Livro sobre mulheres negras na política reúne textos de Lélia Gonzalez, Vilma Reis, Benedita da Silva e Marielle Franco

Uma das organizadoras da coletânea “A radical imaginação política das mulheres negras”, a socióloga Ana Carolina Lourenço destaca que apesar da pouca presença de mulheres negras em cargos representativos ao longo da história do Brasil, isso não significa baixa disputa pela institucionalidade

O novo protagonismo que as mulheres negras expressam na política entende que não haverá justiça social enquanto a elaboração de leis e de políticas públicas for um monopólio de homens brancos”. Este trecho está na introdução do livro “A Radical Imaginação Política das Mulheres Negras Brasileiras”, uma coletânea organizada por Ana Carolina Lourenço e Anielle Franco, em parceria com a Fundação Rosa Luxemburgo. O livro reúne textos de Vilma Reis, Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Benedita da Silva, Marielle Franco, Érica Malunguinho e outras pensadoras na busca por documentar um panorama da imaginação política das mulheres negras. 

A obra, editada pela Oralituras,  está disponível gratuitamente em e-book. E, no canal do YouTube da Fundação Rosa Luxemburgo, é possível ver o evento de lançamento virtual do livro, que ocorreu na última segunda-feira (21) e contou com as participações de Christiane Gomes (mediação), Anielle Franco e Ana Carolina Lourenço (organizadoras do livro) e Vilma Reis (autora de um dos textos da coletânea). 

 

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Em entrevista à Gênero e Número, Ana Carolina Lourenço, socióloga e co-fundadora do Movimento Mulheres Negras Decidem, conta que a história mostra como as mulheres negras sempre defenderam propostas capazes de responder a problemas existentes, mas   não foram valorizadas. Agora, segundo ela, é possível fazer diferente. “O momento que estamos vivendo agora, de crise social, política e  econômica, em que a gente se sente encurralado, é precioso para se olhar esse repositório [de propostas das mulheres negras] que é ativo, inovador e que demonstra ter soluções e caminhos para construir a política que não foram priorizados, mas que podem ser”, destaca. 

 

Leia a entrevista completa:

O que motivou a publicação do livro? 

O livro é a consolidação de uma estratégia de consolidar um debate que parte do diagnóstico da democracia brasileira. Parte do problema da democracia brasileira passa pela superação da sub-representação das mulheres negras nos cargos de representação política. Esse é um processo que estamos desenvolvendo desde o início de 2018 e que, por uma série de questões, desde a execução de Marielle Franco em março de 2018 até o aprofundamento do debate sobre racismo em 2020, já no contexto da pandemia, tem se tornado muito urgente. Estamos vindo de um ciclo eleitoral em 2020 que, em vez de arrefecer esse debate, parece que o está aprofundando para 2022.

O livro é para consolidar esse debate em torno da representação política de mulheres negras. E também, depois de ter criado um ecossistema em torno deste tema, destacar que, para além da representação política, existe um debate importante sobre a qualidade da agenda propositiva liderada pelas mulheres negras. Desde que criamos o Mulheres Negras Decidem, dizemos que essa disputa pela institucionalidade não é uma novidade no interior dos movimentos de mulheres negras, mas por mais que seja uma narrativa potente, estava muito dispersa. No livro, queremos também documentar nossa maturidade de ação, de agenda de proposições de políticas públicas, e mostrar que as mulheres negras dão o caminho para as pessoas que estão entrando nesse debate

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Apesar da baixa presença de mulheres negras ocupando cargos representativos ao longo da nossa República, que permanece até hoje, isso não significou uma baixa disputa pela institucionalidade"

O que podemos aprender com as mulheres que vieram antes na política institucional e como contribuíram para o cenário hoje?  

No primeiro texto do livro, a historiadora Gabriele Abreu começa com uma personagem, Almerinda Gama, que nas primeiras décadas do século 20 estava no interior das disputas sobre o sufrágio, a participação feminina pelo voto e das mulheres negras pelo voto. O que acho mais interessante de a gente acompanhar essas personagens é entender que apesar da baixa presença de mulheres negras ocupando cargos representativos ao longo da nossa República, que permanece até hoje, isso não significou uma baixa disputa pela institucionalidade. Ao olhar a história da Almerinda, e até mesmo de alguns processos retroativos que aparecem no livro, percebemos que muitas vezes as mulheres negras deram corpo a agendas que tinham na sua formulação uma capacidade talvez de responder à raiz dos problemas, e esses projetos de lei foram deixados de lado, não ganharam a discussão pública.

