Ilustração: Catarina Bessel / Gênero e Número

8 Mulheres no front

Neste Dia Internacional da Mulher, a Gênero e Número destaca 8 mulheres atuantes na defesa dos direitos em disputa na atual política brasileira

  • Da maternidade à luta por justiça

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  • UPPs, atiradores de elite e pacote anticrime

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  • Moro e o Judiciário que cancela audiências por falta de gravata

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  • Professora e protagonista contra o Escola sem Partido

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  • Escola Sem Partido 2.0

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  • Professores na mira

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  • Católica e feminista pelo direito ao aborto

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  • Católicas pelo Estado laico e pelos direitos LGBT+

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  • Uma (jovem) jornalista empenhada no acesso à informação pública

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  • Transparência em risco?

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  • Controle e impacto social

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  • Em defesa das terras e das vidas indígenas

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  • Sem diálogo

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  • Cientista que enxerga além dos números de homicídio

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  • Mais armas, mais mortes

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  • Vítimas ocultas da violência

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  • Economia feminista pelo direito à aposentadoria

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  • Aposentadoria para privilegiados

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  • Foco na receita, não na despesa

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  • Ciência pela vida e contra os venenos

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  • Pesquisa com impacto

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  • Expediente

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Ana Paula, ara mirim, Barbara, Fernanda, Maria Vitória, Maria José, Marilane e Silvia são oito entre as mais de 100 milhões de mulheres que encaram todos os dias no Brasil os obstáculos e as violências endereçadas a elas devido a seu gênero. No entanto, além do machismo, elas enfrentam outras batalhas, expressas em suas escolhas profissionais e de ativismo. Elas estão no front de disputas diversas, enfrentando ou debatendo violência policial, direitos indígenas, políticas de agrotóxicos, educação sem mordaça, transparência pública, direitos reprodutivos, direitos trabalhistas e violência armada.

A Gênero e Número traz neste 8 de março retratos e vozes destas oito mulheres que são a antítese do que defende o governo de Jair Bolsonaro (PSL). Em texto e vídeo, elas expõem suas trajetórias e os argumentos que sustentam suas posições. E nos lembram, como as milhares de mulheres que vão às ruas do Brasil e do mundo hoje, que juntas andamos melhor.

Da maternidade à luta por justiça

Ana Paula Oliveira é a face materna da política de enfrentamento que mata jovens negros nas favelas do Rio de Janeiro; integrante do grupo Mães de Manguinhos, ela afirma que o Judiciário brasileiro é a ‘segunda morte’, por negar justiça à família dos assassinados

Por Maria Martha Bruno

A saudade suscitada pela ordem não natural das coisas, que tira de uma mãe a vida de um filho, é o “revés do parto”, é o “arrumar o quarto do filho que já morreu”, nas palavras de Chico Buarque na música “Pedaço de Mim”, lançada em 1978. Uma vez instalada, a saudade ganha contornos únicos dentro do coração de cada mulher que passa pela experiência. Para Ana Paula Oliveira, o sentimento se vestiu de luta para manter vivo seu papel de mãe de Johnatha Oliveira, assassinado aos 19 anos com um tiro nas costas, às vésperas da Copa do Mundo de 2014, na favela de Manguinhos, Zona Norte do Rio de Janeiro.

“Lutar por justiça, por memória e pela verdade sobre os nossos filhos é uma forma de continuar exercendo nossa maternidade (…) Eu falo para as mães [que passaram pela mesma experiência]: nós vamos continuar sendo as mães deles. Vamos ser a voz deles, gritar por eles. Isso é uma forma de a gente continuar cuidando dos nossos filhos”, diz ela. Do alto da autoridade que a vida lhe conferiu por meio do trauma, Ana Paula afirma que “para falar sobre um filho, não há voz mais legítima que a de uma mãe”.  

Há quase cinco anos Ana Paula Oliveira aguarda uma decisão da Justiça sobre o crime, ocorrido em maio de 2014. Desde o primeiro semestre do ano passado, ela espera a marcação de audiência com júri popular para sentenciar ou absolver o policial militar Alessandro Marcelino de Souza, réu no caso. Sem sanções por este crime, ele hoje trabalha normalmente na corporação no Rio de Janeiro.

UPPs, atiradores de elite e pacote anticrime

Membro do grupo Mães de Manguinhos, que reúne outras mulheres marcadas por histórias semelhantes, Ana Paula Oliveira é uma das faces maternas de pelo menos 1.627 homicídios registrados até 2017 em áreas cobertas por Unidades de Polícia Pacificadora (UPP) no Estado do Rio de Janeiro. Segundo levantamento do G1 junto à Polícia Militar do Estado, a partir de 2014, ano do assassinato de Johnatha, o índice de mortes violentas nessas áreas triplicou. Até então, a política de pacificação, impulsionada pelo ex-governador Sérgio Cabral Filho desde 2008, era louvada por parte da imprensa e dos habitantes do Estado, que parecia acreditar que a solução para a violência na cidade seria manter o Estado presente nas favelas apenas na figura das forças policiais.  

Ana Paula lembra que o mesmo Estado que não se apresenta como provedor de serviços e cidadania aos moradores das comunidades do Rio é, no fim das contas, o responsável pela sua maior perda: “O mais difícil é saber que agentes do Estado, pagos com o nosso dinheiro, tiram a vida de pessoas injustamente, covardemente, com a plena certeza da impunidade. É saber que a vida do meu filho foi tirada por quem tinha o dever, a obrigação, de zelar pela vida dele”. Para ela, os policiais são “apenas a ponta do iceberg”, já que “agem com o aval do governo”.

Com a saída de Sérgio Cabral e seu grupo (assim como ele, o sucessor e seu então vice-governador Luiz Fernando Pezão também está preso) do comando do Estado, o Palácio Guanabara, sede do governo, foi ocupado por Wilson Witzel (PSC), com a promessa de responder com mais violência ao crônico problema da violência urbana no Rio. “A polícia vai mirar na cabecinha… e fogo”, disse o governador após ser eleito. Witzel é defensor do uso de atiradores de elite para executar sumariamente homens armados de fuzil, vistos com frequência pelas ruas da cidade. Aliado de Jair Bolsonaro, ele reza pela mesma cartilha de endurecimento de respostas das forças de segurança defendida pelo presidente.

