Debate sobre aborto chega ao STF e mobiliza opiniões pró e contra descriminalização

Ação propõe que aborto até o terceiro mês de gestação deixe de ser crime. A Gênero e Número ouviu diversos especialistas e reuniu os principais argumentos que sustentam os dois lados do debate.

Por Alessandra Monnerat*

No Brasil de hoje, a mulher que pratica um aborto pode ser punida com até três anos de prisão, segundo o Código Penal. As exceções são em casos de estupro, de feto anencéfalo e de gravidez que oferece risco à vida da gestante. Ainda assim, pelo menos uma em cada cinco brasileiras já abortou, o que equivale a cerca de  503 mil brasileiras em 2015, segundo dados da Pesquisa Nacional do Aborto, publicada pelo Anis – Instituto de Bioética e pela Universidade de Brasília (UnB) em 2016. Quase 1,3 mil por dia. Praticamente um aborto por minuto.

Desde março deste ano tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), sob a relatoria da ministra Rosa Weber, um processo que pode descriminalizar a prática de aborto até a 12ª semana de gestação. O processo vem na esteira de uma decisão inédita do Supremo que em 2016 decidiu revogar a prisão de funcionários e médicos de uma clínica de aborto de Duque de Caxias (RJ). Os profissionais haviam sido flagrados realizando um procedimento em uma gestante de primeiro trimestre. A Gênero e Número conversou com especialistas e representantes do debate pró e contra a descriminalização para entender o que está em jogo.

A ação que corre no STF é movida pelo PSOL e pelo Anis. Uma das autoras da peça inicial, a professora do Departamento de Direito da UFRJ Luciana Boiteux, explica que a argumentação está centrada nos conceitos de dignidade – a autonomia de tomar suas próprias decisões – e de cidadania, ou seja, ter as condições necessárias para viver uma vida digna.

Nesse sentido, o Código Penal de 1940 violaria o que está previsto na Constituição de 1988: além dos direitos das mulheres à cidadania e à dignidade, os direitos à vida, à igualdade, à liberdade, de não ser discriminada, de não sofrer tortura ou tratamento desumano, degradante ou cruel à saúde e ao planejamento familiar.

“O Código Penal é de uma época em que as mulheres não tinham nem direito ao divórcio”, diz Luciana, que concorreu no ano passado a vice-prefeita do Rio de Janeiro pelo PSOL, na chapa encabeçada pelo deputado estadual Marcelo Freixo. “A mulher era vista, na perspectiva machista e patriarcal, como a garantia da reprodução da espécie e não como uma mulher sujeita de direitos. Quando a gente olha a Constituição de 1988, a perspectiva muda radicalmente: temos direitos e garantias individuais, especialmente a perspectiva da dignidade da pessoa e a igualdade de homens e mulheres”.

Luciana Boiteux | Crédito: Flickr Mídia Ninja

Quem se opõe a essa posição se autointitula ‘pró-vida’ – isso porque um dos principais argumentos desse movimento se baseia na inviolabilidade do direito à vida, descrita no artigo 5º da Constituição Federal de 1988. Este direito também está no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas em 1948. Maria José da Silva, coordenadora estadual no Rio de Janeiro do Movimento da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, bate na tecla que é indissociável dos discursos contra a interrupção da  gravidez: a vida começaria na concepção e, por isso, estaria protegida legalmente.

“A vida é a nossa primeira garantia, é um direito universal. Se você deixa de defender esse direito, você pode matar e está tudo certo. Não concordamos que o aborto seja uma escolha da mulher sobre o seu próprio corpo”, explicou ela. “O bebê não é parte do corpo da mulher, a vida humana que está sendo gestada é uma segunda vida. O bebê não vai fazer mal nenhum para essa mulher.”

Maria José cita ainda a Convenção Americana de Direitos Humanos – o Pacto de San José da Costa Rica, de 1969. O documento, assinado pelo Brasil em 1992, coloca no artigo 4º que “toda pessoa tem o direito de que se respeite sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepção. Ninguém pode ser privado da vida arbitrariamente”.

Para Luciana, no entanto, utilizar esses documentos legais para defender a continuidade da criminalização do aborto é fazer uma leitura enviesada. Ela pontua que o direito à vida está previsto abstratamente na Constituição, que regulamenta direitos da pessoa já nascida. A advogada defende o argumento jurídico da proporcionalidade – segundo o qual os direitos do feto, um ser ainda em formação, sem capacidade autônoma de existência, não se sobrepõem aos da mãe, uma pessoa humana adulta.

“Eu acho que quem melhor caracteriza a posição desses grupos conservadores é o cantor Caetano Veloso na música ‘Haiti’: ‘Vê a alma no feto e não vê no marginal’. Esse foco no nascituro na verdade é um falso foco. A gente não nega que aquele embrião em formação tem expectativa de direito, sim, mas que nesse caso a gente não pode ver só um lado e não ver o lado da mãe, o lado da mulher. Sobrepor o direito do feto a ponto de submeter a mãe a torturas ou a uma privação de direitos não me parece razoável do ponto de vista racional”.

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