Trabalhadoras informais se mantêm nas ruas de São Paulo para garantir o sustento durante a pandemia. Foto: Carol Oms

Trabalhadoras informais temem não ter como alimentar os filhos em crise do coronavírus

Maioria em trabalhos informais, mulheres perdem renda e ainda não têm acesso a benefício anunciado pelo governo federal; confira a segunda matéria da cobertura conjunta com a Revista AzMina sobre a pandemia de coronavírus

Por Helena Bertho e Flavia Bozza Martins*

  • Questão de raça e gênero

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  • Informalidade e falta de trabalho

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  • Exposição a riscos

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  • Sem apoio do governo

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  • Se as contas não fecharem, negocie

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  • O que você pode fazer para ajudar

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“Sou diarista, gente, e devido à crise do coronavírus, próxima semana qualquer kitnet no bairro por R$ 110,00”. Esse foi o primeiro post de Jennifer Monah, 30 anos, em um grupo no Facebook de um bairro de classe média de São Paulo. No dia seguinte, nova postagem. “Gente, sei que todo cuidado é pouco com o coronavírus. Mas tem muita mulher sozinha que sustenta as crianças e a casa desse dinheiro. Eu tô num mato sem cachorro (…) Trabalho de máscara, luva, o que for preciso.” 

Sem estabilidade, sem possibilidade de trabalhar de casa, sem direitos trabalhistas e sem benefícios do governo, Jennifer é o retrato de como as trabalhadoras informais estão sendo afetadas pela pandemia do coronavírus (Covid-19) no Brasil. 

Jennifer, mulher negra, moradora de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo, é mãe solo de quatro filhos (entre dois e 16 anos). O pai das crianças não tem emprego formal e paga cerca de 300 reais por mês de pensão. É com seu trabalho de diarista que Jennifer garante a maior parte do sustento da casa. 

Assim que o governo federal anunciou o voucher de 200 reais para trabalhadores informais, Jennifer saiu de casa para solicitar o seu. Ao chegar no Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) mais perto de sua casa, descobriu que o valor ainda não estava disponível. “Eles me informaram que isso só vai ser liberado se a pandemia continuar. E daí vai ter que fazer agendamento do cadastro por telefone. Os CRAS vão fechar”, conta ela, questionando a efetividade da medida. 

A reportagem procurou o Ministério da Economia, que informou que os prazos e processos para liberação do dinheiro ainda dependem de ato normativo, que será enviado ao Congresso Nacional.

Questão de raça e gênero

O trabalho informal é uma questão de raça e gênero no Brasil: 47,8% das mulheres negras têm trabalho informal, segundo a Síntese de Indicadores Sociais do IBGE. “O recorte adicional por sexo nas atividades econômicas revela que a participação das mulheres no trabalho informal é superior à dos homens para a maior parte dos grupos de atividade econômica”, concluem os autores da pesquisa, que faz uma análise das condições de vida dos brasileiros.

Elas são também a maioria em profissões de serviço que são diretamente afetadas pelo isolamento social: trabalhadoras domésticas (categoria em que 73% não têm carteira assinada, segundo o IBGE), manicures, massagistas, trabalhadoras sexuais, entre outras.

 

economia

 

“Sob qualquer perspectiva que a gente olhe, a tendência é que o impacto seja maior sobre para as mulheres”, afirma Marilane Teixeira, doutora em desenvolvimento econômico e gênero pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Para ela, as mulheres serão mais atingidas pelo impacto direto no trabalho informal, além dos impactos econômicos indiretos causados pelos cuidados com crianças e doentes. Elas serão também afetadas a longo prazo, pelo possível aumento no desemprego e inflação.

Informalidade e falta de trabalho

“Quando falamos em mulheres no Brasil, é uma parcela muito pequena que está em casa, trabalhando à distância. Há um número muito grande que não tem esta possibilidade. Para quem é informal, deixar de ir para o trabalho é deixa de ganhar”, diz Regina Madalozzo, coordenadora do Núcleo de Estudos de Gênero do Centro de Estudos em Negócio do Insper. 

