Gravidez na adolescência diminui, mas entre meninas negras a queda é de apenas 3,5% em três anos

Meninas negras também chefiam mais lares e gastam quase três vezes mais tempo cuidando de outras pessoas do que as brancas. Para pesquisadora da Fiocruz, a discussão sobre economia do cuidado precisa levar em conta as condições socioeconômicas destas jovens

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 alguns anos, na cidade de Santos, litoral da Baixada Santista, quatro grandes “Noites de Pizza” movimentam a cidade por uma boa causa: os eventos arrecadam dinheiro para a associação Projeto Menina Mãe, dedicada ao atendimento de gestantes adolescentes, a maior parte entre 15 e 17 anos.

A iniciativa, sem fins lucrativos, é conduzida há 14 anos pela Associação de Médicos de Santos. Em oficinas, jovens atendidas pelo projeto aprendem a viver a gestação como mais uma nova etapa de vida, em que podem socializar experiências que, muitas vezes, acabam sendo marcadas pelo abandono dos parceiros e por rejeição social diante de uma experiência considerada incomum à adolescência. 

“São meninas que, quando se encontram no projeto, acabam encontrando um compartilhamento de experiências que proporciona um olhar mais cuidadoso e autônomo sobre sua própria gestação, que, muitas vezes, é muito solitária”, ressalta a médica e atual coordenadora do Projeto Menina Mãe, Regina Aparecida Ribeiro Braghetto.

Levantamento recente da Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) apontou uma queda de 37,2% de casos de gravidez na adolescência no país entre 2000 e 2019. Mesmo assim, os casos ainda são mais frequentes entre adolescentes negras de 10 a 17 anos. Análise da Gênero e Número a partir de dados do Sistema de Nascidos Vivos (Sinasc/DataSUS) mostra que, se a taxa geral de gravidez diminuiu, há uma diferença significativa quando se olha a identidade racial da gestante.

De 2018 a 2020, enquanto houve diminuição de 10% nos casos de  gravidez entre meninas brancas de 10 a 17 anos, entre meninas negras, a redução foi de apenas 3,55% nos maiores estados das cinco regiões do país: São Paulo (Sudeste), Rio Grande do Sul (Sul), Bahia (Nordeste), Pará (Norte) e Goiás (Centro-Oeste). Só em 2020, 62,74% das gestações de mães adolescentes eram de jovens negras, diante de 36,52% de gestações de jovens brancas, 0,38% de amarelas e 0,36% de indígenas.

“Infelizmente o que a gente tem visto no Brasil é que todas as políticas públicas para a população negra estão baseadas na punição, no encarceramento e na responsabilização dessas pessoas. É preciso mudar a lógica dessa política, sair da penalização para buscar um olhar de desenvolvimento”, adverte a pesquisadora da Fiocruz, Aline Martins.

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Os dados brasileiros ainda estão acima da média latinoamericana. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nascem 68,4 bebês de mães adolescentes no Brasil a cada mil meninas de 15 a 19 anos,  enquanto que, na América Latina, a média é de 65,5 nascimentos, e, no mundo, 46 mil a cada mil.

Mesmo assim, as políticas públicas para enfrentamento do problema esbarram no conservadorismo em relação a pautas de gênero e de educação sexual, conforme alertam especialistas, e ilustram decisões recentes sobre a autonomia do corpo das mulheres. No ano passado,  Damares Alves, ministra da  Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, defendeu a abstinência sexual como forma de prevenção da gravidez na adolescência e criticou a educação sexual nas escolas.

Em seu livro “Gravidez na Adolescência: Entre Fatos e Estereótipos”, Aline Martins revela, a partir de levantamento de dados e de outros indicadores sociais sobre a gravidez na adolescência, mais do que um retrato estatístico sobre o fenômeno no país. Com os indicadores sociais, a autora buscou questionar estereótipos e negligências que chegam a impactar, inclusive, o desenho de políticas públicas para o acolhimento às gestantes mais jovens, como a ausência de mais indicadores para entender o contexto socioeconômico de adolescentes que se tornam mães. 

