Ana Sátila em ação no Campeonato Mundial de Canoagem | Foto: Divulgação/CBC

Por que não há mulheres na canoa olímpica?

Resquício do “mito da reprodutividade feminina”, determinação ainda exclui competidoras de categoria da canoagem nas Olimpíadas-2016

Por Mariana Bastos

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Durante toda a história dos Jogos Olímpicos da era moderna a presença das mulheres nas mais diversas modalidades tem sido uma questão em debate. Nem mesmo o idealizador da Olimpíada, Barão Pierre de Coubertin, mostrava-se favorável à inclusão das atletas do sexo feminino no evento.

Em 1928, Amsterdã celebrava a nona ediçao olímpica e apenas metade dos 14 esportes disputados incluíam mulheres. Os Jogos da capital holandesa marcaram a estreia do atletismo feminino no programa olímpico. Numa final apertada dos 800 metros, diversas atletas caíram no chão exaustas após cruzarem a linha de chegada. Foi a desculpa usada para que, nos 32 nos subsequentes, fossem vetadas corridas de mais de 200 metros para mulheres. A mentalidade da época, endossada por médicos e cientistas, reforçava o esterótipo de fragilidade do sexo feminino e o argumento de que a prática de esportes de alto impacto poderia comprometer a capacidade reprodutiva da mulher.

A lógica, em algum grau, ainda persiste. O caso emblemático mais recente é o da prática da canoa, categoria de canoagem. Mesmo com todos os esforços do COI (Comitê Olímpico Brasileiro) para igualar o número de homens e mulheres na Olimpíada, incluindo-as em modalidades para as quais até muito pouco tempo eram vetadas, como boxe, somente os canoístas homens poderão mostrar suas habilidades na Rio-2016. A canoa feminina só deve fazer a sua estreia nos Jogos Olímpicos em Tóquio-2020. Por enquanto elas disputam apenas a categoria caiaque.

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“Era do nosso interesse que a canoa feminina competisse aqui. O Brasil tem três atletas, medalhistas em etapas da Copa do Mundo, que poderiam subir ao pódio no Rio, mas não conseguimos”, conta Figo Conceição, técnico da seleção brasileira de canoa feminino.

A inclusão da canoa no programa olímpico -ainda a ser confirmada pelo COI- só é cogitada graças à campanha maciça de canoístas do mundo inteiro, que criaram a campanha “Vote Sim pela Canoa Feminina”, cujo objetivo era derrubar o tabu de que canoa não era esporte de mulher. A ação foi idealizada pela WomenCan International, uma associação mundial de canoístas, lideradas por canadenses, criada para fazer lobby pela inclusão das mulheres na modalidade desde os Jogos de 2008, quando Toronto acabou perdendo para Pequim na disputa pela sede.

Durante todo esse tempo, a organização cresceu e criou até mesmo um conselho médico multidisciplinar composto por 11 especialistas com o objetivo de “dissipar definitivamente o mito de que a prática de canoagem pode afetar a capacidade reprodutiva das mulheres e categorizar definitivamente essa argumentação como assédio sexual e não um problema médico, além de prevenir seu uso como ferramenta para intimidar e afastar mulheres da canoa”. Em artigo em que defende a inclusão definitiva de sua modalidade no programa olímpico, a decacampeã mundial de canoagem Laurence Vincent-Lapointe protesta: “Disseram que a canoa é ruim para o corpo das mulheres, que a prática da canoa ia nos deixar inférteis. Quem sabe quantas de nós deram à luz enquanto esse pensamento ultrapassado serviu como desculpa para nos deixar de fora da Olimpíada por todo esse tempo? E quanto mais rápidas nos tornamos enquanto eles diziam que não éramos boas o suficiente para competir?”

De acordo com a WomenCan, durante muitas décadas um mito vem sendo perpetuado por dirigentes de todos os níveis da canoa olímpica: que o movimento unilateral característico da prática da canoa poderia danificar o corpo feminino (órgãos reprodutores, trato urinários, mamas, etc), causando potencialmente infertilidade, incontinência urinária e/ou causando o desenvolvimento desigual das partes do corpo.