As propostas de Bolsonaro para o setor – que incluem o decreto recém-promulgado para flexibilizar a posse de armas – também estão na iminência de ganhar um marco regulatório, na forma do projeto de lei anticrime apresentado em fevereiro pelo Ministro da Justiça e Segurança Pública, Sérgio Moro. Uma das mudanças propostas para o Código Penal previstas no texto propõe redução ou mesmo isenção de pena para qualquer cidadão caso o “excesso [doloso ou culposo] decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”.

Moro e o Judiciário que cancela audiências por falta de gravata

As intenções de Sérgio Moro não surpreendem Ana Paula Oliveira. E as críticas da mãe de Johnatha nada têm a ver a atuação do juiz nos processos relacionados ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. “Eu não esperava grande coisa do ministro Sérgio Moro, já que ele faz parte do Judiciário”, resume.

Perambulando por tribunais há quase cinco anos, Ana Paula tem sua força testada nesses espaços: “Eu sei o quanto é difícil estar naquele lugar, onde mais uma vez nossos filhos são assassinados. O Judiciário é isso aí: é injusto”. Ela conta que uma das inúmeras audiências a que compareceu chegou a ser cancelada porque o advogado do réu apareceu sem gravata e se negou a aceitar uma emprestada.

Para Ana Paula, a proposta do ex-juiz federal tem direcionamento claro: “é pra favela, é pro pobre, é pro negro (…) Imagine se todas as mães que tiveram seus filhos assassinados covardemente por esse Estado fossem agir dessa forma violenta e alegassem que foi por ‘forte emoção’, por ‘medo’?” O entusiasmo de parte da população com as ideias do ministro condimenta a tristeza: “É muito difícil ver que a sociedade apoia esses assassinatos. Porque são assassinatos. E sempre com a desculpa da legítima defesa”.  

Em tempos em que planos do governo federal (como o projeto de Moro) e estadual (como os atiradores de Witzel) se comunicam com a morosidade de sempre do Poder Judiciário, Ana Paula Oliveira só pode fazer um diagnóstico sobre seu ofício principal: “A luta hoje tem que ser dobrada”.

Professora e protagonista contra o Escola sem Partido

Por que o Escola sem Partido e a “ideologia de gênero” se tornaram o principal foco da professora Fernanda Moura, que mapeia projetos de lei e a tramitação nas casas legislativas

Por Maria Martha Bruno

O envolvimento da professora Fernanda Moura no combate aos projetos legislativos relacionados ao movimento Escola Sem Partido e à ideia de uma suposta “ideologia de gênero” em sala de aula começou por um motivo que acomete boa parte dos estudantes de pós-graduação: como minha pesquisa será útil? Em 2014, sua intenção ao ingressar para o Mestrado de Ensino em História na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) era analisar a visibilidade das mulheres neste setor da educação. Mas no meio do caminho ela se deparou com algo mais interessante. E urgente. “Quando vi que esses projetos começaram a pipocar nas casas legislativas, percebi que, se fossem aprovados, o objeto da minha pesquisa seria inútil”, relembra.

Desde então, a professora da rede pública de ensino do Rio de Janeiro fez da luta contra o conceito de “ideologia de gênero” e contra as acusações de doutrinação ideológica em sala de aula (base do movimento Escola Sem Partido) a principal ocupação de sua vida. “Isso me consome 24 horas por dia, sete dias por semana”, conta. Membro do coletivo Professores Contra o Escola sem Partido, ela participa do mapeamento de todos os projetos legislativos relacionados a ambos os assuntos em nível federal, estadual e municipal. Em abril do passado, a Gênero e Número partiu do levantamento do grupo para mostrar que houve um salto na apresentação desse tipo de propostas em 2017.

Além de mapear novos projetos de lei, Moura e seus colegas no coletivo acompanham o status daqueles já apresentados. O próximo passo do trabalho é encaminhá-los para as instâncias competentes – jurídicas ou políticas. “Há cidades que sequer têm sindicato de professores. Então precisamos avisar a sindicatos de âmbito nacional para que atuem”, explica.  

Escola Sem Partido 2.0

Em dezembro, a comissão especial da Câmara dos Deputados que discutia o projeto “Escola sem Partido” encerrou os trabalhos sem votar o parecer do relator sobre a matéria. A proposta de autoria do deputado Flavinho (PSC/SP) foi, então, arquivada. O texto previa “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa” e vedava o uso dos termos “gênero” ou “orientação sexual” no ambiente escolar.

Na nova legislatura, a deputada Bia Kicis (PSL/DF) apresentou uma “versão 2.0” do projeto, que inclusive prevê a gravação de aulas, medida tomada como forma de patrulhamento por alguns educadores. Por outro lado, para a parlamentar (cunhada do advogado Miguel Nagib, um dos criadores do movimento “Escola sem Partido”), as escolas privadas “que atendem a orientação confessional e ideologia específicas poderão veicular e promover conteúdos de cunho religioso, moral e ideológico autorizados contratualmente pelos pais ou responsáveis pelo aluno”.

Professores na mira

O trabalho de Fernanda Moura também inclui a produção textos e vídeos para visibilizar a questão e alimentar o debate público, e a prestação de auxílio aos professores vítimas do denuncismo fomentado inclusive por parlamentares. “É preciso mostrar a perseguição que está havendo. Há muita gente que ainda não acredita que isso esteja acontecendo”, conta. Moura relata que a maioria das vítimas atendidas pelo grupo são mulheres, muitas ameaçadas de morte, agressão física e estupro: “Sabemos que é muito mais fácil perseguir e falar atrocidades contra uma mulher do que contra um homem”.

A perspectiva da professora sobre o desenrolar do tema no país é negativa. Além de acreditar que projetos relacionados ao movimento “Escola Sem Partido” e ao combate à ideia de “ideologia de gênero” podem ser aprovados no Congresso Nacional, ela também se preocupa com a possibilidade de criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre os temas, proposta em 2017 pelo deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL/SP): “[Com a CPI] Haveria professores sendo inquiridos por parlamentares em cadeia nacional. Professores acusados de sexualizar alunos, de transformá-los em gays, em macumbeiros – porque também falam que a gente faz doutrinação em umbanda e candomblé. Esse tipo de coisa será veiculada na mídia, as pessoas vão acreditar e isso terá efeitos na vida dos professores”.

