Na sede das Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, Buscarita Roa mostra foto de seu filho e sua nora com sua neta no colo | Foto: Aline Gatto Boueri

Na Argentina, movimentos de mulheres impulsionaram condenação de crimes sexuais da ditadura militar

A ampliação e consolidação do processo judicial ao longo de 35 anos permitiu dar uma resposta a crimes como violência sexual, roubo de bebês e desaparições forçadas; também no Brasil ditadura militar usou torturas específicas para atingir as mulheres, diz historiadora

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A jornalista Miriam Lewin tinha 19 anos em 1977, quando foi sequestrada por um grupo de agentes da ditadura cívico-militar argentina. Passou dez meses em um centro clandestino de detenção, uma casa numa região central da cidade de Buenos Aires, de onde ouvia conversas de uma família que morava em uma casa vizinha – que provavelmente escutava as sessões de tortura às quais Miriam era submetida por agentes da Aeronáutica.

Em seu livro Putas e Guerrilheiras (sem tradução ao português), escrito em parceria com a também jornalista Olga Wornat, Lewin relata sua experiência como desaparecida. Detidas sem qualquer rastro legal que pudesse revelar às famílias seu paradeiro, grande parte das vítimas da ditadura militar argentina, como Miriam, sequestradas em pontos de ônibus, nas ruas, em presença de testemunhas, perderam o contato com seus entes queridos, familiares e amigos.

Hoje, 42 anos depois do golpe, estima-se que 30 mil pessoas foram desaparecidas pelo regime ditatorial na Argentina. Diante do pacto de silêncio que persiste entre responsáveis pela repressão no país, a tarefa de reconstruir as trajetórias e os tormentos vividos pelos que não puderam voltar para contá-los ficou a cargo de sobreviventes, como Olga e Miriam. Na Argentina, tiveram a possibilidade de relatá-los à Justiça, que conduziu julgamentos legais, com sentenças públicas e respeito ao devido processo. Algumas vítimas decidiram, também, visibilizar a violência sexual que sofreram, predominantemente as mulheres que passaram pelos centros de detenção.

Segundo um relatório da Procuradoria de Crimes de Lesa Humanidade, órgão do Ministério Público argentino, entre 2006 e março de 2018 houve 203 sentenças em julgamentos por delitos cometidos por agentes da repressão da ditadura. Destas, 22 foram condenações por abuso sexual, estupro ou aborto forçado. A primeira sentença deste tipo foi pronunciada em 2010, quando pela primeira vez a Justiça argentina reconheceu que esse tipo de delito não era uma prática isolada ou incluída entre os métodos de tortura, mas sim parte do plano sistemático de aniquilação de opositores que as Forças Armadas do país orquestraram e executaram em parceria com civis ligados ao regime.

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Avós da Praça de Maio protestam contra a lei de Obediência Devida na frente do Congresso Nacional. | Foto: Abuelas de Plaza de Mayo

“Por um lado havia uma decisão expressa de que todos os oficiais tivessem ou tentassem ter relações sexuais com as prisioneiras, porque isso era um sintoma de um processo de recuperação, de colocar a mulher novamente em seu lugar de objeto de prazer do guerreiro. Por outro lado, havia um certo fascínio. Nós éramos um modelo de mulher que eles não conheciam”, conta Miriam à Gênero e Número.

“Uma vez uma companheira perguntou ao Tigre Acosta [apelido do ex-capitão da marinha Jorge Eduardo Acosta] por que nos dias de folga eles não iam para as suas casas em vez de ficar ali nos centros de detenção. Ele respondeu ‘mas o que vamos encontrar nas nossas esposas? Vocês são as culpadas pelas crises nos nossos casamentos, porque mulheres como vocês nós achávamos que só existiam nos filmes”.

Olga Wornat conta que mesmo com os companheiros de militância era difícil falar da violência sexual vivida pelas prisioneiras, porque mesmo no interior das organizações predominava a visão de que as mulheres que, privadas de sua liberdade e ameaçadas, muitas com familiares feitos reféns por organismos da repressão, tinham optado por colaborar com seus captores e mantinham voluntariamente relações sexuais com eles.