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Quem sabe quantas de nós deram à luz enquanto esse pensamento ultrapassado serviu como desculpa para nos deixar de fora da Olimpíada por todo esse tempo?"

— Laurence Vincent-Lapointe, canoísta

Foi somente em 2011 que a comissão médica do COI resolveu se manifestar sobre o mito que contribuiu para afastar durante mais de um século as mulheres do esporte definindo como diretriz que a nenhuma atleta mulher deveria ser negada a oportunidade de participar de qualquer esporte olímpico com base no fato de que ela poderia machucar seus órgãos reprodutivos. O comitê destacava ainda que uma pesquisa sobre lesões havia falhado em encontrar qualquer evidência de haver risco aumentado de lesão aguda ou crônica dos órgãos reprodutivos femininos em decorrência direta da prática do esporte.

Mesmo após esse importante reconhecimento por parte do COI, as canoístas foram mantidas à margem do movimento olímpico, mas  conseguiram o apoio da Federação Internacional de Canoagem para pleitear uma estreia nos Jogos de Tóquio-2020. A decisão ainda depende de ratificação por parte do COI.

O histórico dos Jogos Olímpicos se mistura com de resistência de mulheres esportistas para quebrarem o tabu de que a prática de esporte prejudica o aparelho reprodutivo, pilar da argumentação “científica” que servia de base para a classificação do sexo frágil.
No Brasil, Getúlio Vargas assinou em 1941 um decreto-lei que vedava a participação de mulheres em esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”. Em 1965, durante a Ditadura Militar, o Conselho Nacional de Desportos (CND) especificou esses esportes proibidos à prática feminina: lutas, futebol, futsal, futebol de areia, polo aquático, polo, rúgbi, levantamento de peso e beisebol”.

Em 1979, quatro judocas brasileiras -Patrícia Maria de Carvalho e Silva, Ana Maria de Carvalho e Silva, Cristina Maria de Carvalho e Silva e Kasue Ueda- se inscreveram com nomes de homens no CND para participarem do Sul-Americano da modalidade. Acabaram ganhando dois ouros e um bronze. O feito forçou o CND a revogar a proibição no mesmo ano. Em 1986, o Conselho baixou uma recomendação, na qual admitia reconhecer “a necessidade do estímulo à participação da mulher nas diversas modalidades esportivas do país”.

Gravidez: corpo potencializado para atletas

Paralelamente ao esforço contínuo das mulheres para serem incluídas no esporte durante todo o século 20 até os dias atuais, começaram a surgir, pouco a pouco, nos últimos 40 anos, estudos que não só comprovavam que a prática esportiva poderia ser benéfica para as mulheres como também evidências de que a gravidez poderia servir de “doping natural” para as atletas. Há muitas controvérsias nas constatações, mas é quase um consenso de que a atleta se beneficia de um ganho no sistema cardiovascular que se estende até o pós-parto.

Durante a gravidez, o coração da mulher é praticamente remodelado para dar conta de bombear sangue não só para si mesma como também para o feto. Há a circulação de um volume maior de sangue, o que leva ao aumento da eficiência com que o oxigênio chega aos músculos. É basicamente um mecanismo similar ao que se verifica em dopings que atuam no sangue, como o EPO. Mesmo após o nascimento do bebê, o sistema ainda se mantém por um longo período.

Não à toa, há muitos relatos de atletas que se sentem bem mais dispostas no pós-parto do que antes mesmo de engravidarem. É o que relata a levantadora da seleçao de vôlei, Fabíola, que disputa a Olimpíada no Rio apenas três meses após dar à luz Anna Vitória.

“Eu me sinto mais forte, como se meu corpo tivesse renovado toda sua estrutura”, afirmou a atleta de 33 anos que retornou aos treinos apenas um mês após o parto.