Fernanda Moura não se dedica 24 horas por dia a essas questões à toa. O radar da mobilização de professora também teve que incluir recentemente a medida provisória para regulamentar a educação domiciliar, que está sendo preparada pelo Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, comandado por Damares Alves. Preocupada com a proposta, ela lembra que a maioria dos casos de abuso sexual se dá dentro de casa, e advoga pelo papel da escola como agente central de suporte às vítimas. “A escola costuma ser o único ambiente onde essas crianças encontram algum acolhimento e descobrem que aquilo é ilegal, é crime (…). Se a gente tira essas crianças da escola, elas vão continuar sofrendo violência e sendo abusadas”, alerta.

Com os conceitos de “ideologia de gênero” e “doutrinação ideológica nas escolas” tão difundidos e consolidados entre boa parte da população e nas forças predominantes da política brasileira – começando pelo presidente da República – a professora enche os pulmões para dizer, quase que em forma de apelo: “As pessoas não podem acreditar que existe doutrinação para transformar crianças em gays e lésbicas! Não podem acreditar que a gente está incentivando a sexualização precoce! Pelo contrário! A escola é o lugar onde elas têm o acolhimento contra a sexualização, que geralmente é feita em casa, pela família ou pela mídia”. Ela lembra que boa parte das crianças têm contato com a internet sem supervisão, algumas inclusive com acesso a sites de pornografia. E novamente é assertiva: “Quando um estudante começa a discutir gênero e sexualidade na escola na adolescência, às vezes desde a infância ele já consome pornografia em casa ou sofre abuso. Então é a escola que sexualiza essas crianças? Nada corresponde menos à verdade do que isso”.

Católica e feminista pelo direito ao aborto

Cofundadora da ‘Católicas pelo Direito de Decidir’, Maria José Rosado aproxima, desde a década de 90, a fé católica da defesa da legalização do aborto no Brasil, o que é rechaçado no atual governo, inclusive pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos

Por Carolina de Assis

Foi dentro da Igreja Católica que Maria José Rosado se fez feminista. Como freira, esteve no Acre e no sertão da Bahia e se deparou com a cotidianidade da violência doméstica cometida por homens contra suas companheiras e do abandono paterno, que deixa filhas e filhos a serem criados por mães que se desdobram para sustentá-los. “A realidade disso no cotidiano das mulheres me tornou feminista e me fez defender os direitos que as mulheres devem ter em todos os âmbitos”, afirma Rosado.

Rosado decidiu se dedicar com afinco aos direitos reprodutivos – especificamente, o direito ao aborto. Há pelo menos 25 anos, a socióloga e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) une sua fé católica à defesa da legalização do aborto no Brasil, dois aspectos que recorrentemente são colocados como antagônicos no debate público por religiosos conservadores e como complementares por Rosado e suas companheiras na organização Católicas Pelo Direito de Decidir, fundada em 1993.

Rosado é uma das fundadoras da ONG, que faz parte de uma rede latino-americana de católicas pró-aborto, com organizações de mesmo nome presentes em vários países da região. “Consideramos que era fundamental para a vida das mulheres que a gente as defendesse nesse âmbito da religião, como feministas que éramos e somos”, disse.

No momento da fundação da organização, era a Igreja Católica a principal força religiosa conservadora que atuava politicamente contra os direitos das mulheres. Hoje, são evangélicas as lideranças religiosas e políticas que têm essa primazia. Elas atuam em parceria com os católicos em casas legislativas em todo o país e no Executivo federal de um governo “terrivelmente cristão”, como se autoproclamou a pastora e atual ministra das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

Uma das primeiras falas de Alves ao ser anunciada ministra foi declarar que a aprovação do Estatuto do Nascituro no Congresso seria uma das prioridades do governo. O PL 478/2007 estabelece direitos ao feto, inclusive a “expectativa do direito à vida”, e reforça a criminalização do aborto no país, criando inclusive o crime de “fazer publicamente apologia do aborto ou de quem o praticou, ou incitar publicamente a sua prática”, a ser penalizado com detenção de seis meses a um ano e multa.

Em outra investida contra os direitos das mulheres, o Senado desarquivou em fevereiro a PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 29/2015, que altera o artigo 5º da Constituição Federal para estabelecer que o direito à vida é inviolável desde a concepção. Tal mudança significaria a revogação do direito ao aborto legal nos três casos previstos no país: quando a gestação é decorrente de estupro, quando a gestante corre risco de morte e quando o feto é anencéfalo.

A justificativa dos senadores para o desarquivamento da PEC é evitar que o STF (Supremo Tribunal Federal) decida sobre a legalização da interrupção voluntária da gestação, como pode fazer no julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que pede a descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação.

 

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Rosado participou da audiência pública sobre a ADPF realizada em agosto do ano passado e se pronunciou como católica e feminista perante ministros do Supremo e a sociedade brasileira em defesa do direito das mulheres ao aborto legal, seguro e gratuito. Do lado de Rosado estavam também especialistas em saúde pública, inclusive representantes do Ministério da Saúde, que afirmaram que cerca de 215 mil mulheres são internadas a cada ano no SUS e pelo menos 2.115 morreram entre 2008 e 2016 em decorrência de complicações de abortos inseguros.  

“A religião é muito poderosa, tanto junto ao Estado, pela força e pela influência que ela tem, como junto à população, pois ela atua na subjetividade das pessoas”, diz Rosado. E se a religião sustenta os argumentos antiaborto e anti-direitos reprodutivos das forças políticas conservadoras, ela também baseia a atuação de Rosado, das Católicas e de outras mulheres cristãs feministas.

“Nós também sustentamos as nossas posições em argumentos religiosos, só que são argumentos religiosos a favor da vida das mulheres, para que elas possam viver uma gravidez ou a interrupção de uma gravidez, o seu direito de querer ou não ser mãe, com toda liberdade e segurança”, ressalta.

Católicas pelo Estado laico e pelos direitos LGBT+

Outras causas das Católicas Pelo Direito de Decidir que podem surpreender quem insiste em uma percepção estreita do ativismo baseado na fé cristã são as defesas dos direitos da população LGBT+ e do Estado laico – a absoluta separação entre Estado e religião.

“Colocamos toda a nossa força em afirmar a sexualidade e a capacidade reprodutiva das mulheres como áreas sobre as quais nós temos que ter autonomia de decisão, e quando trabalhamos com a sexualidade trabalhamos também em favor da população LGBT+, para que as pessoas sejam livres para decidir de que forma elas querem viver sua sexualidade”, explica Rosado.

