O isolamento social impõe às pessoas mais tempo em casa, um espaço que representa lugar de segurança e pouco risco de contaminação de covid-19, mas para muitas mulheres, isso está longe de ser verdade. Desde que o governo do estado do Rio de Janeiro determinou o isolamento social, em 13 de março, até o dia 31 de dezembro de 2020, mais de 73 mil mulheres foram vítimas de violência, segundo levantamento feito pelo Núcleo de Estudos ISPMulher, do Instituto de Segurança Pública (ISP). Desses casos, 45.477 crimes foram registrados sob a Lei Maria da Penha.
O levantamento analisou, junto com os dados de registro de ocorrências, serviço 190 e disque denúncia, os dados de nível de isolamento social fornecidos pelo Google. A análise mostrou uma queda significativa nos registros de ocorrência nos meses de abril, maio e junho. Porém, com a flexibilização das medidas restritivas e a queda no nível de isolamento, o número de registros começou a aumentar e, no fim do ano, aproximou-se do mesmo patamar de antes do isolamento social.
Mesmo com esses dados alarmantes, em 2020 houve uma redução de 21,9% no número de crimes de violência contra a mulher registrados em delegacias, comparando com o mesmo período em 2019, o que não significa que a violência diminuiu ou deixou de acontecer, mas pode indicar uma subnotificação por causa das restrições implementadas durante a pandemia.
“O que nós percebemos é que houve uma queda nos registros, mas isso não significa, obrigatoriamente, que ocorreu a diminuição da violência doméstica. Com a adoção das medidas de prevenção ao coronavírus, muitas vítimas precisaram ficar confinadas no mesmo ambiente dos agressores por muito mais tempo. É importante salientar também que, apesar das delegacias estarem abertas e recebendo denúncias, muitas mulheres evitaram ir ao local com medo de serem contaminadas”, explica Marcela Ortiz, diretora-presidente do ISP.
Para secretária municipal de Políticas e Promoção da Mulher na prefeitura do Rio de Janeiro, a violência contra a mulher é um dos grandes desafios para 2021
E a casa, sinônimo de proteção para muitos na pandemia, continua sendo o lugar mais perigoso para elas, segundo a pesquisa. No período de isolamento em 2020, mais de 75% delas sofreram violência justamente dentro de casa e ainda houve aumento de ocorrências de crimes mais graves em residências. E 81% dessas mulheres foram vitimadas pelo próprio companheiro ou ex-companheiro.
Trindade ainda destaca que apesar da queda nos registros, aumentou na capital a quantidade de mulheres que procuram atendimento nos Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAM), que oferecem suporte psicológico, jurídico e social, sem que a mulher precise fazer uma denúncia para usar o serviço. “Foi interessante observar esse contrafluxo. O CEAM ampliou seus atendimentos, principalmente porque possibilitamos o atendimento por meio virtual, e esse foi um grande aprendizado porque percebemos que muitas mulheres tiveram a chance de serem ouvidas e procuram, sim, atendimentos especializados”, conta.
Já o número de chamadas para a Central 190 da Secretaria de Estado de Polícia Militar sobre crimes contra a mulher teve um aumento 1,6% em relação a 2019. Foram 73.274 ligações entre 13 de março e 31 de dezembro de 2020, em comparação com 72.076 no mesmo período de 2019.
Para Joyce Trindade, secretária municipal de Políticas e Promoção da Mulher na prefeitura do Rio de Janeiro, os grandes desafios para 2021 são a violência contra mulher nesse contexto de isolamento e a empregabilidade da mulher, que são as primeiras a serem demitidas das empresas, e que também se conecta a esse ciclo de violência: “Nossas ações prioritárias de atendimento passam por esses pilares, e temos buscado ações digitais e presenciais para levar esse atendimento e informação”
Violência contra mulher durante isolamento social
no Rio de Janeiro
Foram mais de 250 mulheres vítimas de violência por dia em 2020
2020
2021
7.000
6.765
5.765
5.584
5.475
5.488
5.626
5.353
crimes totais na
Lei Maria da Penha
5.010
4.745
4.193
Outros crimes
Ameaças
Tentativa de feminicídio
3.500
3.240
3.121
Lesão
corporal
dolosa
Estupro
Feminicídios
0
mar
abr
nov
dez
jan
fev
maio
jun
jul
ago
set
out
fonte ISP/RJ
Violência contra mulher durante isolamento social no Rio de Janeiro
Foram mais de 250 mulheres vítimas de violência por dia em 2020
2020
2021
7.000
6.765
5.765
5.584
5.475
5.488
5.353
5.626
total de crimes na
Lei Maria da Penha
5.010
4.745
4.193
3.240
3.121
Lesão corporal
dolosa
Estupro
0
Feminicídios
mar
abr
maio
jun
jul
ago
set
out
nov
dez
jan
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fonte ISP/RJ
Feminicídio
Em 2020, foram 65 mulheres mortas por serem mulheres, vítimas de feminicídio. Na cidade do Rio de Janeiro, Campo Grande ocupa, ao lado do bairro Caonze, em Nova Iguaçu, o primeiro lugar no ranking estadual com maior número de casos de feminicídio. Cada um registrou quatro vítimas ao longo dos dez meses analisados e 190 tentativas de feminicídio, segundo dados do ISP. No primeiro mês de 2021, nove mulheres foram mortas, sendo o maior número de vítimas para o mês desde o início da série histórica, em 2016. Já em fevereiro foram 5 vítimas de feminicídio.