É o caso da ambulante Maria de Fátima Lopes, 53 anos, que vende tapiocas na saída do Metrô Santa Cecília, região central de São Paulo. Apesar da queda do movimento pela metade na última semana, ela seguiu indo para o ponto com seu carrinho. “Logo fica pior que cemitério, daí eu vou ficar em casa. Fazer o quê?”, falou ela no fim da semana passada. Agora, parou por falta de movimento.

Além de diminuir a circulação de pessoas nas ruas, as medidas de prevenção contra o coronavírus têm reduzido a contratação de serviços pessoais. A manicure Deise Cristina, 36 anos, aluga um espaço em um salão de beleza, onde oferece seus serviços. Na semana passada, a procura já caiu em mais da metade e, agora que o salão não está mais abrindo, ela não sabe como vai pagar as contas. “A mulher é a pessoa mais afetada. A mãe é bem mais preocupada que o pai, é a pessoa que cuida”, diz Denise, que tem dois filhos e vive com o marido que está desempregado. 

Salão de cabeleireiros sem previsão de abrir as portas em São Paulo. Foto: Carol Oms

“Temos uma economia muito baseada em comércio de serviços. Quase 70% do PIB está relacionado ao comércio e consumo das famílias. E isso é afetado”, afirma Marilane Teixeira. Ela destaca que, além da perda de renda, os profissionais informais não têm proteção social. “Temos quase 25 milhões de pessoas que trabalham por conta própria. Uma porcentagem alta das mulheres negras não contribuem com o INSS. Elas vão sofrer com o vírus e com a condição de não ter renda”, diz a economista da Unicamp. 

Para profissões não regulamentadas, como a das profissionais do sexo, a situação ainda é mais extrema. “Esse é o grande problema de não ter o trabalho sexual regulamentado. Em um momento de pandemia, quando as pessoas têm que deixar de trabalhar, ficamos de fora de qualquer benefício, e nos resta o desespero”, diz Santuzza Alves, coordenadora do Coletivo Rebu de Trabalhadoras Sexuais, Cis, Trans e Travestis. Segundo ela, o número de clientes caiu 70% desde que a crise começou. Ela conta que a Prefeitura de Belo Horizonte, onde vive, decretou o fechamento das boates, casas de massagem e estabelecimentos em geral onde elas trabalham, por medida sanitária.

Exposição a riscos

Para quem ficar em casa e não trabalhar não é uma opção, a exposição ao coronavírus é maior e nem todas têm a chance de se proteger. A primeira morte por coronavírus no Rio de Janeiro foi justamente de uma trabalhadora doméstica. Com 63 anos, ela contraiu o vírus da patroa, que esteve na Itália e não avisou que estava sob suspeita da doença. 

“Nós teremos que fazer quarentena, isso é fato. Mas enquanto as medidas não são extremas, tentamos fazer o máximo de reserva financeira que der, e acabamos nos colocando em risco. Ficamos entre correr risco ou não comer e pagar as contas”, diz Santuzza Alves. 

Seja por desinformação ou por necessidade, a maior parte das trabalhadoras entrevistadas disseram que o contágio do vírus não é sua maior preocupação e algumas acreditam se tratar de um exagero da mídia. “Eu não tenho medo de pegar, não. Eu tenho fé em Deus, será o que Deus quiser”, disse a vendedora de tapioca Maria de Fátima. 

A diarista Jennifer Monah disse que começou a entender a gravidade da doença na última semana, mas que não está com medo de pegar a doença. “Medo do contágio eu não tenho. Tenho mais medo de não pagar as contas, de meus filhos ficarem no escuro, não terem refeição. Isso é minha preocupação.”