A mesma liberdade defendida para a vivência da sexualidade e da vida reprodutiva está na defesa do Estado laico feita pelas Católicas. “Ser a favor da laicidade do Estado não é estar contra a religião, ao contrário. Um Estado teocrático, que se rege por uma única religião, é uma forma de Estado que exclui outras religiões”, explica Rosado. “Um Estado que não privilegia nenhuma religião é aquele que de fato permite que todas as religiões funcionem adequadamente no seu território. Então nós somos favoráveis à laicidade do estado e consideramos que isso é fundamental à democracia.”

Democracia que Rosado vê ameaçada no Brasil desde o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff, em 2016. A quem se interessa em defendê-la, ela lembra que, à parte o clichê, a força está na união. “Acho que é muito difícil, no contexto de ameaça à democracia e desrespeito à Constituição, que ações individuais tenham força política. O fundamental é a gente mostrar isso e dizer às pessoas que é necessário que elas constituam coletivos ou entrem em coletivos existentes, e a partir daí realizem ações a favor da manutenção de um Estado democrático de direito neste país.”

Uma (jovem) jornalista empenhada no acesso à informação pública

Para Maria Vitória Ramos, diretora do Fiquem Sabendo, a sociedade conhecer o valor da transparência pública é o maior ‘armamento’ contra os retrocessos do atual governo

Por Vitória Régia da Silva

A jornalista Maria Vitória Ramos entrou em contato com o tema da transparência pública e com a Lei de Acesso à Informação (LAI) em 2017, ainda como estudante da Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Naquele ano não havia esforço no Palácio do Planalto para reduzir a transparência de dados, e o evento que marcava os cinco anos da lei, realizado por organizações como Conectas, Abraji e Artigo 19, debatia outros desafios, como qualidade dos dados e a ampliação de acesso dos dados públicos por cidadãos. “Pela primeira vez, eu vi profissionais de áreas diferentes que usavam uma mesma ferramenta para promover o desenvolvimento social”, afirmou.

A Lei de Acesso à Informação, que entrou em vigor em 2012, garante a qualquer cidadão o direito de acesso às informações públicas dos órgãos e entidades estatais, sem que seja preciso apresentar justificativas. “A LAI é a principal ferramenta de transparência pública que temos no Brasil”, destacou Ramos. “Ela é necessária para termos acesso aos dados básicos que necessitamos para tomada de decisões e para aplicar políticas públicas que fazem de fato sentido”, complementou. Seu interesse transformou completamente sua profissão, e hoje ela atua como diretora e repórter do Fiquem Sabendo, uma agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação.

O Fiquem Sabendo surgiu em 2015, idealizado pelo jornalista Léo Arcoverde, como um portal de notícias que utilizava dados via Lei de Acesso à Informação. Em julho de 2018, já com a presença de Maria Vitória na diretoria, houve uma reposicionamento para que a organização fosse estruturada como agência de dados especializada em transparência e dados públicos. “Como trabalhamos com licença creative commons [que permite compartilhamento sem custos, pois trata-se de licença aberta], decidimos focar nosso trabalho em fazer o levantamento de dados e divulgá-los para que os veículos possam se apropriar dos dados e reconstruir a narrativa”, explicou. Na última semana, a agência lançou o projeto Sem Sigilo, que promete revelar documentos e informações até o momento classificadas como sigilosas, mas cujo período de proteção já foi expirado.

Transparência em risco?

A Lei de Acesso à Informação tem como premissa que o acesso é a regra e o sigilo, a exceção. Apresenta protocolos que permitem, desde que implementados, uma ponte entre entre o governo e a sociedade, por meio de informação gerada por diferentes órgãos, sejam esses ministérios, secretarias etc. Mas no primeiro mês do governo Bolsonaro, um decreto presidencial – assinado em 24 de janeiro pelo vice-presidente Hamilton Mourão, então presidente em exercício – ampliou o poder de classificação de informações em grau ultrassecreto (aqueles que podem ser guardados por 25 anos) para ocupantes de cargos em comissão do Grupo-DAS de nível 101.6 ou superior,  que são cargos comissionados – onde estão os secretários de ministérios, além de dirigentes máximos de autarquias, de fundações, de empresas públicas e de sociedades de economia mista. Antes do decreto, apenas presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado, comandantes das três Forças e chefes de missões diplomáticas e consulares no exterior podiam classificar a informação como ultrassecreta. O decreto presidencial também ampliava a relação de comissionados que poderão conferir a informações públicas os graus secreto (de 15 anos) e reservado (5 anos).

“O decreto é uma demonstração de como o governo enxerga o papel da Lei de Acesso à Informação e sua relação com o governo. Ele não tem muito propósito, além de comprometer a transparência pública. Não ajuda a legislação e não tem nenhuma justificativa que não seja diminuir a transparência”, pontua a jornalista. O decreto previa que mais de 1200 servidores comissionados pudessem ser delegados a classificar informações como sigilosas.

Com a péssima repercussão, o governo voltou atrás e revogou o decreto. Após sofrer uma derrota política no plenário da Câmara com a aprovação de um projeto que, referendado também pelo Senado, tornou sem efeito o decreto que alterava as regras de transparência, o presidente Jair Bolsonaro decidiu por voltar atrás. A revogação foi publicada no Diário Oficial da União na quarta-feira (27).

“É importante para as próximas gerações o fato de termos conseguido barrar o decreto, porque só iríamos descobrir daqui 25 anos as suas consequências e poderia ser tarde demais, com milhares de documentos já sob sigilo”, avaliou. A jornalista ainda destacou a importância da comoção popular pela defesa da legislação, pois nas redes sociais o assunto se tornou comentado, repercutiu e aumentou o alcance das manifestações contrárias ao decreto.

Controle e impacto social

O trabalho de Maria Vitória Ramos, para além do Fiquem Sabendo, está em evidenciar a transparência pública e promover o acesso dos veículos de comunicação e dos cidadãos às informações e dados públicos. Segundo a jornalista, a transparência pública deve ser um conceito que permeia todas as ações do poder público em todas suas áreas e iniciativas. “Ela [a transparência] é fundamental no sentido de restituir o poder da democracia para a população.”

Ramos ainda cita a importância de disponibilizar ferramentas de controle social que ajudam na transparência pública como a LAI, que permite que o cidadão entre no portal da transparência, tenha acesso aos dados  e até mesmo identifique alguma divergência, como um desvio de verba. “Com a LAI, o cidadão, sozinho, pode causar um impacto que de fato vai mudar alguma coisa”, destacou.

