Em 2020, operações policiais mataram em média 3 pessoas a cada 24 horas no Rio
Segundo o grupo de estudos da UFF, operações deveriam ser a última opção, mas são usadas como regra no Rio de Janeiro; descumprimento de decisão do STF aumentou letalidade policial desde outubro de 2020
No Rio de Janeiro, 31% dos crimes contra a vida em 2020 foram mortes causadas por intervenção de agentes do Estado, segundo o Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (GENI) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Ano passado, 1.087 pessoas foram mortas em operações policiais no Rio, média de três a cada 24 horas. Apesar da decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que suspendeu em 2020 as operações policiais em favelas e restringiu a casos “absolutamente excepcionais” durante a pandemia, as intervenções não diminuíram e continuaram a vitimizar um número alto de pessoas.
O exemplo mais recente do impacto das operações policiais em territórios de favela foi a operação policial no Jacarezinho, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro, na última quinta-feira, (06/05), que deixou 28 mortos e ficou conhecida como a operação policial mais letal da história do estado. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental de nº 635, conhecida como ADPF das Favelas Pela Vida, ressalta que os agentes precisam comunicar ao Ministério Público sobre o motivo da operação, mas o MP só foi avisado três horas após o início da ação da polícia.
Considerada a favela mais negra da capital carioca (era um antigo quilombo urbano), e a sexta com maior população (36 mil habitantes; a associação de moradores local estima que haja 90 mil moradores), o Jacarezinho tem Índice de Progresso Social (IPS) entre os mais baixos da cidade, segundo o Censo IBGE 2010. Localizada na Zona Norte da cidade, a comunidade recebeu uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) em janeiro de 2013. De acordo com a pesquisa presente no livro “Um País Chamado Favela”, divulgada pelo Instituto Data Favela em 2014, dois milhões de pessoas residem nas favelas do Rio de Janeiro.
Para Dani Monteiro (PSOL), deputada estadual do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj, o que houve no Jacarezinho foi uma chacina e a principal cobrança nesse momento é por uma investigação que responsabilize as violações de direitos. “Não podemos naturalizar e nem chamar de eficiente uma operação policial que termina com 28 mortos pela polícia. Não é de hoje que apontamos que essa lógica da polícia de enxugar gelo com sangue não nos leva a lugar nenhum, a não ser empilhar dos corpos”, destaca. “O que aconteceu no Jacarezinho foi um cenário de guerra, de chacina e execução. É uma violação grave do direito à vida e traz uma série de violações dos direitos humanos presentes na nossa Constituição e de todos os pactos de que o Brasil é signatário.”
Segundo levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni) da Universidade Federal Fluminense (UFF), a decisão do STF foi a medida de preservação da vida contra a violência letal mais importante dos últimos 14 anos no estado do Rio de Janeiro. Em 2020, houve uma redução de 59% no número de operações policiais realizadas em relação ao ano de 2019, representando o número mais baixo de operações da série histórica entre 2007 e 2020.
Ainda segundo a pesquisa, nos primeiros quatro meses da vigência da decisão podemos observar seu cumprimento e uma diminuição no número de operações policiais e letalidade policial, com 18 mortos em junho, 46 em julho e 43 nos meses de agosto e setembro. No entanto, em outubro de 2020, o número de operações volta a crescer, assim como o número de mortos em operações, a letalidade policial e os crimes contra a vida. Só nos primeiros dois meses de 2021, 266 pessoas foram mortas por agentes do Estado no Rio de Janeiro.
O governador Claudio Castro permite que a polícia esteja desobedecendo o STF sistematicamente. A Polícia Civil agiu [no caso do Jacarezinho] como um grupo de extermínio - Carolina Christoph Grillo, pesquisadora e coordenadora de pesquisas do Geni/UFF
Operações policiais e homicídios no Rio de Janeiro
2020 foi o ano com menor número de operações desde 2007, mas letalidade policial ainda é alta
Operações policiais
Mortes por operações
ano
2007
957
1.281
2008
973
1.089
Início das UPPs
2009
899
997
2010
631
832
2011
660
482
2012
542
407
2013
940
398
Início do fim das UPPs
ano com
menos mortes
ano com
mais operações
2014
543
1.194
2015
607
611
2016
863
554
2017
1.178
1.054
2018
1.380
1.079
Intervenção Federal
ano com
mais mortes
2019
785
1.643
ano com
menos operações
2020
320
1.087
STF suspende operações no RJ durante a pandemia
fonte GENI/UFF e ISP/RJ
Operações policiais e homicídios no Rio de Janeiro
2020 foi o ano com menor número de operações desde 2007, mas letalidade policial ainda é alta
Operações
policiais
Mortes por
operações
ano
2007
957
1.281
2008
973
1.089
Início
das UPPs
2009
899
997
2010
631
832
2011
660
482
2012
542
407
2013
398
940
Início do
fim das UPPs
ano com
menos mortes
2014
1.194
543
ano com
mais operações
2015
611
607
2016
554
863
2017
1.178
1.054
2018
1.380
1.079
Intervenção
Federal
2019
785
1.643
ano com
mais
mortes
2020
320
1.087
ano com
menos
operações
STF suspende operações no RJ durante a pandemia
fonte GENI/UFF e ISP/RJ
“As operações policiais deveriam ser um último recurso, uma exceção e não a regra. No Rio de Janeiro, elas são o principal instrumento de ação de segurança pública. Essa atuação sistemática é em desacordo com as garantias civis das populações que vivem nesses territórios”, pontua Carolina Christoph Grillo, coordenadora de pesquisas do Geni/UFF e professora do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal Fluminense (PPGS/UFF). A mudança na gestão do governo estadual do Rio de Janeiro, após o afastamento de Wilson Witzel, é uma das justificativas para o aumento no número de operações policiais na capital. “O governador Claudio Castro permite que a polícia esteja desobedecendo o STF sistematicamente. A Polícia Civil agiu [no caso do Jacarezinho] como um grupo de extermínio”, diz Carolina.