 

Fabíola treina em Saquarema dois meses após dar a luz à filha Ana Vitória Foto: CBV/Marlon Falcão

Por falta de conhecimento da equipe técnica sobre como lidar com a gravidez, Fabíola esteve por um período fora dos planos do técnico José Roberto Guimarães para os Jogos do Rio.

“Durante um tempo, ela achou que estava fora da Olimpíada, até eu ir para a Turquia, onde encontrei o técnico do clube dela. Ele já havia lidado com uma situação parecida. Uma jogadora dele havia engravidado e voltado às competições apenas um mês após o parto. Peguei a experiência dele e, quando cheguei ao Brasil, a primeira coisa que fiz foi ligar para o ginecologista da comissão técnica [Eliano Pellini]”, contou Zé Roberto.

A partir daí, montou-se um planejamento que incluía basicamente duas metas: que a atleta se mantivesse em atividade durante a gravidez o máximo de tempo e que ela passasse por um parto normal, de modo que pudesse voltar o quanto antes. “Se eu não tivesse estudado e tentado entender a gravidez, hoje ela estaria fora dos Jogos, reconhece o técnico”. Para a jogadora, não há dúvida da importância de ter evitado uma cesárea. “Meu parto foi difícil, durou seis horas, mas se fosse cesárea, hoje eu não estaria na Olimpíada”, avalia Fabíola, que até às vésperas dos Jogos ainda amamentou sua filha.

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Se eu não tivesse estudado e tentado entender a gravidez, hoje ela estaria fora dos Jogos

— Zé Roberto Guimarães, técnico da seleção brasileira feminina de vôlei

A atitude do técnico infelizmente ainda é uma raridade, sobretudo em uma área dominada por homens. As comissões técnicas dos esportes femininos contam com uma maioria masculina.

“A postura do Zé Roberto é, mais uma vez, um exemplo a ser seguido. Algumas mulheres ainda acreditam que suas carreiras possam ser interrompidas e postergam a gestação. A ideia de que não poderão ficar ativas fisicamente e de seram privadas do esporte que gostam é algo que tem que ser cada vez mais esclarecido”, afirma Tathiana Parmigiano, ginecologista do Time Brasil.

Tathiana, uma ex-atleta, percebeu a carência de profissionais dedicados à saúde feminina na prática esportiva de alto rendimento, e especializou-se em ginecologia do esporte. Em 2010, ela iniciou o atendimento à equipe brasileira de judô e depois expandiu para todas os esportes coletivos, além de ginástica artística, nado sincronizado, luta, atletismo, pentatlo moderno e vela.

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Anos após começarem a ser constatados os benefícios da gravidez para a performance esportiva, passaram a surgir rumores de uma prática de dopagem aplicada apenas a mulheres: o doping do aborto.
Em 1988, a primeira Conferência Mundial Antidoping incluiu o tema na sua programação. Na ocasião, o então presidente da comissão médica do Comitê Olímpico Internacional (COI), príncipe Alexandre de Meróde, afirmou que conhecia um médico suíço que aplicava o método em atletas. Além disso, houve suspeitas de que o procedimento fora adotado também pelas esportistas olímpicas da ex-Alemanha Oriental.
Mas o episódio mais escandaloso teria ocorrido durante os Jogos da Cidade do México-1968. Segundo matéria do The Guardian, a equipe de ginástica artística da ex-União Soviética fez uso do doping do aborto para chegar ao ouro olímpico. Ainda de acordo com o jornal britânico, todas as atletas da equipe, duas das quais tinham apenas 15 anos, foram forçadas a engravidar sob pena de serem excluídas da preparação olímpica. As que não tinham namorado ou marido teriam sido estupradas pelo técnico. Dez semanas antes de subirem ao topo do pódio olímpico, as ginastas russas teriam abortado.
O escândalo ganhou repercussão nos jornais da Europa e dos EUA, mas nunca foi devidamente comprovado. A imprensa russa tratou de desmenti-lo, desqualificando a entrevista de Olga Kovalenko, a ex-ginasta que revelou o escândalo à imprensa alemã.

Mariana é jornalista e colaboradora da Gênero e Número

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