O ano de 2020 teve queda de 4,5% nas denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes no Disque 100, em relação a 2019; foram 14.621 registros no primeiro ano da pandemia. Em 2021, até 12 de maio, o Disque 100 registrou mais de 6 mil denúncias de violência sexual infantil. A pandemia, que levou ao fechamento das escolas e lugares de sociabilidade das crianças e adolescentes, é apontada por fontes ouvidas pela Gênero e Número como uma das justificativas para a diminuição das denúncias.
Segundo a Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (parte do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos), ano passado apenas 6% das denúncias de violência de qualquer tipo contra crianças e adolescentes foram realizadas pelas vítimas no Disque 100. Maio é considerado o mês de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes. Na terça-feira (18), cinco pessoas foram presas em uma operação em 18 estados visando desmantelar uma rede nacional de exploração sexual infantil.
Denúncias de violência sexual infantil no Disque 100 caem em 2020, mas pandemia pode impactar na subotificação dos casos
Segundo profissionais ouvidas pela Gênero e Número, educação sexual, tema ainda “polêmico” para setores conservadores, é medida fundamental de combate à exploração sexual de crianças e adolescentes

Para Haryanna de Lima Lobo, psicóloga clínica e especialista em atendimento de crianças e adolescentes de Curitiba (PR), é mais difícil que a vítima denuncie e relate um caso de violência sexual, especialmente se for uma criança ou adolescente. “A maior parte das violências sexuais acontece de forma intrafamiliar, dentro de casa. Com o isolamento social e menos acesso ao mundo externo, elas ficam mais vulneráveis à exposição dessa violência e têm menos voz. Já é muito difícil para a criança e o adolescente conseguirem relatar o abuso vivido, porque o abuso sexual vem agregado de muita culpa”, destaca.
Os dados reiteram a relação familiar entre suspeitos e vítimas. De acordo com os números do segundo semestre de 2020 do Disque 100, 67,30% dos suspeitos são familiares, o que corresponde a 4.926 denúncias. Neste ambiente, a categoria padrasto/madrasta (1.145) representa a maioria dos suspeitos de violência sexual infantil, seguidos de pais (1.121) e mães (767).
“Com a pandemia, crianças e adolescentes ficam mais vulneráveis por estarem menos ocupados, ficando mais expostos à internet, à rua. Elas têm que ‘se virar’ sem ter um lugar com profissionais que as auxiliem no seu desenvolvimento. Na pandemia, temos um aumento da violência, mas diminuição enorme das denúncias e da possibilidade de salvar essas vítimas”, pontua Lobo.

Denúncias de abuso sexual infantil [ 2018 a maio 2021]
Primeiro ano da pandemia teve redução na comparação com 2019
Em 2019 foram feitas 15.316 denúncias de abuso sexual infantil
15,3 mil
-4,5%
+14%
2019
13,4 mil
14,6 mil
2020
2018
2021
16 mil
12
8
4
0
Até 12 de maio de 2021,
mais de 6 mil denúncias de abuso sexual infantil já foram feitas
fonte disque 100

Denúncias de abuso sexual infantil [ 2018 a maio 2021]
Primeiro ano da pandemia teve redução na comparação com 2019
Em 2019 foram feitas 15.316 denúncias de abuso sexual infantil
15,3 mil
+14%
-4,5%
2019
13,4 mil
14,6 mil
2020
2018
2021
16 mil
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Até 12 de maio de 2021,
mais de 6 mil denúncias de abuso sexual infantil já foram feitas
fonte disque 100
[+] Leia também: Alto índice de estupro de menores no Rio reforça necessidade de educação sexual nas escolas
A Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente também reforça que a diminuição do número de violências não significa que esse tipo de violência diminuiu. “Pode-se inferir que essa redução decorre das medidas restritivas decorrentes da pandemia da covid-19, tendo em vista que as crianças não estão frequentando, com a mesma assiduidade, o ambiente escolar, locais públicos ou atividades recreativas, onde terceiros poderiam verificar potencial situação de violência e efetuar a denúncia de suposta violação”, destaca em nota à Gênero e Número.
As denúncias são realizadas principalmente por outras pessoas, por isso as denúncias dependem de um olhar de fora, completa Haryanna de Lima Lobo. Nesse sentido a pandemia contribui ainda mais para essa subnotificação. “As denúncias de violência contra criança e adolescente são feitas por meio das redes de proteção, que são órgãos do Estado, como escolas, unidades de saúde, centros de referências, entre outros. Com a pandemia, as pessoas ficam mais presas no seus núcleos, mais expostas a seu possível violador, com menos acesso à informação”, destaca a psicóloga.
As residências ainda são o lugar que concentra o maior número de casos de violência sexual infantil. Segundo o Disque 100, 84% das denúncias no segundo semestre de 2020 aconteceram em residências, sejam da vítima, de suspeitos ou de terceiros. Sendo que em 45% dos casos, a violência sexual aconteceu na casa em que coabitam vítima e suspeito.