“Entre os líderes das organizações armadas não havia mulheres. E nós nunca questionamos isso. Quando pensamos nos detalhes, no cotidiano, era tudo terrivelmente machista”, conta. “Eu mesma, quando escutava relatos de companheiras que tinham relações sexuais com repressores, pensava ‘que terrível, como é que ela foi se apaixonar por ele?’. Eu achava que era um amor perverso, mas ainda entendia aquilo como amor.”

Para Olga, o reconhecimento da violência sexual se deu quando acompanhou como jornalista o processo de julgamento dos crimes de lesa humanidade ocorridos durante a Guerra dos Balcãs e escutou relatos de violência sexual cometidos contra mulheres em campos de concentração. “Aí pude reconhecer como as mulheres passam por violações específicas durante os conflitos bélicos e como é difícil falar disso.” Para Miriam, quando estudou casos de abuso sexual infantil cometidos por membros da Igreja Católica. “Na vulnerabilidade, não existe consentimento. A relação de poder é absolutamente assimétrica”, ressalta.

Na Argentina há hoje 95 agentes da ditadura condenados por delitos sexuais, e 93 deles são homens. Entre as vítimas que puderam levar adiante seus casos na Justiça, há 67 mulheres e 22 homens. No último 8 de outubro, a Justiça condenou agentes da ditadura por aborto forçado, no caso de Silvia Suppo, sobrevivente de centros de detenção que foi assassinada em 2010 em um suposto assalto, cinco meses depois de prestar depoimento sobre o que havia sofrido durante a ditadura. Enquanto estava detida, Silvia foi estuprada várias vezes e obrigada a realizar um aborto em uma clínica clandestina depois de engravidar no cativeiro. Em abril de 2016, outra sentença condenou José Félix Bernaus a 16 anos de prisão por aborto doloso sem consentimento, entre outros delitos.

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Julgamento a repressores

A Argentina começou a julgar os crimes cometidos por agentes da última ditadura civil-militar (1976-1983) logo após a redemocratização do país, durante o governo de Raúl Alfonsín (1983-1989). A primeira sentença no chamado Julgamento às Juntas, em dezembro de 1985, condenou os altos comandantes das Forças Armadas durante o período ditatorial. Com os depoimentos de sobreviventes, foi possível estabelecer que a repressão a opositores não foram “excessos”, mas sim parte de um plano sistemático de aniquilamento das vozes discordantes.

O processo de justiça na Argentina foi emblemático, já que pela primeira vez na história um tribunal civil, do próprio país, julgou militares acusados de crimes de lesa humanidade. As leis de Ponto Final (1986) e Obediência Devida (1987), promulgadas por Alfonsín, encerraram a abertura de processos judiciais e eximiram de responsabilidade oficiais com patente inferior a coronel.

O ex-presidente Carlos Menem (1989-1999) deu, no ano seguinte à sua posse como mandatário, indulto aos condenados por crimes de lesa humanidade no país enquanto desfinanciou as Forças Armadas e desarticulou a rede de poder que ainda mantinha a influência da caserna sobre as instituições civis do país – muitas vezes de forma explícita, com levantamentos militares na primeira década da democracia.

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Comandantes das Forças Armadas se preparam para ouvir sentença no Julgamento às Juntas. | Foto: Abuelas de Plaza de Mayo

O Judiciário só voltou a julgar os crimes contra a humanidade cometidos durante o regime ditatorial depois que o Congresso anulou, em 2003, as leis de Ponto Final e Obediência Devida, o que foi ratificado pela Suprema Corte em 2005. O tribunal máximo do país também anulou, em 2007, os indultos assinados por Menem. Até então, a exceção no país havia sido o julgamento de sequestros e adoções ilegais de bebês e crianças, filhos de desaparecidos, que seguiram à medida que as Avós da Praça de Maio conseguiam localizá-los. Em 2018, a associação identificou o 128° neto.

Para Luz Palmás Zaldua, coordenadora da área de Memória, Verdade e Justiça do Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS), o debate sobre a inclusão de delitos sexuais como um tipo penal autônomo em relação às torturas nos processos por crimes de lesa humanidade da Argentina se deu a partir de um debate judicial intenso acerca da possibilidade de julgá-los como tal, mas também a partir da adequação da jurisprudência local ao entendimento de tribunais internacionais sobre esse tipo de crime. Também os debates sobre gênero que se deram na sociedade argentina permitiram que as vítimas pudessem falar do assunto sem sentir que tinham alguma responsabilidade sobre o que havia acontecido com elas.