 

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Temos exemplos muito emblemáticos como o conjunto de projetos de lei que a Áurea Carolina (deputada federal do PSOL) apresentou depois do crime de responsabilidade da tragédia de Brumadinho, que foi considerado um novo marco da mineração, mas esse conjunto de proposições foi dispensado, ou seja, a gente escolheu um outro caminho, ou um não caminho de justiça socioambiental. “O momento que estamos vivendo agora, de crise social, política e  econômica, em que a gente se sente encurralado, é precioso para se olhar esse repositório [de ideias das mulheres negras] que é ativo, inovador e que demonstra ter soluções e caminhos para construir a política que não foram priorizados, mas que podem ser”.

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Acreditamos que parte do papel desse movimento de mulheres negras ou dos movimentos em torno das candidaturas de mulheres, de pessoas negras, há por apontar um repositório de soluções, o caminho para um debate como ponte para o futuro, que é muito importante, numa lógica de tanto medo, perdas

Qual foi a maior reflexão que as eleições de 2020 trouxeram nesse sentido, em relação ao que foi conquistado até agora e os caminhos que temos pela frente?

O retrato do resultado das eleições a partir de uma tímida tendência de crescimento de cargos de mulheres negras mostra que há sobretudo um número mais forte de votos para essas mulheres. Por mais que a gente ainda não tenha garantido um conjunto de cadeiras, a gente sabe que teve um crescimento forte em 2020, mais de dois milhões de pessoas votaram em mulheres negras quando comparada com o último pleito. 

Particularmente acho que a experiência em torno das eleições de 2020 foi positiva, e eu falo isso porque a gente tem que entender certos limites na incidência em torno de eleições brasileiras, sobretudo as eleições municipais, que são muito pouco abertas a transformações porque têm uma lógica muito forte do sistema partidário, das regras eleitorais tentadas a privilegiar um pequeno grupo. Então, ter uma tendência de melhora no cenário das eleições municipais já é algo positivo, e saindo um pouco do campo dos resultados eleitorais, acho que podemos ver as eleições de 2020 positivas do ponto de vista do crescimento do debate.

 

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A gente pode concordar ou discordar de como foi feita a cobertura da grande mídia sobre o tema, mas foi a primeira vez desde que participo da arena eleitoral que a quantidade de candidaturas negras ganhou destaque nas páginas dos jornais importantes, não só isso mas também mais debate na academia… de uma maneira geral, eu diria que o grande ganho foi a consolidação de um ecossistema forte para 2022. Essa é mais ou menos a leitura sobre as eleições e acho que o livro foi criado no aprofundamento da crise da pandemia e dessas  eleições bem diferentes que a gente teve em 2020, mas ele é justamente esse elo para 2022. Acreditamos que parte do papel desse movimento de mulheres negras ou dos movimentos em torno das candidaturas de mulheres, de pessoas negras, há por apontar um repositório de soluções, o caminho para um debate como ponte para o futuro, que é muito importante, numa lógica de tanto medo, perdas.

O que forma esse novo protagonismo de mulheres negras na política? Quem são elas e o que trazem de diferente?

Esse protagonismo tem mais a ver com diálogo geracional do que ruptura, isso do ponto de vista temático, das agendas, porque as agendas que estavam sendo posicionadas por Lélia Gonzalez, Benedita da Silva e até mesmo Luiza Bastos, por exemplo, são temas que vão ser ressuscitados depois, a partir de 2015. A grande diferença do novo protagonismo das mulheres negras é o crescimento da presença e do impacto expressivo que as políticas e ações afirmativas tiveram nesse campo.

Além do aumento da presença nos postos de decisão, tem a adoção de novas linguagens, que vai ser muito impactada pelas redes sociais e pela tecnologia, que fazem uma costura que é própria de outros ativismos pelo mundo. No ativismo das mulheres negras no Brasil, temos a construção de uma marca de diferença na maneira que se faz, mas sem criar grandes rupturas com a agenda. 

