo movimento negro para discutir a universalização do acesso a direitos, e se não fosse esse momento de contingência que estamos vivendo, deveríamos estar debatendo sobre a ampliação do que foi conquistado e não sobre os demontes que estamos vivenciando.
E novamente temos a urgência de trabalhar com uma abordagem de ampliar olhares e utilizar a interseccionalidade para garantir um acesso universal a direitos. Mas agora observamos como o desmonte do Bolsa Família diz muito sobre as decisões do Estado, e o momento em que mulheres negras perdem mais uma ferramenta de transferência de renda é a evidência de que estamos diante de uma política de morte para boa parte da população. Isso mostra que o que se aproxima do nosso horizonte não vai ser fácil de ser enfrentado. O desafio agora é lutar por ações afirmativas que mantenham as mulheres negras nas universidades e em diversos espaços em que a gente possa continuar defendendo o acesso universal a direitos.
*Agnes Sofia Guimarães é repórter da Gênero e Número