Segundo ela, os dados podem servir de “munição” para resolver problemas sociais e o  acesso a informação é um trabalho de base para conseguir conquistar direitos “Toda a discussão da LAI neste ano tem mostrado que uma parte da população parece estar ciente da lei e de sua importância. A sociedade conhecer o valor do tema que a gente trabalha é o nosso  maior armamento contra os retrocessos do governo.”

Em defesa das terras e das vidas indígenas

ara mirim é uma das lideranças da aldeia guarani Tekoá Pyau, no Alto do Jaraguá, em São Paulo, e usa sua voz para reivindicar um direito garantido na Constituição: manter seu território

Por Lola Ferreira

O artigo 231 da Constituição brasileira de 1988 reconhece aos índios “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam” e define que cabe à União “demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens”. Mas não é isso que vem acontecendo. ara mirim, uma das lideranças da aldeia Teoká Pyau, no Alto do Jaraguá, em São Paulo, têm se dedicado a exigir que o Estado faça a sua parte e garanta aos cerca de 600 guaranis que ali vivem um direito básico: o direito à vida.

Atualmente vivendo em uma área de 1,7 hectares, os guaranis das seis aldeias do Jaraguá reivindicam todos os 532 hectares da região deste 2017, quando começou o impasse sobre as terras. Na ocasião, o Ministério da Justiça revogou a portaria 581/2015, que dava a posse de toda a terra e ampliava os direitos dos indígenas do Jaraguá.

Ainda antes do início desse imbróglio, ara mirim se tornou uma voz potente e uma liderança na luta pelos direitos indígenas. Em 2013 participou de um protesto que fechou a rodovia Bandeirantes, em São Paulo, buscando a demarcação das terras guaranis às margens da rodovia. Desde aquele ato, e por perceber que a maioria dos porta-vozes dos indígenas era de homens, ela não parou mais. Sua principal bandeira é a luta pela demarcação das terras indígenas, mas também está atenta às necessidades de seu povo em relação a saúde e saneamento básico.

“A demarcação de terras é feita para a sobrevivência desses povos. Quando não tem a demarcação essas áreas ficam expostas a qualquer tipo de crime: invasões, grileiros, pistoleiros, fazendeiros. Quando a demarcação é feita, essas comunidades indígenas ficam um pouco protegidas”, explicou.

A terra do Jaraguá, onde vive ara mirim e seu povo, fica localizada em uma área urbana, o que dificulta ainda mais o processo de demarcação porque há defesa de outros interesses: “Nas áreas em que não têm latifúndio muito grande, mas que estão dentro de uma área urbana, o governo vê como se não valesse muita coisa para nós, mas para ele vale muito porque a especulação imobiliária é muito grande. Então surge esse conflito entre governo e população indígena”, afirmou.

Sem diálogo

A líder guarani acompanha com atenção as investidas do atual governo federal contra os povos indígenas e destaca uma fala do então presidente eleito Jair Bolsonaro em novembro passado. Na ocasião, ele questionou: “Por que no Brasil temos que mantê-los [índios] reclusos em reservas, como se fossem animais em zoológicos?”. ara mirim explicou que não se trata de reclusão, mas de reivindicação: as demarcações deveriam ter sido concluídas há muitos anos.

No primeiro dia de governo, Bolsonaro editou a Medida Provisória 870, que determinou que “a identificação, a delimitação, a demarcação e os registros das terras tradicionalmente ocupadas por indígenas” passasse da Funai (Fundação Nacional do Índio) para o Ministério da Agricultura, pasta que dialoga com o agronegócio nacional e é comandada pela ruralista Tereza Cristina. “O Ministério da Agricultura é um ministério que não nos representa e nunca vai nos representar”, disse ara mirim. “[A demarcação] estar em um ministério que mexe com água, gado, soja, agropecuária e agronegócio não tem sentido.”

A Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) entrou com representação na Procuradoria Geral da República para suspender o trecho da medida provisória que determina a transferência. Sem as demarcações, a Funai mantém suas funções secundárias: coordenação e implementação das políticas de proteção aos povos indígenas, principalmente na garantia dos direitos sociais e de cidadania, e a preservação aos seus costumes, além de assistência jurídica e estudos sobre a política indigenista.

A Funai também saiu do Ministério da Justiça e passou a integrar o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, liderado por Damares Alves. Recentemente, a ministra viu seu nome no meio de denúncias envolvendo o suposto rapto de crianças indígenas por membros da ONG Atini, da qual ela é cofundadora. A organização é alvo de uma série de ações judiciais que trata da retirada de crianças indígenas de suas aldeias e familiares. A própria Alves passou a criar irregularmente uma criança kamayurá em 2004 quando esta, aos seis anos, foi levada à cidade para tratamento dentário, conforme reportou a revista Época.

“Tudo que sai da boca dela [de Damares] é sem valor para nós. É uma pessoa totalmente inversa ao cargo que ela exerce”, disse ara mirim sobre a ministra. Ela também lamenta a falta de diálogo que se impôs nos últimos dois meses com o governo.

“Nos anos passados a gente ainda tinha conversa com o governo. Era difícil, sempre foi difícil, em todo governo. Era através de luta, mas você conseguia entrar lá à força, ou eles mandavam representantes. Sempre teve esse lado ruim do governo, mas dava para ter um pouco de conversa. Hoje, não, as portas se fecharam”, afirmou.

A liderança guarani também acredita que as falas de Bolsonaro fomentam o ódio em fazendeiros e interessados nas terras dos indígenas.

“Às vezes eu fico pensando que governo é esse que quer matar populações. O que fizemos para ele afrontar as populações e lideranças? O que fizemos para ele implantar o ódio nas pessoas a ponto delas acharem que agora podem fazer o que querem?”, questionou, citando o caso do Cacique Babau Tupinambá, que tem recebido ameaças de morte e pediu recentemente proteção ao Estado.

Sem saber a resposta para dúvidas que deveriam ser facilmente sanadas, ara mirim destaca que a falta de conhecimento sobre a importância das terras para os povos acarreta em decisões como as que Bolsonaro tomou até agora. Por isso, ela e outros líderes pretendem seguir com denúncias e tentar abrir o diálogo com o Planalto e os ministérios envolvidos.

