Foto: Ana Carolina Porto

A violência contra mulheres nas paradas de sucesso

Mesmo com avanço do debate público sobre abuso e assédio contra mulheres, canções que incitam violência misógina continuam chegando ao topo de rankings de mais tocadas; músicas fazem sucesso “porque circulam em um meio social no qual são coerentes e aceitas”, diz pesquisadora

Por Vitória Régia da Silva*

Carolina de Assis

  • Misoginia em vários estilos musicais

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  • Medidas legais

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  • Debate e conscientização

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“Tô a fim de você, e se não tiver, cê vai ter que ficar” e  “Vai namorar comigo sim (…) Se reclamar, cê vai casar também” são versos da música “Vidinha de Balada”, da dupla sertaneja Henrique e Juliano. Ainda que em 2017 o debate público sobre assédio e abuso contra mulheres no Brasil tenha avançado, a canção foi a segunda mais tocada na rádios no país no ano passado, segundo levantamento da Crowley Broadcast Analysis, e a terceira mais ouvida no Spotify.

A tentativa de romantização de relacionamentos abusivos e de violência contra mulheres não é uma novidade no mundo do sertanejo, como constatou a pesquisadora Amanda Ágata Contieri. Em sua dissertação de mestrado em linguística aplicada na Unicamp, defendida em 2015, Contieri analisou as representações de mulheres presentes nas letras de 17 canções sertanejas compostas entre as décadas de 1950 e 2010.

A pesquisadora encontrou manifestações explícitas de violência contra mulheres, como o feminicídio de Cabocla Tereza na canção homônima (“Agora já me vinguei / É esse o fim de um amor / Essa cabocla eu matei / É a minha história, doutor”); agressão física, como em “Pagode” (Eu fui na feira com dois tostão / (…) Comprei açucar comprei canela comprei / Um chicote que é pra bater nela); e cárcere privado, como em “Bruto, Rústico e Sistemático” (“Na muié eu dei um jeito / Corretivo do meu modo / No quarto deixei trancada / Quinze dias aprisionada / E com ela não incomodo”).

“Nas canções mais antigas, não se considerava tanto uma mulher ativa sexualmente, com desejos e vontades, tampouco mulheres independentes e que se divertem”, como a mulher que curte sua “vidinha de balada” na canção de Henrique e Juliano, observou Contieri à Gênero e Número. “No entanto, alguns discursos se tornaram mais sutis, como é o caso da discussão do consentimento. É importante atentarmos a eles para que as questões não sejam mascaradas”, pontua a pesquisadora.

“A letra desse hit [“Vidinha de Balada”] funciona como uma declaração de amor e tem a pretensão de divertir e embalar romances. Presume-se, portanto, não só que ela será aceitável, como que as mulheres vão gostar de ouvir. E isso realmente ocorre, porque alguns discursos estão naturalizados”, disse Contieri.

A Gênero e Número tentou contato com Henrique e Juliano, mas a assessoria dos cantores não respondeu até a publicação desta reportagem. Em entrevista ao G1, a dupla defendeu a letra da música e disse tratar-se de liberdade artística. Não vejo abuso. Acho que é o lado engraçado do Henrique e Juliano”, disse o cantor Henrique.

 

 

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Misoginia em vários estilos musicais

Para Contieri, músicas que fazem apologia à violência contra mulheres chegam às listas de mais tocadas “porque circulam em um meio social no qual são coerentes e aceitas. Em um meio onde esse discurso não é tolerado, a música seria incoerente e não faria sucesso”.

O discurso da violência misógina não é aceito somente no sertanejo. Outro exemplo recente é a canção “Surubinha de leve”, do funkeiro MC Diguinho. Lançada em dezembro de 2017, a canção foi uma das mais tocadas da playlist “Viral 50” do Spotify em janeiro. Os versos “Só uma surubinha de leve / Com essas filha da puta / Taca a bebida, depois taca a pica / E abandona na rua” foram apontados por ouvintes e usuários de redes sociais como apologia ao estupro.