“As políticas públicas de memória, verdade e justiça ampararam as vítimas. Na discussão sobre gênero, em geral, houve um amadurecimento da sociedade, o que também impulsionou as mulheres a relatar o que viveram, com a certeza de que esses crimes teriam consequências judiciais para quem os cometeu. Quando uma mulher decide contar uma história assim e a consequência é a impunidade, isso desestimula a que outras contem também suas histórias”, avalia Luz.

Miriam conta que os casos de violência sexual começaram a ser debatidos com maior atenção na última década porque falar disso é difícil para as vítimas, que muitas vezes temem ser revitimizadas. Também há temor em expor essas situações aos filhos ou aos pais. “Muitas mulheres já tinham decidido, internamente, denunciar esses crimes, mas preferiram esperar que seus filhos crescessem ou que seus pais morressem”, explica. “Na minha idade, já não me importa se vão me chamar de puta ou se vão me julgar moralmente. É outro momento da vida: estou mais forte, mais liberada das cargas mentais sobre como isso vai afetar meus filhos ou meus pais.”

A jornalista lembra que, assim como na ditadura brasileira, a violência sexual contra mulheres buscava também enviar uma mensagem aos “companheiros, aos pais, aos homens que, de certa forma, tinham a responsabilidade cultural de cuidá-la. Estupravam as mulheres no cômodo ao lado ou na frente de seus companheiros, como uma forma de evidenciar que ele era incapaz de responder pela honra dela, algo que há milênios os homens creem ser sua responsabilidade.”

Caso de bebê sequestrada com os pais mudou a jurisprudência

O caso que mudou a jurisprudência foi o da família de Buscarita Roa, uma das Avós da Praça de Maio. Em 1999, ela reencontrou a neta, sequestrada com os pais quando tinha oito meses. O caso Poblete-Hlakzic chegou à Corte Suprema, que entendeu que não era possível julgar o roubo de um bebê sem julgar os casos correlativos, de sequestro, tortura e desaparição do pai e da mãe. Com essa decisão, as chamadas leis da impunidade foram declaradas inconstitucionais.

Há 40 anos, José Poblete e Gertrudis Hlaczik, o filho e a nora de Roa, foram sequestrados por agentes da ditadura argentina. Sua neta Claudia Victoria Poblete Hlazic, então com oito meses, foi levada junto com a mãe e a família passou 21 anos sem ter notícias suas. Segundo relatos de sobreviventes, Claudia passou dois dias em um centro clandestino de detenção ao lado da mãe. O tenente-coronel Ceferino Landa e sua esposa, Mercedes Beatriz Moreira, foram condenados pela adoção ilegal da bebê.

As Avós da Praça de Maio completaram 41 anos em outubro de 2018. A organização foi criada por mulheres que buscavam seus familiares e se encontravam nos labirintos do regime ditatorial, onde ouviam respostas evasivas sobre o paradeiro de crianças, jovens, estudantes, mulheres grávidas que haviam desaparecido. Reunidas a metros da sede da presidência, a Casa Rosada, familiares de desaparecidos fizeram da praça histórica – onde as Mães da Praça de Maio também surgiram – um símbolo de resistência e luta contra o autoritarismo e o terrorismo de Estado.

“Eu trabalhava perto da Praça de Maio e via que havia ali familiares de pessoas que nós ainda não chamávamos de desaparecidas. Dizíamos que não tinham voltado, que não sabíamos nada, mas ainda não entendíamos isso como desaparição forçada”, conta Roa à Gênero e Número.

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“Ali encontrei essas mulheres que disseram ‘aqui somos todas mães e vamos ver, entre todas, como podemos fazer para encontrá-los’. Nós estávamos ali porque éramos mães que buscávamos nossos filhos”.

Roa conta que a imprensa estrangeira, por conta da censura no país, foi fundamental para denunciar o que acontecia na Argentina. As mães e as avós da Praça de Maio começaram a fazer intervenções urbanas com silhuetas desenhadas em papelão, que espalhavam pela cidade, para visibilizar a ausência de seus familiares. Também começaram a viajar a outros países para contar suas histórias e angariar fundos e apoio internacional.