Além disso, foram 190 tentativas de feminicídio em 2020. Em janeiro de 2021, foram 24 vítimas e, em fevereiro, 26, apresentando um aumento de duas vítimas em relação ao mês anterior.
A Secretária Municipal de Políticas e Promoção da Mulher na Prefeitura do Rio de Janeiro conta que está estruturando, junto com o Conselho Municipal de Direito da Mulher e a Rede Municipal de Enfrentamento da Violência, ações mais efetivas de assistência para famílias vítimas de feminicídio. As ações são em duas frentes principais: atendimento psicossocial para as famílias e auxílio financeiro, em diversos formatos de auxílio, principalmente para os filhos não serem ainda mais vitimizados na sociedade.
A vereadora Monica Benicio (PSOL/RJ), viúva da vereadora Marielle Franco, protocolo, em fevereiro deste ano, o projeto de lei que institui o Programa Municipal de Enfrentamento ao Feminicídio na Câmara do Rio. A proposta estabelece a ampliação e garantia de abrigos para acolhimento provisório de mulheres e seus dependentes e a disponibilização para as mulheres em situação de violência e sobreviventes de feminicídios, de serem incluídas em programas municipais relacionados ao trabalho, à geração de renda, à economia solidária, à capacitação profissional e à habitação.
Mapa da Mulher Carioca e ISPMulher
Para retratar a realidade das 3,6 milhões de mulheres no Rio de Janeiro, a Prefeitura do Rio lançou no início de abril (08/04), a primeira versão do Projeto Mapa da Mulher Carioca, que é liderada pela Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher e pretende ajudar os gestores municipais na identificação das prioridades e necessidades das mulheres da cidade e contribuir para o desenvolvimento de políticas e serviços públicos mais inclusivos e integrados no enfrentamento às violências contra a mulher. O estudo tem a previsão de ser concluído até o fim do ano.
“A ideia do Mapa é que seja contínuo, é ser um observatório de dados sobre gênero e que seja nutrido também pelas outras secretarias para que a sociedade civil e secretarias possam entender mais do debate de gênero. Nesse primeiro momento, lançamos o hub e o estudo preliminar. Trouxemos indicadores sociais para subsidiar os instrumentos participativos de estratégia de governo”, destaca Trindade.
Em março, o governo fluminense e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) assinaram um termo de cooperação técnica para viabilizar instrumentos de enfrentamento e eliminação da violência de gênero. A iniciativa prevê a mobilização do CNJ e de diversos órgãos estaduais para elaboração das ações em conjunto.
E segundo dados da Secretaria de Estado de Polícia Militar do Rio de Janeiro, a Patrulha Maria da Penha quase dobrou o número de atendimentos nos dois primeiros meses de 2021 na comparação com o mesmo período do ano passado, antes do início da pandemia do coronavírus. Foram 8.668 fiscalizações de medidas protetivas, assistência à mulher e visitas de acompanhamento em janeiro e fevereiro deste ano em comparação com 4.362 no mesmo período de 2020.
Também este ano, em fevereiro, foi criado o Núcleo de Estudos ISPMulher, com o intuito de subsidiar o Poder Executivo estadual com dados sobre a violência doméstica, que servirão de base de novas políticas públicas e ações voltadas para o combate a este tipo de crime e que monitora de forma semanal e mensal os dados de violência contra a mulher no Estado.
“O Estado possui diversos mecanismos para o enfrentamento à violência contra a mulher, a própria Lei Maria da Penha e a Lei do Feminicídio são avanços. Temos, de fato, uma boa legislação. Mas vivemos numa sociedade extremamente machista e essas mudanças culturais demoram para serem consolidadas”, pontua Marcela Ortiz, diretora-presidente do ISP. “A violência contra a mulher não será resolvida apenas com polícia. Muitas pessoas ainda acham normal que uma mulher possa ser ofendida pelo marido, por exemplo. E isso não é aceitável. A violência contra a mulher é uma escada. Cada degrau representa um salto na agressividade. O último estágio dessa escada, infelizmente, pode ser o feminicídio”, conclui.
É jornalista, escritora e cineasta. Graduada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo pela UFRJ, mora há oito anos no Rio de Janeiro. Faz parte da diretoria executiva e é editora-assistante multiplataforma da Gênero e Número, além de editora-chefe da Revista Capitolina. Integra a Gênero e Número desde 2017, e sua busca pela construção de uma comunicação que tenha como base as diversidades de gênero, raça e sexualidade é transversal a todas as atividades que desenvolve em rede e profissionalmente
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