No Brasil de hoje, a mulher que pratica um aborto pode ser punida com até três anos de prisão, segundo o Código Penal. As exceções são em casos de estupro, de feto anencéfalo e de gravidez que oferece risco à vida da gestante. Ainda assim, pelo menos uma em cada cinco brasileiras já abortou, o que equivale a cerca de 503 mil brasileiras em 2015, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pelo Anis – Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB) em 2016. Quase 1,3 mil por dia. Praticamente um aborto por minuto.
Desde março deste ano tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria da ministra Rosa Weber, um processo que pode descriminalizar a prática de aborto até a 12ª semana de gestação. O processo vem na esteira de uma decisão inédita do Supremo que em 2016 decidiu revogar a prisão de funcionários e médicos de uma clínica de aborto de Duque de Caxias (RJ). Os profissionais haviam sido flagrados realizando um procedimento em uma gestante de primeiro trimestre. A Gênero e Número conversou com especialistas e representantes do debate pró e contra a descriminalização para entender o que está em jogo.
A ação que corre no STF é movida pelo PSOL e pelo Anis. Uma das autoras da peça inicial, a professora do Departamento de Direito da UFRJ Luciana Boiteux, explica que a argumentação está centrada nos conceitos de dignidade – a autonomia de tomar suas próprias decisões – e de cidadania, ou seja, ter as condições necessárias para viver uma vida digna.
Nesse sentido, o Código Penal de 1940 violaria o que está previsto na Constituição de 1988: além dos direitos das mulheres à cidadania e à dignidade, os direitos à vida, à igualdade, à liberdade, de não ser discriminada, de não sofrer tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel à saúde e ao planejamento familiar.
“O Código Penal é de uma época em que as mulheres não tinham nem direito ao divórcio”, diz Luciana, que concorreu no ano passado a vice-prefeita do Rio de Janeiro pelo PSOL, na chapa encabeçada pelo deputado estadual Marcelo Freixo. “A mulher era vista, na perspectiva machista e patriarcal, como a garantia da reprodução da espécie e não como uma mulher sujeita de direitos. Quando a gente olha a Constituição de 1988, a perspectiva muda radicalmente: temos direitos e garantias individuais, especialmente a perspectiva da dignidade da pessoa e a igualdade de homens e mulheres”.