“Muitas mulheres buscam primeiro a proteção do Estado, não a prisão dos agressores, e o Estado ainda não consegue responder a todas”

Advogada feminista, especialista em violência, direitos humanos e relações de gênero, a ex-secretária adjunta nacional de violência contra as mulheres (2015-2016) e ex-coordenadora geral de acesso à justiça (2013-2014), da Secretaria de Políticas para as Mulheres, Aline Yamamoto, fala à revista Gênero e Número sobre os desafios que a falta de dados impõe a quem busca entender a violência no Brasil, problematiza a morosidade da justiça no atendimento aos casos e a falta de preparação do sistema de saúde para atender as vítimas de violência doméstica

Por Giulliana Bianconi*

Aline Yamamoto, advogada feminista e ex-secretária-adjunta nacional de enfrentamento à violência contra a mulher | Foto: Waldemir Barreto/Senado Federal

GÊNERO E NÚMERO – Temos atualmente alguns índices de violência contra a mulher e estudos que tratam de aumento e diminuição de homicídios de mulheres. Como você os vê?

A gente sempre tem que ter muita cautela para interpretar esses dados. Por exemplo: a leve queda que vemos entre 2006 e 2007 no número de homicídios, depois de a Lei Maria da Penha ser aprovada, é um ponto de discussão. Eu considero equivocado atribuir exclusivamente a um aspecto a queda de um número como esse. Inclusive porque nos anos anteriores o número voltou a crescer. Precisamos considerar muitos eventos, sempre. Um parâmetro que poderia ser tido para avaliações é o aumento do número de denúncias de violência contra a mulher. Mas essa nao é uma correlação direta porque sabemos que existe uma subnotificação imensa. Quanto mais campanhas para chamar as mulheres a denunciar, mais relatos. Estamos, já há algum tempo, abrindo espaço para que algo que sempre esteve “lá” seja visibilizado. Por isso, dado de violância contra a mulher precisa de muito cuidado. Todo mundo busca uma única resposta: a violência está aumentando ou diminuindo? Mas isso não se responde com uma pesquisa como as que temos hoje ou com poucos parâmetros.

Como profissional especializada no tema violência e relações de gênero que acompanha os debates na academia, no governo e no sistema de justiça, você diria que existe consenso para responder a essa pergunta?

Não há consenso sobre se a violência contra a mulher, entendida de forma ampla, aumenta ou diminui, justamente pela dificuldade de medir a violência. E é assim no mundo inteiro. A violência psicológica, por exemplo, acontece muito em ambientes domésticos e é comum que em muitos casos ninguém fique sabendo. Acaba que a forma de medir a violência é por óbito. Dificilmente um país vai deixar essa morte ficar totalmente invisível. Então é isso que a gente vê, a violência fatal. Por isso é muito didático a imagem do iceberg. A gente só está olhando para a pontinha, e o homicídio está lá na ponta porque é o mais grave. Então acho muito complicado fazer esse tipo de afirmação: A violência está aumentando. Ou: está diminuindo. A violência é gravíssima. Mexe muito fortemente na estrutura da nossa sociedade e mesmo que o que a gente enxergue seja a ponta, já é gravíssimo. Isso não podemos perder de vista. A gravidade que existe em simplesmente a violência existir.

O que seria, na sua opinião, um consenso nesse debate?

O que a gente pode considerar e avaliar é que o conhecimento da população sobre o assunto, o tema da violência, é maior. O assunto é mais debatido, é mais visível hoje do que há uma década. Isso não significa que diminuiu o machismo no Brasil, mas existe maior consciência sobre o que estamos falando. Fizemos, quando eu estava como secretária-adjunta de Enfrentamento à Violência, uma parceria com o Instituto Patrícia Galvão eo Data Popular, e por meio de uma pesquisa de percepção, vimos que a população já sabe do que estamos falando. Isso com certeza a gente pode afirmar: o tema já é reconhecido como importante e grave pelas pessoas, e também está na agenda da mídia, embora a abordagem ainda seja deficitária porque só olha para a parte policial.