“O presidente falou que somos iguais e somos, sim, seres humanos também. Se somos iguais a todos os brasileiros, por que devemos morrer na mão de pistoleiros e ter nossas terras invadidas? Estamos lá, só isso. Todos temos direitos, e direitos conquistados. E é importante seguir a Constituição, a não ser que façam uma nova. Mas enquanto aqueles direitos estão valendo, tem que fazer valer os direitos que estão lá.”

Cientista que enxerga além dos números de homicídio

Para a pesquisadora Silvia Ramos, é inaceitável acreditar que onde tem mais armas, tem mais segurança

Por Vitória Régia da Silva

“O Brasil é um país doente.” A triste e pertinente análise de um país que ultrapassou a marca dos 60 mil homicídios em um ano é da cientista social Silvia Ramos, que se dedica há mais de 30 anos à pesquisa sobre violência urbana e segurança pública.

À frente do Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) desde sua fundação, em 2000, e do Observatório da Intervenção, que acompanhou os desdobramentos, os impactos e as violações de direitos decorrentes da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro em 2018, Ramos é uma das especialistas no tema que se opõe à flexibilização do acesso a armas de fogo – objeto de um dos primeiros decretos assinados pelo presidente Jair Bolsonaro.

Não houve nenhuma crise nos últimos anos. Nós mantemos esses números altíssimos de homicídios há muitos anos”, comentou Ramos sobre os 62.517 homicídios em 2016 registrados pelo Atlas da Violência 2018, produzido pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Nunca enfrentamos esse tema [da violência], diferentemente de outras temáticas, como fome, inflação e temas de saúde como o HIV/AIDS. (…) Temos convivido com a matança como se isso fosse normal há muitos anos.”

Ramos avalia que o não enfrentamento à violência se deve a quem são as vítimas. Ainda de acordo com o Atlas da Violência 2018, 71,5% das pessoas que foram assassinadas no Brasil em 2016 eram negras (as armas de fogo foram a causa de morte em 71% do total de homicídios). “O tema da violência se tornou um tema dos ‘outros’, da favela e dos negros. Essa discrepância de reação a depender de quem é a vítima está na raiz, na origem da nossa barbárie, na ideia que algumas vidas não importam”, afirmou.

A pesquisadora ressaltou a importância de observar o contexto e levantar dados, mas acredita que o alcance desta estratégia é limitado. Por isso, disse que a pesquisa deve ser aliada da população e destacou o protagonismo de jovens e grupos ativistas de favelas, que “tomaram a palavra” e falam na “primeira pessoa” para denunciar a violência armada e policial.

Mais armas, mais mortes

Tendo como um dos símbolos de sua campanha eleitoral à Presidência o gesto em alusão a armas de fogo, o então candidato Bolsonaro tinha a liberação das armas como um de seus carros-chefes e propôs em seu plano de governo o armamento da população como solução para a segurança pública. Depois de vencer as eleições, chegou a falar em revogar o Estatuto do Desarmamento, o que precisaria de aprovação do Congresso Nacional.

Ao tomar posse, o presidente Bolsonaro assinou então um decreto – que depende apenas do Poder Executivo – que flexibilizou as regras de posse de armas. A medida, em vigor desde o dia 15 de janeiro, permitiu que cada cidadão tenha a posse de até quatro armas de fogo, definiu que não é mais necessário o aval da Polícia Federal para a posse e ampliou a validade do registro das armas de 5 para 10 anos, entre outras medidas.

“É uma mensagem simbólica de alguém comprometido com as ideias da indústria das armas e com a ideia de que respondemos a violência com mais violência. É mais uma tentativa eleitoreira de dar uma resposta aos setores que acreditam nisso do que uma política de redução de violência”, avaliou Ramos.

Embora uma das justificativas do presidente e de defensores da flexibilização do acesso a armas de fogo seja o direito à legítima defesa, a pesquisadora é categórica ao afirmar que onde há mais armas, há mais mortes. “É inaceitável acreditar que onde tem mais armas, tem mais segurança, porque vai contra todas as evidências e parâmetros. É lógico que onde tem uma arma de fogo presente, o risco de que alguém a utilize de forma letal é muito maior, seja tentando se defender ou atacar.”

 

Vítimas ocultas da violência

Dados do Ministério da Saúde mostram que as mulheres são as principais vítimas de agressão por arma de fogo cometidas por pessoas com quem mantinham ou mantiveram anteriormente relações amorosas, como companheiros (92%) e ex-companheiros (96%), como a Gênero e Número divulgou com exclusividade em janeiro. Os números corroboram a preocupação de especialistas em segurança pública como Ramos com as possíveis consequências de uma maior disseminação das armas de fogo.

A pesquisadora ressalta que é preciso observar o possível impacto do decreto a partir de certas dinâmicas de violência. Uma arma em casa pode ser um recurso do parceiro ou ex-parceiro agressor em situações de violência doméstica, exemplificou. “Se um agressor souber da existência de uma arma de fogo [em casa], a chance dessa mulher morrer na tentativa de buscar essa arma ou de que o agressor utilize essa arma contra ela e outras pessoas da casa é muito alta.”

O impacto da violência armada sobre as mulheres, porém, não se resume à violência doméstica ou ao feminicídio, sublinhou Ramos. Os homens assassinados (92% das vítimas em 2016) muitas vezes ao morrer deixam mulheres em situação de desamparo emocional e econômico. “Por mais que as vítimas sejam predominantemente masculinas, todos os homens mortos ou presos têm mães, esposas, filhas. Para cada vítima que morre, existem vítimas ocultas pela violência por muitos anos. Temos pensado muito pouco que para cada homem que morre, ele deixa um conjunto de mulheres afetadas e mobilizadas por aquela morte de uma forma que não temos sido capaz de mensurar”, afirmou.

Ela destaca também o papel das mulheres, especialmente as negras, na luta por justiça para a violência armada patrocinada pelo Estado, já que elas são a maioria das mães que buscam justiça para seus filhos assassinados por policiais e agentes de segurança. “Só quando aparece uma mulher que diz que vai dedicar sua vida a buscar justiça para seu filho, e explicita a carga do que significa essa morte, temos a dimensão da quantidade de mulheres vítimas ocultas da violência no Brasil.”