Sem apoio do governo

A maior parte das medidas anunciadas pelo governo federal para lidar com os impactos do coronavírus na economia foi direcionada a empresas e bancos. 

“Quem é que mais tem que se salvaguardar nesse momento? A classe trabalhadora, que são as pessoas mais vulneráveis”, afirma a economista Marilane Teixeira, que critica as medidas tomadas pelo governo até o momento, inclusive o voucher para trabalhadores informais. Na sua opinião, o ideal seria o governo oferecer uma renda no valor de um salário mínimo para informais e desempregados enquanto durar a crise. 

Alguns governos estaduais têm tomado medidas para amenizar os impactos da crise, como em São Paulo e no Ceará, que suspenderam a cobrança da água para famílias de baixa renda. A economista da Unicamp avalia essas medidas como importantes, mas que não resolvem o problema se não houver uma renda mínima.

Em Portugal, os trabalhadores autônomos vão receber uma ajuda financeira de 438 euros por mês e o governo também vai conceder incentivos a empresas que mantiverem o salário dos trabalhadores que precisarem ficar em casa para cuidar dos filhos. Outros  governos europeus estão indicando que adotarão medidas parecidas.

Se as contas não fecharem, negocie

O maior medo das mulheres entrevistadas é faltar comida para os filhos, seguido do receio de não conseguir pagar o aluguel e ser despejada. Para quem tem contrato, o despejo pode ser evitado. “O proprietário teria que entrar com ação para a pessoa sair e, nesse caso, existe argumento para defesa”, explica a advogada Bruna Ksumoto, professora de direito civil na pós-graduação da PUC São Paulo. 

Ela orienta as mulheres a priorizarem o essencial, como compra de alimentos, luz e água, e negociarem o que não der para pagar. “Liga para o locatário, liga pros bancos e informa a situação. Tente negociar”. 

O governo federal suspendeu temporariamente as cobranças de dívidas para quem tem débitos com a União. Alguns governos estaduais, como Rio e São Paulo, seguiram o exemplo e fizeram o mesmo. Bancos também estão adiando cobrança de dívidas.

O que você pode fazer para ajudar

“Nesse momento, e eu falo menos como economista e mais como ser humano, a gente vai ter que tomar conta das outras pessoas”, diz Marilane Teixeira. Ela reforça a necessidade de ações do governo e empresas, mas acredita que é preciso que as pessoas também tenham atitudes solidárias para diminuir o impacto econômico na vida dessas mulheres. 

Algumas sugestões de como  ajudar mulheres em situação mais vulnerável:

  • Dispense sua diarista ou empregada doméstica, para que ela não se exponha ao vírus, mas pague pelos dias de trabalho dispensados, se você tiver condições; 
  • Faça o mesmo com outras profissionais que prestam serviço normalmente para você, como manicures, professoras, terapeutas, etc;
  • Procure orientar sobre os benefícios disponibilizados pelo governo, informe e ajude nos processos; 
  • Se puder fazer doações em dinheiro, faça;
  • Se puder doar comida, doe;
  • Pressione o governo por políticas contra a crise focadas nas populações vulneráveis. Atitudes individuais não são suficientes. Você pode fazer isso via abaixo-assinados, denúncias, pressão nas redes sociais e e-mails para os políticos eleitos

*Helena Bertho é repórter da Revista AzMina e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

Maria Martha Bruno

Jornalista multimídia, com experiência na cobertura de política e cultura, integra a equipe da Gênero e Número desde 2018. Durante três anos, foi produtora da NBC News, onde trabalhou majoritariamente para o principal noticiário da emissora, o “NBC Nightly News”. Entre 2016 e 2020, colaborou com a Al Jazeera English, como produtora de TV. Foi repórter e editora da Rádio CBN e correspondente do UOL em Buenos Aires. Jornalista pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, é mestre em Comunicação e Cultura pela mesma instituição, e atualmente cursa o programa de Doutorado em Comunicação na Texas A&M University, nos EUA.

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