Veja também: Quando não mata, violência doméstica deixa marcas e dura batalha judicial para as mulheres

As estatísticas do sistema de saúde também são tidas como deficitárias pelos pesquisadores para retratar o tamanho da violência contra a mulher no Brasil. As mulheres não buscam o sistema tanto quanto deveriam quando sofrem diferentes tipos de violência?

Elas buscam serviço de saúde. Elas nao necessariamente verbalizam que estão sofrendo violência e isso pode passar completamente despercebido por aquele profissional de saúde que a atende. Precisa haver entendimento do que é violência mesmo que a mulher nao tenha o olho roxo na cara quando chega a uma emergência, a um ambulatório. Ela está deprimida? Tem crise de pânico? Tudo isso pode ser indício de algo que não está visível. E se não houver disposição e também conhecimento por parte desse profissional, a mulher vai ser atendida como se estivesse passando por algo de menor gravidade. Em muitos casos, ela toma um remédio e vai para casa. Elas não se sentem acolhidas e os profissionais de saúde não estão, em grande parte dos casos, preparados para atender e identificar casos de violência não-verbalizados.

Bem, então essa falta de formação ou sensibilidade dos profissionais também dificulta a coleta de dados em um sistema como o SUS, por exemplo. Isso tudo é um grande desafio para termos estatísticas mais reais. Há saída?

Quando a gente fala de dados, a gente tem que entender que são válidas todas as informações que temos de dados oficiais. Uma pesquisa de homicidios vai contar número de homicídios. Uma pesquisa de percepção vai, provavelmente, trazer pontos que ninguém está enxergando. Uma mulher que fala: “eu já sofri violência”, mas fala isso numa pesquisa, talvez não esteja em mais nenhum outro banco de dados. Então, hoje, para você avaliar a incidência da violência, vai ter que usar vários recursos mesmo. Uma pesquisa, sozinha, ainda não vai te dar uma resposta ampla.

Dados de condenação por violência doméstica também são raros, e por vezes desencontrados…

Sabemos quantos processos entraram, quantos foram sentenciados e quantas medidas protetivas foram concedidas. Essas informações o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos mostra. Mas ainda é bem limitado mesmo. O que posso falar sobre isso, sobre esses processos, é que há um dado da realidade: as varas especializadas e juizados que atendem especificamente violência doméstica e casos relacionados à família estão com uma demanda gigantesca de casos. A rapidez no julgamento não tem sido de praxe, e isso é uma falha absurda, até porque como as penas para os agressores são pequenas, elas prescrevem. A criação do juizado especializado visa priorizar o julgamento de casos de violência contra a mulher. Você cria um núcleo que vai olhar apenas para essa questão, para não deixá-los nas varas criminais, onde esses casos ficavam no fim da fila. Agora, hoje em dia, a gente tem cerca de cem juizados especializados no Brasil. Se concentram nas capitais, principalmente, mas têm, às vezes, 15 mil processos, 20 mil processos. A reflexão que precisamos fazer, com essa demanda e demora no encaminhamento dos processos, é que muitas vezes a gente não está dando resposta nenhuma. Crimes estão prescrevendo. E aí? Mudou o sistema, mas a gente ainda sim não conseguiu dar uma resposta efetiva. Não significa que a Lei Maria da Penha falhou, porque ela tem vários méritos. As medidas protetivas são um mérito, embora precisemos avançar nas concessões, na forma de fiscalizar essas medidas. A lei, de fato, tem dado resposta para muitos casos. Mas temos o grande dilema de olhar a violência só na perspectiva penal.

Por que “dilema”?

Porque a tradição penal é olhar para quem cometeu o crime, o autor da violência, e ter uma resposta de prisão. Mas no caso de violência contra as mulheres, as mulheres querem proteção do estado, não necessariamente querem a prisão do autor da violência. E o estado está muito pouco preparado para dar essa resposta de proteção, ainda não consegue responder a todas elas. É uma mudança muito grande na lógica do direito penal, que está lá para punir. Esse direito está muito aquém de conseguir oferecer uma proteção para o contexto de uma violência que é sistemática, recorrente e tem ciclos. Ou seja: a mulher pode fazer uma denúncia e não significa que a violência acabou. Ela não é um fato em sim. Ela apanhou hoje e vai apanhar amanhã e depois e depois e depois.

Veja também: A proteção da Lei pode não ser o bastante

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