Economia feminista pelo direito à aposentadoria

Para Marilane Teixeira, reforma da Previdência do governo Bolsonaro pretende equilibrar contas públicas tirando recursos da aposentadoria da população mais pobre

Por Carolina de Assis

A economista Marilane Teixeira é taxativa: as mulheres estão em desvantagem em relação aos homens no mundo do trabalho em todos os indicadores. A afirmação é atestada pelos dados mais recentes da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) Contínua do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) referentes ao último trimestre de 2018: o nível de ocupação é menor e o desemprego é maior entre mulheres do que entre homens, elas somam menos horas de trabalho remunerado e recebem em média 22% a menos do que eles.

 

 

 

As mulheres também se dedicam mais e investem o dobro de horas investidas pelos homens às tarefas – não remuneradas – de cuidado do ambiente doméstico e de pessoas, especialmente crianças, idosos e pessoas com necessidades especiais. É essa desigualdade, inclusive, que justifica a diferença na aposentadoria de mulheres e homens – pelas regras atuais do regime geral da Previdência, elas podem se aposentar aos 60 anos e eles aos 65 anos, desde que tenham somado 15 anos de contribuição ao INSS (Instituto Nacional do Seguro Social).

“O fato de elas se aposentarem antes deles não significa que elas trabalharam menos”, explicou a economista. “Quando você soma a jornada remunerada com a jornada de trabalho não pago realizado em casa, as mulheres têm em média de 5 a 6 horas a mais na jornada total [semanal] na comparação com os homens.”

Aposentadoria para privilegiados

Teixeira se dedica ao tema do trabalho e dos direitos trabalhistas desde os tempos de militância no movimento estudantil no Rio Grande do Sul, Estado em que nasceu e cresceu. A proximidade e o posterior envolvimento com o movimento sindical a levaram ao entendimento das relações de trabalho como centrais na organização do mundo contemporâneo. A perspectiva de gênero também não tardou a se impor e encaminhou a pesquisadora do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp para o campo da economia feminista.

É essa trajetória de militância e pesquisa que informa a avaliação da economista da reforma da Previdência proposta pelo governo de Jair Bolsonaro: “uma perversidade”. Entre as medidas criticadas por Teixeira estão o aumento do tempo mínimo de contribuição para a aposentadoria por idade e para a aposentadoria integral.

No regime previdenciário geral em vigor, mulheres podem se aposentar aos 60 e homens aos 65 caso tenham 15 anos de contribuição ao INSS, e o valor da aposentadoria é a média dos salários recebidos nos anos de contribuição. Na proposta de Bolsonaro, mulheres passam a poder se aposentar aos 62 anos e os homens mantêm os 65, porém passa a 20 o mínimo de anos de contribuição que precisam somar para se aposentar pela idade mínima. Mas mesmo com a idade mínima e os 20 anos de contribuição, a aposentadoria passa a ser 60% da média dos salários recebidos nos anos anteriores. Está previsto um aumento de 2% neste valor a cada ano a mais de contribuição, e o valor integral só será alcançado caso a trabalhadora ou o trabalhador somar 40 anos contribuindo.

Segundo Teixeira, atualmente, a média de anos de contribuição de quem se aposenta pela idade mínima é de 19 anos – 18 somente as mulheres, 20 entre os homens. Isso significa que, em média, uma mulher que se aposenta aos 60 anos no Brasil, hoje, tem 18 anos de contribuição. Esta não é a soma dos anos em que ela trabalhou, mas sim o período em que conseguiu contribuir ao INSS, o que significa trabalho formal, com carteira assinada, ou contribuição individual.

A reforma em tramitação na Câmara dos Deputados propõe que esta mulher trabalhe e contribua por mais dois anos para chegar à nova idade mínima e ao novo tempo mínimo de contribuição e, ao se aposentar, receba pouco mais do que a metade da média dos salários que recebeu nos anos anteriores. Para se aposentar com 100% deste valor, ela teria que trabalhar e contribuir ininterruptamente por mais 20 anos – ou seja, se aposentaria aos 82 anos de idade.

Teixeira avalia que, no cenário trabalhista e econômico brasileiro, de alta informalidade, seguidas crises e desemprego flutuante, “não é fácil” somar os anos de contribuição exigidos hoje. O aumento do tempo mínimo de contribuição e os 40 anos para alcançar a aposentadoria integral representariam um fardo para trabalhadoras e trabalhadores, e atingiria as mulheres especialmente pela posição de desvantagem em que se encontram no mercado de trabalho.

“Ninguém vai conseguir alcançar 40 anos de contribuição com a irregularidade do mercado de trabalho. Você fica desempregado por meses, ou entra pelo mercado informal… Então quem é que tem 40 anos de contribuição? Só quem entrou e ficou no mesmo emprego a vida inteira”, afirmou. “Essa pessoa que ficou 40 anos no mercado de trabalho, nunca enfrentou desemprego ou informalidade, é uma privilegiada, é uma minoria.”

Foco na receita, não na despesa

Segundo o Ministério da Economia, o Regime Geral da Previdência Social (RGPS) teve déficit de R$ 195,2 bilhões em 2018. A Previdência Social é responsável pela aposentadoria e por pensões e auxílios a trabalhadores do setor privado, e a necessidade de equilibrar as contas é a justificativa para a reforma proposta pelo governo Bolsonaro.

Se há déficit, há que se olhar não só a despesa, mas também a receita, apontou Teixeira. A economista lembrou que a dívida previdenciária de empresas públicas e privadas, fundações, governos estaduais e prefeituras com a União chega a R$ 476 bilhões. Além de recuperar esse valor, ela sugeriu que o governo reforce a fiscalização para evitar fraudes, como a sonegação de impostos por parte de empresas e a contratação informal para eludir o pagamento de benefícios trabalhistas.

Da maneira como está proposta, a economia nas contas da Previdência será feita com base nos mais pobres, avalia Teixeira.

“Como as pessoas não vão conseguir alcançar os 40 anos de contribuição [para se aposentar com o valor integral], elas vão postergar a decisão de se aposentar e vão acabar trabalhando o resto da vida. Aquelas que se aposentarem, porque inclusive não têm saúde para continuar trabalhando, vão se aposentar com metade do seu salário”, disse a economista, alertando para o agravamento da pobreza que a reforma pode acarretar.