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Buscarita Roa mostra a foto emoldurada na sede das Avós da Praça de Maio, em Buenos Aires, onde aparece abraçada à neta Claudia | Foto: Aline Gatto Boueri

Roa se emocionou duas vezes ao longo da entrevista: ao relatar o reencontro de outras avós com seus netos e ao contar a sua própria história, em uma demonstração do que passou a ser um dos lemas dessas avós que se tornaram ativistas: cada neto e cada neta que elas reencontram, são netos e netas de todas. “Quando minha neta foi declarar, no momento em que jurou dizer a verdade, perguntaram seu nome e ela respondeu: ‘Claudia Victoria Poblete Hlazic’. Foi lindo e foi triste, porque ela ali disse o nome do meu filho e o nome da minha nora quando foi perguntada pelo nome dos seus pais. Ali ela estava colocando sua verdade, estava nomeando um crime.”

Seu filho, José Poblete, havia perdido as duas pernas em um acidente e militava em uma organização de apoio a pessoas com deficiência. “No dia em que reencontramos a Claudia, eu cheguei em casa, depois de entregar fotos e lembranças de seus pais à minha neta, eu sentei e pensei ‘já encontramos a sua filha’. Eu prometi ao meu filho que não ia descansar, que ia seguir até o último dia da minha vida. E nós a encontramos, depois de 21 anos.”

“Tivemos um movimento de mães buscando seus filhos e filhas, de avós buscando filhos, filhas, netos e netas. O papel das mulheres foi muito preponderante, talvez também com um olhar mais conservador, da mulher como mãe e avó. Mas as mães e avós do nosso país também fortaleceram o movimento de mulheres em relação a outras disputas por direitos, o movimento de direitos humanos deu contribuições importantes ao movimento de mulheres na Argentina”, avalia Luz Palmás Zaldua.

Existem hoje na Argentina 2.479 pessoas acusadas de delitos contra a humanidade. Destas, 977 já receberam sentenças: 877 foram condenadas e 110 foram absolvidas. Entre os condenados, 24% já não podem mais apelar da sentença, pois foram esgotadas as instâncias judiciais. Entre os absolvidos, 11% se encontram na mesma situação.

Membros da Comissão Nacional da Verdade entregam o relatório final à ex-presidente Dilma Rousseff. |Foto: Fabrício Faria / ASCOM - CNV

Impunidade no Brasil

No Brasil, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) dedicou um capítulo de seu relatório, concluído em 2014, à violência de gênero e violência contra crianças e adolescentes. Em seu depoimento à comissão, em 2013, a ex-militante da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) Izabel Fávero contou: “Eu fui muito ofendida, como mulher, porque ser mulher e militante é um karma, a gente além de ser torturada física e psicologicamente, a mulher é vadia, a palavra mesmo era ‘puta’, ‘menina decente, olha para a sua cara, com essa idade, olha o que tu está fazendo aqui, que educação os teus pais te deram, tu é uma vadia, tu não presta’, enfim, eu não me lembro bem se no terceiro, no quarto dia, eu entrei em processo de aborto, eu estava grávida de dois meses, então, eu sangrava muito, eu não tinha como me proteger, eu usava papel higiênico, e já tinha mal cheiro, eu estava suja, e eu acho que, eu acho não eu tenho quase certeza que eu não fui estuprada, porque era constantemente ameaçada, porque eles tinham nojo de mim.”

“A CNV foi resultado de um processo de negociação muito tenso”, observa Isabel Leite, pós-doutoranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e pesquisadora sobre mulheres e luta armada durante a última ditadura no Brasil. “Permitiu que houvesse apuração de todos os crimes, mas a lei de anistia era intocável, ao contrário da Argentina, que passou por dois processos de julgamento, nos anos 1980 e depois de 2005. A ideia de impunidade que nossa anistia implementou no imaginário das pessoas é central para entender por que o presidente eleito, Jair Bolsonaro, pôde homenagear no Congresso um torturador reconhecido pela Justiça, como o Carlos Alberto Brilhante Ustra”.