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É um feminismo negro em nome das mulheres negras jovens, em que Sueli Carneiro é uma das principais referências. É um movimento de mulheres negras jovens que voltam a organizar textos de Lélia Gonzalez, a recuperar os primeiros textos da Benedita, ou seja, existe também um forte desejo de esquematização da memória e da atuação. Eu sempre penso que esse livro é muito da minha geração e da Anielle, que no caso do Brasil vivenciou o assassinato da Marielle Franco, mas que é uma geração que segue muito uma linha de etminologia do feminismo negro, de organização e disputa do conhecimento. 

No momento de crise, temos que olhar para os grupos que estão mais atravessados pelos processos de opressão. Porque se há complexidade nesses processos, devem ser igualmente complexas as estratégias de resistência e saída da crise. Temos a marca da geração que vai vivenciar essa grande explosão das ações afirmativas e que vai sempre aumentando a sua presença.

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A teoria de mudanças que a gente poderia falar das mulheres negras são complexas, porque ela entende o partido como instrumento propulsor, a sociedade civil, com quem eu devo dialogar para definir os programas e posicionar minhas lideranças, e coloca o ponto de que a gente sabe que a entrada desses grupos sub- representados na política passa por momentos expressivos de violência, então, é um plano de ação complexo, que passa por três décadas

Que tipo de caminhos possíveis para resolver a questão da baixa representatividade institucional as mulheres negras estão pensando nesse momento? Como você falou, não é uma questão que a curto prazo consiga ser resolvida, mas o que está sendo pensado para lidar com essa questão?

Tem três textos no livro, de tempos diferentes, que mostram como as soluções na verdade são mais antigas do que a gente pensa. O primeiro texto, que fala dos itinerários a fazer, que é da Lélia Gonzalez, é um debate em torno do debate partidário, é a Lélia em um dos seus últimos atos, como criar o Partido dos Trabalhadores depois da histórica eleição de 1982. O texto é de 1983, publicado na Folha de São Paulo, no qual ela conta o que chama de racismo por omissão, que é a retirada do debate sobre racismo contra a população negra no plano nacional do Partido dos Trabalhadores, que se tornaria o maior partido de massas da América Latina. E ela diz que o sonho que se pretendia democrático, justo, se prova excludente. E ela aborda essa questão no interior dos partidos, ou seja, a gente não pode pensar na resolução do racismo ou na ampliação de mulheres negras sem entender que isso parte para um compromisso estratégico dos partidos, então, esse primeiro texto coloca soluções que são mandatórias para as mulheres negras que estão disputando os partidos políticos no Brasil, seguindo a tradição de Lélia Gonzalez.

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Um outro texto, de 2015, é um trecho da Carta da Marcha Nacional das Mulheres Negras em Brasília, que coloca como os movimentos sociais e a sociedade civil devem funcionar e estar dispostos a pensar a disputa da institucionalidade e dos postos de tomada de decisão. Parece um texto simples, mas se a gente parar para pensar que a Marcha foi a maior mobilização de mulheres negras do Brasil na última década, que saíram de várias capitais do país, tem talvez uma pista que explique o que o Brasil tem vivenciado desde 2016. Os movimentos de mulheres negras, que antes estavam tentando fazer disputas dentro da institucionalidade, através das estruturas do Estado, com cargos de nomeação, por exemplo, que marcaram a década de 90 e a primeira dos anos 2000, naquele momento apontavam para uma disputa eleitoral mesmo. Como diria Lélia, são os nossos corpos que vão liderar e aprofundar o debate da esquerda. Então, são textos que mostram que parte é sobre a sociedade civil e o movimento das mulheres negras darem corpo a essas demandas, se voluntariarem para esses processos. 

E o terceiro, que é o último texto do livro, é  um PL de co-autoria da Áurea Carolina e da Taliria Petrone, deputadas federais pelo PSOL, que trata da violência política e assédio político. Os textos colocam como essa teoria de mudanças que a gente poderia falar das mulheres negras são complexas, porque ela entende o partido como instrumento propulsor, a sociedade civil, com quem eu devo dialogar para definir os programas e posicionar minhas lideranças, e coloca o ponto de que a gente sabe que a entrada desses grupos sub-representados na política passa por momentos expressivos de violência, então, é um plano de ação complexo, que passa por três décadas.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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