Diante dos protestos de usuários, o Spotify retirou a canção da plataforma e o YouTube retirou o vídeo principal da música, que tinha então 14 milhões de visualizações. Em um post no Stories do Instagram, MC Diguinho defendeu sua letra: “A mídia manipulou os pensamentos onde um negro canta funk é apologia ao crime, estupro e etcs, agora beijo gay em novela das 8 é lindo e perfeito aos olhos do mundo e vcs apoiaram essa ideia! Parabéns Brasil!”

Mais tarde, sua assessoria divulgou comunicado afirmando que “MC Diguinho reconhece o conflito de informações devido a toda repercussão. O mesmo informa que, em sua residência, mora com a sua mãe, irmãs e uma sobrinha. Jamais iria denegrir a honra e moral das mulheres. Em respeito a tudo isso, a música será lançada na versão light.” Nessa versão, o refrão foi modificado para “Só uma surubinha de leve / Com essas mina maluca / Taca a bebida / Depois taca e fica / Mas não abandona na rua”.

 

 

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Em meio à controvérsia, a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres divulgou uma nota de repúdio à canção de Mc Diguinho e a “Vai faz a fila”, de MC Denny (“Vou socar na tua buceta sem parar / E se você pedir pra mim parar, não vou parar / Porque você que resolveu vir pra base transar”).

“A música é uma manifestação cultural legítima, mas não pode ser ferramenta incentivadora de crime, sendo necessária a tomada de providências legais contra autores, intérpretes e divulgadores”, afirmou a Secretaria. “A investida sexual sem o consentimento da mulher, ou em qualquer circunstância que lhe provoque perda de consciência, caracteriza violência sexual e pelo novo código penal é enquadrado no crime de estupro e crime de estupro de vulnerável, respectivamente”, continuou o órgão, destacando o dado do Anuário da Segurança Pública de que 49.497 mulheres sofreram estupro em 2016.

Medidas legais

Arlanza Rebello, coordenadora de Defesa dos Direitos da Mulher da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, reconhece que a “barreira entre liberdade de expressão e licença poética é tênue”. “Mas liberdade de expressão não justifica violência e discriminação”, disse a defensora à Gênero e Número. “Existem letras de música que além de banalizar a figura feminina, incitam a violência contra as mulheres de forma direta. Nesses casos, podemos buscar a responsabilização jurídica dos discursos”.

O Código Penal brasileiro prevê em seu artigo 286 pena de detenção de três a seis meses ou multa a quem “incitar, publicamente, a prática de crime”. Em junho de 2016, os integrantes do grupo UDR Thiago Ataíde Machado e Rafael Gonçalves Costa Mordente foram condenados em primeira instância pela Justiça de Minas Gerais com base neste artigo. A Justiça entendeu que eles incitaram os crimes de estupro de vulnerável, homicídio e uso de drogas em suas canções e os condenou 3 anos, 5 meses e 7 dias de reclusão e 120 dias-multa, pena depois substituída por multa de quatro salários mínimos e prestação de serviços à comunidade ou entidades públicas.

Outra hipótese é a reparação civil, quando determinado grupo ou indivíduo que se sinta ofendido pede indenização por danos materiais e morais. Foi o caso das músicas “Tapinha” e ” Tapa na Cara”, do Bonde do Tigrão, que foram alvo de ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e pela ONG Themis – Gênero e Justiça, grupo de assessoria jurídica com foco nos direitos das mulheres.

O MPF e a ONG alegaram que as letras das músicas banalizam a violência contra as mulheres e pediram indenização por danos morais à produtora de funk Furacão 2000, responsável pelas canções. Uma decisão em segunda instância do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4), anunciada em outubro de 2015, concluiu que as músicas incitam a violência de gênero e condenou a produtora a pagar multa de R$ 500 mil, a ser revertida para o Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos da Mulher.

Para a defensora Rebello, “cada caso deve ser analisado cuidadosamente porque, para que haja crime, é preciso que ocorram determinadas situações e requisitos. Não podemos afirmar que toda letra que nos seja repulsiva possa ser enquadrada no tipo penal.” Ela também ressalva que é importante atentar contra a criminalização de estilos musicais mais populares, como o funk. “Temos o vício de criminalizar o que é mais popular, mas a generalização é grave. Se formos olhar para a música em geral, temos exemplos de machismo e apologia à violência contra as mulheres em todos os estilos musicais”, acredita.

