Mulheres trans e travestis jovens e negras são as principais vitimas |Foto: Ricardo Matsukawa/TemQueTer

Assassinato de pessoas trans cresce 75% em dez anos sem políticas públicas eficazes de proteção

Levantamento feito pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais considera perfil das vítimas assassinadas em 2020; problemas institucionais são apontados como um dos principais gargalos para solução da violência

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Por Vitória Régia da Silva e Lola Ferreira*

  • Raça, território e espaços

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  • Subnotificação

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Chiara Duarte, 27 anos, foi assassinada a facadas em setembro de 2020 no centro de São Paulo e, depois, jogada do 7º andar do seu prédio pelo assassino. A família da vítima não tem dúvidas: foi transfobia. O mesmo aconteceu com Márcia Shokenna Bastos da Silva, de 28 anos, na região litorânea do Rio de Janeiro. No caso dela, o assassinato foi a pauladas, e o corpo acabou abandonado em um sítio. Chiara, Márcia e ao menos outras 173 mulheres trans foram assassinadas em 2020, número que mantém o Brasil no topo do ranking de países que mais matam essa parcela da população.

Os dados inéditos foram compilados pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e divulgados em dossiê inédito nesta sexta-feira (29), Dia Nacional da Visibilidade Trans. O extenso documento cataloga os efeitos sempre nocivos da transfobia e chama a atenção para a escalada de crimes contra pessoas trans.

 

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“O que fica nítido é o quanto a omissão e o descaso do Estado no cuidado com a população trans, ao não se debruçar sobre os processos de vulnerabilidade e precarização da nossa população, têm nos deixado cada vez mais próximos desse cenário de violência. Esse afastamento do acesso a direitos e o não reconhecimento da nossa cidadania também”, pontua Bruna Benevides, secretária de articulação da Antra e uma das autoras do dossiê. “O Estado tem falhado na proteção das nossas vidas quando não conseguimos efetivar as denúncias ou quando são desqualificadas”.

Mortes como as de Chiara e Márcia são a maioria: em 77% dos casos, os assassinos usaram requintes de crueldade, uma característica comum em crimes de ódio. O fato de serem todas mulheres no levantamento da Antra revela que o preconceito de gênero também aparece em casos de transfobia. Benevides reforça que o levantamento não afirma que todas as mortes são por transfobia ou por identidade de gênero, mas os elementos que compõem esse cenário de violência denunciam o quanto a transfobia é presente. “O principal indicador é esse perfil de humilhação, excesso de violência e crueldade nos crimes de ódio. A identidade de gênero aparece como o principal motivador, e precisamos fazer essa discussão. A intensidade, repetição e o cruzamento do método de violência é o que nos denuncia essa violência como crime de ódio”.

Assassinatos de pessoas trans aumentam 75% na década

Vitimas em 2020 são mulheres trans e travestis, principalmente negras e jovens

ESCALA

!

100 – 200

200

179

180

175

163

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2017

2018

2019

2020

77

foi o número de

tentativas de homicídio

Em 2020,

100% dos assassinatos foram

de mulheres trans e travestis

Perfil das vítimas assassinadas em 2020

idade

56%

29%

7%

8%

30 - 39

40 - 49

50 - 59

15 - 29

raça

78%

negra

19%

branca

3%

sem

informação

fonte Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Assassinatos de pessoas trans aumentam 75% na década

Vitimas em 2020 são mulheres trans e travestis, principalmente negras e jovens

ESCALA

!

100 – 200

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179

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2020

2011

Em 2020,

100% dos assassinatos

foram de mulheres

trans e travestis

77

foi o número de

tentativas de homicídio

Perfil das vítimas assassinadas em 2020

idade

56%

15 - 29

29%

30 - 39

7%

40 - 49

8%

50 - 59

raça

78%

negra

19%

branca

3%

sem

informação

fonte antra

As pesquisadoras também destacam que o assassinato de homens trans ou pessoas transmasculinas (pessoas designadas com o gênero feminino ao nascer, mas que têm identidade de gênero relacionada ao masculino, sem necessariamente serem homens trans) é marcado por outro fator violento: o desprezo às suas identidades, seja por não terem retificado documentos ou por ainda haver uma ideia de associação imediata ao gênero da pessoa apenas por conta da sua genitália, principalmente aquelas no início da transição de gênero. Tudo isso dificulta a identificação desses casos. O perfil majoritário da vítima dos assassinatos, no entanto, é mulher trans, negra e pobre, mais próxima do ideal de “travesti” rechaçado pela sociedade, e também profissionais do sexo.

Raça, território e espaços

Em relação ao perfil regional, o Nordeste concentra 43% dos casos de assassinatos, seguido pelo Sudeste, com 34% dos casos. Desde 2017, de acordo com a Antra, essa triste liderança da região Nordeste se mantém. Já em relação à idade, a faixa etária que concentra 56% dos casos é de 15 a 29 anos. A idade média de todas as vítimas assassinadas em 2020 é 29,5 anos.

Para as pesquisadoras responsáveis pela publicação, meninas trans serem assassinadas cada vez mais cedo é reflexo do discurso contra pessoas trans que tem ganhado musculatura na sociedade nos últimos anos, paralelamente ao aumento da discussão por amplitude de direitos. Ou seja, cada vez mais cedo pessoas trans abraçam sua identidade de gênero e também cada vez mais cedo são perseguidas por este fato. 