Falta de eficácia das operações policiais
De 2007 a 2020 foram realizadas 11.323 operações policiais no Rio de Janeiro, que levaram a 12.663 mortes por intervenção de agentes do Estado no mesmo período, segundo levantamento do Geni/UFF. Os marcos desta série histórica são início e fim das UPPs, a intervenção federal militar nas favelas do Rio em 2018 e a ADPF 635. Em 2019, antes da pandemia de covid-19, foram mortas 1.643 pessoas. Apesar da diminuição no ano passado (1.087 pessoas), em 2021 as operações voltaram a crescer.
“A população pobre, negra e residente de favelas é a mais impactada por essa política de segurança pública. As operações são sintomas de um racismo estrutural que está longe de ser sanado. E apesar de serem usadas como justificativa para a operação policial, as crianças de Jacarezinho não estão mais protegidas hoje do que estavam antes da operação”, analisa a pesquisadora.
A deputada estadual Dani Monteiro completa: “As marcas que esse processo deixa na comunidade são grandes e graves. Ele não reduz nenhum indicativo de criminalidade. A Segurança Pública deveria prezar pela inteligência, preservação da vida e estar atrelada às outras áreas, como saúde e educação. O modelo de segurança pública que vigora no Rio não tem outro nome senão controle social das populações pobres, periféricas e negras”.
Mortes pela polícia representaram 1/3 dos crimes contra a vida no Rio em 2020
Em fevereiro de 2021, letalidade policial respondeu por 44% dos homicídios no estado
Porcentagem da letalidade policial
no total dos crimes contra a vida
2020
2021
jan
fev
mar
abr
maio
jul
set
out
nov
dez
jan
fev
jun
ago
100%
total de crimes
contra a vida no RJ
44
44
39
38
Em janeiro de 2020, 37% do total de crimes contra a vida no RJ, ocorreram pela letalidade policial
37%
36
33
30
26
24
21
20
19
9
0
fonte ISP/RJ
Mortes pela polícia representaram 1/3 dos crimes contra a vida no Rio em 2020
Em fevereiro de 2021, letalidade policial respondeu por 44% dos homicídios no estado
Porcentagem da letalidade policial
no total dos crimes contra a vida
Em janeiro de 2020, 37% do total
de crimes contra a vida no RJ, ocorreram pela letalidade policial
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100%
2020
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33
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fonte ISP/RJ
O modelo de segurança pública que vigora no Rio não tem outro nome senão controle social das populações pobres, periféricas e negras - Deputada estadual Dani Monteiro
O Geni criou um indicador para medir a eficácia das operações policiais realizadas entre 2007 e 2020, que leva em conta a motivação, apreensões e o número de mortos e feridos. No período, quase 85% de todas as operações obtiveram resultados pouco eficientes, ineficientes ou desastrosos. Apenas 1,7% de todas as operações foram consideradas eficientes.
“Muitas operações não precisam ser realizadas, mas são, até porque agentes policiais utilizam as operações para vantagens policiais, como enfraquecer determinado grupo armado em detrimento de outros, ou para cobranças de dinheiro. Essa política de segurança pública focada em operações policiais favorece a instrumentação da polícia e dos políticos para vantagens privadas”, avalia Grillo.
Para a pesquisadora, não existe uma responsabilização dos agentes envolvidos nessas operações, o que contribui para sua continuidade: “Os agentes estão respaldados pela impunidade sistemática e as circunstâncias das mortes não são apuradas. No caso do Jacarezinho, há provas suficientes para decretar a prisão dos responsáveis pela operação, mas sabemos a dificuldade disso acontecer”.
Jornalista formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-graduanda em Diversidade e Inovação Social pela PUC Rio. É diretora executiva da Gênero e Número, organização em que, há mais de oito anos, se dedica à cobertura especializada em gênero, raça e sexualidade, sempre guiada por dados. Também é conselheira da Ajor (Associação de Jornalismo Digital). Coautora do livro Capitolina: o mundo é das garotas (Ed. Seguinte) e colaboradora no livro Explosão Feminista (Ed. Companhia das Letras), organizado por Heloisa Buarque de Holanda.
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