“A ausência de mais estudos é uma forma de estratégia porque, sem eles, não conseguimos dar visibilidade a como as coisas realmente são e, nesse contexto de conservadorismo sobre o corpo da mulher, não ter os dados fortalece uma opinião culpabilizadora e moralizante”, critica a pesquisadora.

 

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Pensar sobre a gravidez na adolescência também implica olhar dados que revelam a sobrecarga de demandas domésticas a meninas que, por questões sociais e econômicas, assumem mais responsabilidades logo cedo – mesmo quando não se tornam mães.

E, neste caso, dados da última edição da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que também há uma disparidade racial entre as responsabilidades domésticas de adolescentes. 

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Infelizmente o que a gente tem visto no Brasil é que todas as políticas públicas para a população negra estão baseadas na punição, no encarceramento e na responsabilização dessas pessoas. É preciso mudar a lógica dessa política, sair da penalização para buscar um olhar de desenvolvimento”

Aline de Carvalho Martins, pesquisadora da Fiocruz

Das adolescentes de 14 a 17 anos que se apresentaram como as “chefes da família”,  75,7% são negras, e 24,3%, brancas. Em relação às horas dedicadas a cuidar de outras pessoas na casa ou de demandas domésticas, as meninas negras gastaram 72% do tempo, enquanto as brancas usaram 27,5% do tempo nestas atividades.

A responsabilidade pelo domicílio pode indicar maternidade, compartilhamento de responsabilidades por menores e/ou adultos fragilizados, ou ser a principal fonte de renda do lar.

Na pesquisa da PNAD Contínua, o cuidado a outras crianças da casa, até 5 anos, também é um indicativo de sobrecarga de cuidados domésticos para meninas negras: elas compõem 75,32% das responsáveis pelos cuidados a outras crianças, enquanto 24,32% são brancas. 

Martins também destaca a importância de olhar para a gravidez na adolescência para entender como fatores socioeconômicos, enfrentados por jovens que têm mais responsabilidades domésticas, podem ajudar no debate, ainda incipiente, mas necessário, sobre a economia do cuidado.

“Diante da necessidade de proteção de membros frágeis, quer dizer, crianças, idosos, pessoas doentes, sempre são as mulheres que vão abrir mão dos seus sonhos, dos seus projetos. Então, quando a gente tem uma remuneração, o que chamamos de ‘economia do cuidado’, a gente permite suavizar esse processo, mas essa é uma discussão que, infelizmente, ainda está muito tímida, muito embrionária no Brasil”, diz a pesquisadora. 

 

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Segundo ela, é preciso avançar nessa discussão “tanto como reprodução da força de trabalho quanto expressão de um trabalho que agrega à economia, mas não vem sendo remunerado, e uma possibilidade de compensação das mulheres”.

Para Regina Braghetto, o trabalho desenvolvido no projeto Menina Mãe aponta para esse sentido. As oficinas de artesanato, cozinha, entre outras atividades oferecidas para as adolescentes, ajudam as jovens mães a pensar sobre o futuro. Muitas vezes, elas encontram novas possibilidades para voltar para a escola ou uma renda que lhes garanta mais autonomia. 

“As políticas públicas até estão avançando, mas é preciso ter um olhar mais individualizado sobre as gestantes adolescentes, e fazê-las ver que elas têm direito, sim, a pensar em autonomia dos seus corpos e em empoderamento pela educação e pelo trabalho. Acho que esse é um dos nossos principais esforços. Não damos cesta básica: oferecemos a possibilidade de enxergar que elas podem fazer o que quiser”, conclui a médica. 

Nota metodológica 

Os dados recentes sobre gravidez na adolescência foram retirados no Sistema de Nascidos Vivos (Sinasc), considerando o período entre 2018 e 2020. Foram selecionados os estados das cinco regiões do país com maior contingente populacional: São Paulo (Sudeste), Rio Grande do Sul (Sul), Bahia (Nordeste), Pará (Norte) e Goiás (Centro-Oeste). 

Já os dados relacionados às condições socioeconômicas de jovens adolescentes em relação à carga horária doméstica foram analisados pela Gênero e Número a partir dos microdados da última edição anual da Pnad Contínua, dedicada a outras formas de trabalho, publicada no primeiro semestre de 2020 e utiliza, como base, entrevistas realizadas em 2019 pelo IBGE. 

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Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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