Relação vítima x suspeito
Pessoas da família são maioria entre suspeitos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes [2o sem / 2020]
33%
outros
67%
familiares
familiares
prestador
de serviços
sogro(a)
ex-companheiro(a)
pai
amigo(a)
primo(a)
professor/diretor
sobrinho(a)
tio(a)
cuidador(a)
cunhado(a)
desconhecido(a)
genro(a)
não sabe
informar
mãe
irmão(ã)
filho(a)
vizinho(a)
companheiro(a)
líder
religioso
enteado(a)
padrasto/madrasta*
padrinho/
madrinha
treinador/
técnico
avô/bisavô/trisavo/ó
hierarquia
superior
outros
* A partir de 2020 as categorias padrasto e madrasta passaram a se juntar.
fonte disque 100

Relação vítima x suspeito
Pessoas da família são maioria entre suspeitos de abusos sexuais contra crianças e adolescentes [2o sem / 2020]
67%
familiares
companheiro(a)
pai
tio(a)
padrasto/madrasta*
cunhado(a)
mãe
familiares
primo(a)
filho(a)
irmão(ã)
avô/bisavô/trisavo/ó
genro(a)
padrinho/
madrinha
enteado(a)
sobrinho(a)
sogro(a)
33%
outros
vizinho(a)
desconhecido(a)
amigo(a)
prestador
de serviços
não sabe
informar
ex-companheiro(a)
cuidador(a)
professor/diretor
treinador/
técnico
líder
religioso
hierarquia
superior
outros
* A partir de 2020 as categorias padrasto e madrasta passaram a se juntar.
fonte disque 100
Mudança de método prejudica comparação
A atual gestão da Secretaria Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente informou que houve revisão dos protocolos de atendimento e implementação de nova metodologia no ano de 2020. Quando se trata da relação entre suspeito e vítima — variável relevante para a compreensão do contexto em que crianças e adolescentes estão tendo seus direitos violados — houve uma mudança importante: as categorias padrasto e madrasta, e pai e mãe, que até 2019 eram compreendidas como categorias diferentes, foram agrupadas a partir de 2020 em: pai/mãe e padrasto/madrasta. Nesse sentido, há perda de informações a respeito do padrão da violação e também perde-se a possibilidade de comparação com anos anteriores.
Considerando que os parâmetros para o ano de 2020 são distintos dos anos anteriores, ficamos em um cenário de escassez de informações em nível comparado, justamente em um ano onde as crianças e adolescentes estiveram mais em casa do que em outros períodos, em função da pandemia de Covid-19.
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Na pandemia, temos um aumento da violência, mas diminuição enorme das denúncias e da possibilidade de salvar essas vítimas" - Haryanna de Lima Lobo, psicóloga clínica

O perigo mora em casa
Residências foram os locais onde ocorreram a maioria dos crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes [2o sem / 2020]
83%
dentro de casa
17%
outros
casa onde residem
vítima e suspeito
47%
casa do suspeito
ambiente virtual
via
pública
outros
casa da vítima
tra-
balho
não
sabe
casa de familiar
casa de
terceiros
fonte disque 100