 

 

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Debate e conscientização

Quando ouviu “Vidinha de balada”, de Henrique e Juliano, a estudante Camila Queiroz ficou incomodada e levantou o debate em seu perfil no Facebook. Segundo ela, a canção retrata as mulheres “como se fôssemos sortudas, abençoadas por ter alguém que se interesse por nós. Sequer temos voz para decidir se queremos esse relacionamento ou não”.

Ela começou a “corrigir” canções que considerava nocivas e, com a repercussão dos posts, criou a página Arrumando Letras, que já tem quase 260 mil seguidores. Na página, as letras são riscadas e substituídas por frases que versam pelo respeito às mulheres. “O meu intuito é que as pessoas percebam que essas atitudes, que são cantadas de forma tão natural, não são normais, são problemáticas”, disse à Gênero e Número.

Uma iniciativa corporativa contra a violência contra mulheres na música foi a campanha “Músicas de Violência”, parceria entre o Estadão, a agência FCB Brasil e o Disque Denúncia do Rio de Janeiro. Lançada em maio de 2016, a campanha usou o aplicativo de reconhecimento de músicas Shazam para conscientizar ouvintes sobre canções com conteúdo relacionado à violência contra mulheres.

A iniciativa identificou 350 músicas que, ao serem buscadas por usuários do aplicativo, vinham acompanhadas de um alerta sobre o tema. Além de informar sobre o conteúdo da canção, o aplicativo também exibia depoimentos reais de vítimas de violência. Segundo a FCB, após ouvirem as mensagens, somente 6% dos usuários que tinham a intenção de baixar a música acabaram comprando o conteúdo. Outros 94% foram direcionados a um link de doações para o Disque Denúncia.

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Enquanto alguns celebram a violência contra mulheres em suas músicas, outras usam suas vozes para combater as agressões e multiplicar o eco de manifestações de mulheres pelo mundo.

No sertanejo, as cantoras Simone e Simaria – também uma das duplas mais ouvidas no Brasil em 2017 tanto nas plataformas de streaming como nas rádios – versaram sobre violência doméstica na canção “Ele bate nela”. Composta por Simaria, a música conta a história de uma mulher que acreditava ter conhecido “um cara especial”, até que ele começa a agredi-la. Lançado em maio de 2014, o clipe tem mais de 52 milhões de visualizações e traz no final a mensagem “Não se cale. Denuncie. Ligue 180”, o número da Central de Atendimento à Mulher.

Conheça mais artistas que cantam contra a violência contra mulheres em nossa playlist:

Já Elza Soares canta uma mulher que reage à violência do parceiro em “Maria da Vila Matilde”, lançada em 2015. A canção também faz menção ao disque 180: “Cadê meu celular, eu vou ligar pro 180 / Vou entregar teu nome e explicar meu endereço / Aqui você não entra mais, eu finjo que não te conheço / E jogo água fervendo se você se aventurar”.

A funkeira MC Carol também já cantou sobre a violência contra mulheres mais de uma vez. Em “100% Feminista”, parceria com Karol Conká, ela conta como vivenciou violência doméstica dentro de sua família: “Mulher com olho roxo, espancada todo dia / Eu tinha uns cinco anos, mas já entendia / Que mulher apanha se não fizer comida / Mulher oprimida, sem voz, obediente / Quando eu crescer, eu vou ser diferente”.

Ela se pronunciou sobre “Surubinha de leve”, dizendo que “A vingança”, canção dela lançada em 2016, já era uma resposta a uma tentativa de estupro que ela sofreu em um baile, quando um homem colocou drogas em sua bebida. “A gente sabe que isso existe e acontece, mas vocês, MCs homens, têm que parar imediatamente de reproduzir isso. Dá pra gente brincar, dançar, se divertir, ganhar dinheiro, sem falar que vai dar bebida, comer e jogar na rua, ok?!”, escreveu a funkeira em seu perfil no Facebook.

* Vitória Régia da Silva é colaboradora da Gênero e Número.

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Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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