Mães e familiares de jovens mortos pelo Estado têm trajetória difícil para manter vivas as memórias de seus filhos | Foto: Observatório de Favelas

Protagonizada por mulheres, luta pela memória de jovens assassinados é registrada em pesquisa inédita

“Tecendo Memórias”, do Observatório de Favelas, relembra trajetória de jovens mortos pelo Estado e destaca rituais de memória; luta de mães é marca comum entre as narrativas

Por Lola Ferreira*

  • Narrativas positivas

    ver mais

Davison Lucas, Marcus Vinícius, Sidney, Rodrigo… Estes são alguns dos jovens assassinados pelo Estado que têm suas histórias contadas na pesquisa “Tecendo Memórias”, do Observatório de Favelas, lançada este mês. O trabalho possui quatro objetivos: contar a trajetória de vida desses rapazes, descrever a dinâmica da morte, explicar por que elas precisam de atenção e, por fim, contar a experiência de amigos e familiares no pós-morte. Neste ponto, há uma convergência: são as mulheres, em geral as mães, que lutam para manter viva a história de cada um desses meninos.

A “luta pela justiça”, como ficou conhecida a seara pelo reconhecimento da responsabilidade do poder público na morte de seus filhos, é protagonizada por mulheres e, de acordo com o relatório, diz respeito às várias formas de ativismo que elas encontram de acordo com o espaço que ocupam. São grupos de fortalecimento, atuação em mandatos políticos e também negociações com representantes do Estado.

“Os grupos de mães são o que as mantém de pé”, explica Thaís Gomes, pesquisadora do Observatório de Favelas. Mestranda em Serviço Social pela UFRJ, Gomes explica que a pesquisa optou por valorizar a memória e a trajetória dos jovens, pauta em geral ainda esquecida em pesquisas e debates: “É um desejo nosso incidir politicamente nesse campo [de memória e apoio], mas às vezes pode ser difícil criar instrumentos concretos”. 

[+] Leia também: 8 Mulheres no front

Narrativas positivas

Para tentar furar essa barreira, o Observatório de Favelas entendeu que para falar desses jovens não era necessário seguir a linha “da dureza”. E conseguiu. Um dos instrumentos concretos mapeados pela pesquisa foi o time de futebol Família Bicó, criado pelos amigos em homenagem a Fernando, de 15 anos, morador de Japeri (RJ), morto por “bala perdida” durante uma operação do Bope (Batalhão de Operações Especiais). A mãe de Fernando, ou Bicó, como era chamado pelos amigos, é a torcedora mais assídua do time nas competições amadoras.

“É também uma forma de manter contato com esses amigos, que também são negros e moradores da Baixada Fluminense. É importante que eles pensem em Segurança Pública no seu cotidiano”, explica Gomes, completando que a lembrança de Fernando e a dinâmica das mortes de jovens como ele mantêm viva a ideia de que é necessário observar a segurança por uma outra ótica.

Para Raquel Willadino, diretora do Observatório de Favelas, a pesquisa “Tecendo Memórias” também tem um papel fundamental de desnaturalizar o homicídios de jovens como Fernando.

“No Brasil, são muito frequentes processos de naturalização dos homicídios e hierarquização do valor da vida vinculados ao perfil de quem está morrendo. A produção de narrativas e de intervenções artísticas sensíveis no campo da memória nos possibilitam dialogar sobre o tema com públicos mais amplos. Consideramos que este enfoque é importante para incidir no debate público e desnaturalizar essas mortes”, explica à Gênero e Número.

[+] Leia também: Racismo agrava cenário de mortes anunciadas

Do ponto de vista institucional, Willadino explica que a pesquisa também quis fugir da homogeneização do perfil dos jovens que tiveram suas histórias contadas. Mas em nenhum momento foi possível abrir mão dos marcadores de classe, raça e idade que são pontos em comum entre eles. 

Por isso, apesar do objetivo ser preservar a memória, também há material disponibilizado nas quase 180 páginas para incidir em políticas públicas: “A pesquisa possibilitou uma análise de questões raciais, de gênero, de sexualidade, etárias e territoriais relacionadas à violência letal, bem como sobre a atuação do Estado neste processo”.

A diretora destaca a “priorização de políticas de controle de armas e munições, e das dimensões raciais, etárias, de gênero, sexualidade e territoriais nas políticas preventivas” como alguns dos desdobramentos possíveis do documento. 

Com as mães, avós, tias, esposas e outras familiares na linha de frente da luta por justiça, outro ponto futuro de discussão, depois da preservação da memória, é a luta pela saúde mental dessas mulheres. O primeiro passo — resumi-las não só em morte — parece ter sido dado. “É significativo elas saberem que existem um espaço em que a vida do filho importa”, finaliza Gomes. 

*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.

Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.

Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.

A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.

Quero apoiar ver mais