O perigo mora em casa
Residências foram os locais onde ocorreram a maioria dos crimes de violência sexual contra crianças e adolescentes [2o sem / 2020]
83%
dentro de casa
casa onde residem
vítima e suspeito
47%
casa do suspeito
casa da vítima
casa de familiar
casa de terceiros
ambiente virtual
via
pública
tra-
balho
não
sabe
outros
17%
outros
fonte disque 100
Educação sexual
A escola é um dos primeiros espaços que identificam o abuso sexual. No entanto, com o fechamento e posterior reabertura parcial das instituições de ensino em virtude da pandemia de covid-19, tornou-se mais difícil para que profissionais da educação percebam os sinais de abuso. Segundo profissionais ouvidas pela Gênero e Número, isso evidencia a importância da educação sexual como medida de prevenção e combate à violência sexual. Apesar de ser ainda entendida como uma área “polêmica” por setores conservadores, este aprendizado é uma das principais ferramentas para quebrar o ciclo do abuso e fornecer informação e autonomia sobre o próprio corpo.
Vanessa Ribeiro Simon Cavalcanti, coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos (NEDH/UCSAL/CNPq) na Universidade Católica de Salvador, aponta que precisamos desmistifica e sair do senso comum sobre educação sexual, além de visões preconceituosas e pouco respeitadoras da diversidade.
“Nos últimos anos, a educação sexual ganhou reforço como uma prática que pode auxiliar na educação e informação sobre abuso e exploração sexual de crianças e jovens. Muitas campanhas educativas e relacionadas trazem formas de chegar ao atendimento de instituições que podem circunscrever a ‘proteção integral’ das faixas etárias mais vulneráveis”
Para Lobo, a educação sexual não é falar sobre sexo, é falar sobre desenvolvimento do corpo, informar sobre contracepção, consentimento e os limites do toque e relações sexuais:
“Muitas vezes é através dessas aulas que as crianças conseguem acessar e entender os abusos sofridos. Se não tiver acesso a essas informações, a criança não terá um parâmetro para poder se proteger ou denunciar o abuso. Educação sexual é para trazer para a consciência de crianças e adolescentes sobre corpo, sexualidade e violência”.
[+] Leia também: ENTREVISTA: “Uma criança educada do ponto de vista sexual está preparada para não ser vítima de abusos”
A própria Secretaria da Criança e Adolescente reconhece a importância da educação sexual no combate a violência sexual contra crianças e adolescentes. Mas a ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves, já se colocou “contra a forma como [a educação sexual] estava sendo feita no Brasil”, em entrevista à Rádio Jovem Pan. “A partir de conversas sobre sexualidade (respeitada a maturidade da criança/adolescente) é possível informar sobre as diferenças entre os corpos feminino e masculino; explicar que ninguém pode tocar no seu corpo sem permissão; ensinar sobre a autoproteção e autocuidado; relacionamentos não violentos; afetividade e, principalmente, onde buscar ajuda se sentir necessidade”, destaca a Secretaria em nota.
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Apesar da educação sexual fazer parte dos Parâmetros Curriculares Nacionais, ainda não é uma realidade nas escolas brasileiras e sofre com resistência de pais, professores e figuras políticas. “A educação sexual poderia ser tão somente uma parte curricular, mas ao acrescentar a pluralidade, a diversidade e a compreensão de identidades, de experiências, de vivências individuais e coletivas, indica efeitos ou consequências nas vidas e nas escolhas pessoais de cada pessoa ou grupo”, destaca.
Ela ainda pontua que a educação deve ser eixo de Estado e não de governos: “No caso brasileiro, temos ainda uma certa bipolarização e leva a um corta/inclui a depender de mandatos. Em decisão por Estado laico e educação para emancipação, primando pela igualdade sem discriminação, devemos pensar para além de discursos morais e religiosos. São expressões e ocupam reivindicações de movimentos sociais, experiências relacionais, amparadas por organizações não governamentais, fundações e agências de fomento”, finaliza a coordenadora do Núcleo de Estudos sobre Educação e Direitos Humanos.