A campanha eleitoral do candidato derrotado no segundo turno, Fernando Haddad (PT), trouxe o caso de Amélia Teles, que foi militante do Partido Comunista do Brasil (PCB). Ela contou, em vídeo da campanha, que o momento de maior dor que sentiu foi quando Brilhante Ustra levou seus dois filhos à sala de tortura para vê-la nua, urinada e vomitada. O TSE suspendeu a veiculação da peça a pedido da candidatura de Bolsonaro.

Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Amélia Teles contou: "Nós fomos torturadas com violência sexual". | Foto: Gui Mohallem/Revista Geni

À CNV, Teles declarou: “Numa dessas sessões […] eu amarrada na cadeira do dragão, ele se masturbando e jogando a porra em cima do meu corpo. Eu não gosto de falar disso, mas eu vejo a importância desse momento de tratar a verdade e gênero pensando nessas desigualdades em que os agentes do Estado, os repressores usaram dessa desigualdade para nos torturar mais, de certa forma.(…) Nós fomos torturadas com violência sexual, usaram a maternidade contra nós. Minha irmã acabou tendo parto, tendo filho na prisão.”

A historiadora Isabel Leite nota que “o corpo da mulher foi usado como instrumento de tortura e essa questão ainda é tabu. Existe dificuldade em falar de violência sexual. No relatório da CNV isso aparece com maior clareza, como a tortura é utilizada de várias formas específicas para atingir as mulheres: sequestrar os filhos, torturar filhos, torturar a mulher na frente dos filhos. A ditadura soube usar isso de forma muito eficaz”, aponta.

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“Quando a tortura vira política de Estado, as formas de tortura específicas para mulheres ou LGBTs se organizam no sentido de humilhar a pessoa, é sempre degradante. A primeira coisa que fazem é tirar sua roupa. Eventualmente a mulher está menstruando, então as torturas com ratos [inseridos nas vaginas] eram habituais, porque rato fica ouriçado com cheiro de sangue. A tortura sexual usa as questões biológicas", disse.

Enquanto a repressão mais visível recaiu sobre mulheres que participavam de movimentos políticos de esquerda durante a ditadura brasileira, as que se mantinham à margem do debate também sofreram as consequências do conservadorismo autoritário que governou o país de fato entre 1964 e 1985.

Para Lívia Magalhães, professora de História do Brasil na UFF que pesquisa consenso social e ditaduras, o domínio do corpo da mulher pelo Estado se aprofunda em períodos autoritários. “Nosso corpo serve ao Estado como mão de obra, então a mulher pode trabalhar em condições de relativa igualdade ao homem; nosso corpo serve ao Estado pela questão reprodutiva, então nós não temos liberdade dos nossos corpos, que é uma questão que atravessa os debates sobre legalização do aborto. O discurso das ditaduras é de que o papel das mulheres é estar dentro de casa, para cuidar dos filhos, para que estes não virem ‘subversivos’”, explica.

Magalhães lembra que o direito ao divórcio foi conquistado no Brasil em 1977, durante a última ditadura, como uma concessão a pressões internacionais. “Em 1975 houve uma conferência de mulheres da ONU e começa a haver uma pressão para ampliar direitos das mulheres. A ditadura é conservadora moralmente, mas precisa se vender de outra forma para o capital externo. Isso a obriga a ceder.”

Para Isabel Leite, o que faz uma democracia proteger as pessoas é o fortalecimento de instituições, ou seja, o contrário do que ocorre em regimes autoritários.

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“Violência contra mulheres não se combate só com lei de feminicídio, mas com a garantia do acesso ao mercado de trabalho, aos direitos trabalhistas - que inclui não ter medo de perder o emprego porque engravidou - a garantia de salários dignos. Um conjunto de medidas que podem ser ameaçadas quando um candidato a presidente afirma publicamente que mulheres devem ganhar menos, por exemplo”, conclui.

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Aline Gatto Boueri

Jornalista formada pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECo-UFRJ), colabora com a Gênero e Número desde 2017. Metade tijucana e metade porteña, cobre política latino-americana desde 2013, com foco em direitos humanos, feminismos, gênero e raça. Também cuida de criança todos os dias.

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