[+] Leia também: Pouco dinheiro gasto por ministério de Damares em 2020 impacta mulheres e LGBT+ e gera temor sobre futuro da pasta

O dossiê “Assassinatos e violências contra travestis e transexuais brasileiras em 2020″ também avalia o impacto da raça das vítimas nos números. E em 78% dos casos, mulheres trans assassinadas eram negras (pretas ou pardas), mantendo o índice médio de 80% dos levantamentos anteriores da Antra. As pesquisadoras ressaltam que são as travestis e transexuais negras as que têm mais chances de serem mortas, têm menos acesso ao mercado formal de trabalho e trabalham mais na rua. 

“Tentam homogeneizar nossas experiências, mas quando fazemos o recorte, passamos a compreender que pessoas trans têm mais chances de serem assassinadas por ódio e transfobia do que pessoas cis, mas algumas pesssoas trans estão mais sucetíveis ao assassinato violento e cruel do que outras, o que não quer dizer que essas outras não têm risco de serem assassinadas. Não surpreende que em um país em que cresce o número de feminícidios e que mata constantemente jovens negros, essa disparidade de gênero, racial e etária apareça”, disse Benevides. 

Mas a realidade do trabalho na rua tem reflexos também em outros dados fundamentais: a quantidade de assassinatos no espaço público. Em 2020, 71% dos casos aconteceram no espaço público, com ao menos oito vítimas que estavam em situação de rua. E do total de casos, 72% das vítimas eram profissionais do sexo. De acordo com o dossiê, elas “são as mais expostas à violência direta e vivenciam o estigma dos processos de marginalização”. 

Marina Riedel, diretora de promoção dos direitos LGBT no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, informou que um dos objetivos da área que comanda é desenvolver projetos que possam mudar a realidade dessas violências, em constante discussão com todas as esferas de governo. “Um deles é a proposta de um pacto federativo sobre a violência LGBTfóbica, e também o programa de empregabilidade”, explica.

Espaço público e armas de fogo marcam maioria dos assassinatos de pessoas trans no Brasil

2020 registrou 175 assassinatos em todo o Brasil, com maior ocorrência no Nordeste

perfil da violência em 2020

local

50%

via pública

16%

residência

da vítima

10%

Corpo encontrado

terreno baldio

4%

Corpo encontrado

rio/lagoa

4%

motel

16%

outros

tipos de assassinatos

TIROS

47%

Espancamento/Estrangulamento

24%

FACADAS

21%

OUTRos

8%

por região

7%

norte

43%

nordeste

7%

centro - oeste

34%

sudeste

8%

sul

fonte Associação Nacional de Travestis e Transexuais

Espaço público e armas de fogo marcam maioria dos assassinatos de pessoas trans no Brasil

2020 registrou 175 assassinatos em todo o Brasil, com maior ocorrência no Nordeste

perfil da violência em 2020

local

50%

via pública

16%

residência

da vítima

10%

Corpo encontrado

terreno baldio

4%

Corpo encontrado

rio/lagoa

4%

motel

16%

outros

tipos de assassinatos

TIROS

47%

Espancamento/

Estrangulamento

24%

FACADAS

21%

OUTRos

8%

por região

7%

norte

43%

nordeste

7%

centro

oeste

34%

sudeste

8%

sul

fonte antra

Subnotificação

O dossiê ainda analisa o recorrente problema de subnotificação dos casos de violência LGBTfóbica. Não há hoje, no Brasil, um sistema de dados que consiga compilar e divulgar todas as violências sofridas com destaque para a identidade de gênero das pessoas, o que ajudaria a mapear as violências transfóbicas. 

A Antra, portanto, denuncia que muitos assassinatos de pessoas trans se perdem nos registros de ocorrência ou em laudos que ignoram a identidade de gênero. De acordo com a entidade, “são os estados, as polícias e órgãos de segurança os responsáveis pela falta de dados e manutenção da subnotificação dos dados de assassinatos de pessoas trans no Brasil”.

[+] Leia também: Primeiros oito meses de 2020 têm mais assassinato de mulheres trans do que todo o ano de 2019

Essa omissão institucional também é exposta, pela organização, no preconceito que pessoas trans ainda encontram no atendimento em órgãos públicos, o que dificulta a denúncia. Para a Antra, “ao se abster de mapear ou informar sobre o transfeminicídio, o Estado se exime da responsabilidade de pautar políticas de segurança para esta população”. 

E o relatório continua: “Não acessar informações dos movimentos sociais a fim de gerar tais dados, tampouco se preocupar em levantá-los, é a maior demonstração de descaso com a nossa população”, citando a não obrigatoriedade do preenchimento da identidade de gênero em bancos de dados públicos, como o Disque 100.

Acesse a base de dados desta reportagem

*Vitória Régia da Silva e Lola Ferreira são repórteres da Gênero e Número

Marilia Ferrari

Arquiteta e urbanista formada pela Universidade de São Paulo (FAU-USP), trabalha na Gênero e Número desde 2017, onde hoje atua como vice-presidente e diretora de design e inovação. Fascinada por criar sistemas, acumula projetos de comunicação visual para organizações do terceiro setor e movimentos sociais.

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