“As pessoas ‘privilegiadas’ vão continuar tendo acesso aos melhores postos de trabalho, aos trabalhos mais estruturados, e vão conseguir chegar aos 65 anos e se aposentar integralmente ou, com base no seu salário, ter um fundo de previdência privada complementar que vai permitir ter uma renda mínima para viver o resto da vida. Para os outros, não vai sobrar nada. Por isso é fundamental reforçar um sistema de Previdência solidária, regulado de forma pública e com responsabilidade do Estado”, afirmou.

Ciência pela vida e contra os venenos

Bárbara Geraldino pesquisa no Instituto Nacional do Câncer o impacto dos agrotóxicos na saúde dos trabalhadores rurais e da população em geral; no momento em que tramita no Congresso o “PL do Veneno”, ela e suas companheiras seguem lutando pela agricultura que prioriza a população em detrimento do lucro

Por Lola Ferreira

Com a chegada do novo governo e a nomeação da deputada federal Tereza Cristina (DEM/MS) como titular do Ministério da Agricultura, o debate sobre o “PL do Veneno” voltou à tona, e o impacto dos agrotóxicos na vida humana, também. Uma das pessoas na linha de frente do estudo sobre esses problemas é Bárbara Geraldino. Atualmente ela tem duas principais linhas de pesquisa: a exposição de trabalhadores de postos de combustíveis ao benzeno e a exposição da população e, principalmente, dos trabalhadores rurais aos agrotóxicos.

Doutora em Engenharia Química pela UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e pesquisadora do Inca (Instituto Nacional do Câncer), Geraldino observa que uma das melhores formas de trabalhar a segurança em relação aos agrotóxicos é incluir o trabalhador rural na discussão, deixá-lo a par dos seus efeitos e fazê-los entender por conta própria o que está em jogo. A saúde do trabalhador, aliás, é uma das principais lacunas que o PL 6299/2002 deixa em aberto, de acordo com pesquisadores.

“Avaliamos alterações [na saúde] daqueles trabalhadores e os primeiros grupos a serem informados são eles mesmos, para que possam entender de forma simples os resultados das pesquisas e se sentirem inseridos nesse processo”, disse a pesquisadora. “Eles precisam participar, saber o que faz mal para a saúde, o que não pode ser feito. É importante que eles sejam de alguma forma notificados, esclarecidos que esses problemas acontecem e que eles também estão ali na ponta contribuindo para uma agricultura segura.”

Mas na contramão da avaliação de Geraldino, Tereza Cristina e o governo Bolsonaro têm priorizado mesmo é a aprovação e a liberação de novos agrotóxicos. De 1o de janeiro a 25 de fevereiro de 2019, 58 novos produtos foram liberados e tiveram aval publicado no Diário Oficial. Destes, 21 são classificados como altamente tóxicos. Em discussão no Senado Federal, a ministra afirmou que a velocidade nas aprovações agora acontece porque “a Anvisa resolveu trabalhar” e defendeu que o PL 6299/2002 vai garantir segurança aos consumidores.  A ministra, quando deputada, já era uma defensora ferrenha da aprovação do PL e comandou a comissão que permitiu o avanço da pauta no Congresso.

A principal crítica de pesquisadores ao PL 6299/2002 é a transferência dos poderes referentes à análise e licenciamento de agrotóxicos para o Ministério da Agricultura, função que antes cabia à Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e ao Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

Geraldino chama a atenção para os rumos que se desenham para a discussão em Brasília, e desta decisão tomada ainda no início do governo. O desejo dela é que o agronegócio não seja a principal voz no assunto: “É possível que ocorra reajustes para que a legislação fique mais permissiva, mas tem que ficar claro que é visando lucro”, avalia.

Na área há 20 anos, a pesquisadora já observou que o governo deveria ter outras prioridades em relação à legislação dos agrotóxicos que não fossem o aumento das permissões.

“A nossa legislação poderia ser mais restrita principalmente em relação ao princípio da precaução: quando não se tem certeza se o agrotóxico causa algum problema, o uso deveria ser automaticamente suspenso. Também o processo de reavaliação toxicológica, dos agrotóxicos que já foram banidos não deveria nunca ser condescendente de forma que pudessem voltar rapidamente à utilização devido à pressão do governo e do agronegócio”, avalia a pesquisadora.

Pesquisa com impacto

Geraldino conta que se enveredou pelo caminho da pesquisa sobre agrotóxicos e do seu impacto no meio ambiente e na vida humana porque queria melhorar a vida das pessoas e ir além da burocracia das pesquisas, e até então está satisfeita com os resultados.

“Eu queria aplicar os conhecimentos acadêmicos à melhoria da qualidade de vida, e queria uma pesquisa que pudesse ser aplicada, utilizada e impactar a vida das pessoas. A ciência é muito importante, mas você poder aplicar os conhecimentos da pesquisa na realidade não tem preço”, avalia ela, que também é professora universitária.

Na sua carreira como professora, Geraldino leciona sobre toxicologia. Biologia Aplicada ao Saneamento, Ecologia e Biodiversidade, Poluição e Saúde e Saúde Ambiental são algumas das disciplinas. Esse contato duplo, com o início da formação dos profissionais de sua área e com os resultados da pesquisa, a faz defender ainda mais o investimento em pesquisa e produção de conhecimento científico. A professora explica que quando há falta de investimento, pode haver interferência na não-classificação de agrotóxicos perigosos, que acabam sendo utilizados sem conhecimento do potencial cancerígeno ou de alteração hormonal.

Enquanto o Congresso segue na tramitação do “PL do Veneno”, Geraldino e suas companheiras de pesquisa no Inca (são 19 no total) continuam a buscar avanços sobre o tema. “Tenho orgulho de fazer parte desse grupo que luta pela questão da agricultura de forma sustentável, e sempre com foco na saúde.”

Por sua principal preocupação ser a população, ela destaca o risco de uma legislação que “afrouxe” os agrotóxicos no país: “Afrouxando de alguma forma a gente faz com que os trabalhadores fiquem mais expostos, e a população também, à contaminação ambiental, com riscos à saúde dos trabalhadores e da população como um todo”, afirma.

Expediente

Edição: Carolina de Assis e Giulliana Bianconi
Reportagem: Carolina de Assis, Lola Ferreira, Maria Martha Bruno e Vitória Régia da Silva
Análise de dados: Carolina de Assis e Natalia Leão
Infografia: Marilia Ferrari
Direção e edição dos vídeos: Maria Lutterbach
Imagens: Elisa Mendes e Haroldo Saboia
Ilustração: Catarina Bessel
Motion: Luciano Gomes

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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