Manifestantes reivindicam o combate a violência contra pessoas trans na 2ª Marcha Trans realizada na última sexta-feira (21/06), em São Paulo| Foto: Mídia Ninja

Transfobia: 11 pessoas trans são agredidas a cada dia no Brasil

Levantamento exclusivo da Gênero e Número  a partir de dados do Ministério da Saúde revela aumento de 800% das notificações de agressões contra a população trans de 2014 a 2017; Tocantins é o estado com maior taxa de violência

Por Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

  • Escassez de políticas públicas após 30 anos

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  • Criminalização da LGBTfobia no STF

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  • Disputa pela criminalização e pelos direitos LGBTs+ no Legislativo

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Em fevereiro deste ano, Maria**, uma travesti afro-indígena, foi espancada por oito homens após pedir um isqueiro emprestado para um vendedor ambulante em uma barraca localizada em uma praça movimentada de Niterói, cidade a vizinha ao Rio de Janeiro. Ela estava com um grupo de amigos LGBTs+, quando o comerciante começou a discutir de forma agressiva com ela. Durante a briga, outros sete homens que estavam no local se juntaram a ele para agredi-la com socos e pontapés, enquanto gritavam xingamentos transfóbicos. 

“Não foi uma discussão ou uma simples agressão. Foi um linchamento. Só pararam de me bater quando a polícia se aproximou do local. Foi minha sorte. Se a polícia não tivesse chegado, eu continuaria apanhando e provavelmente estaria morta”, conta Maria. 

O caso de Maria não é isolado. Em média, 11 pessoas trans foram agredidas por dia em 2017, segundo levantamento exclusivo da Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan, parte do Ministério da Saúde) via Lei de Acesso à Informação (2017 é o ano mais recente em que os dados foram compilados). Houve também um crescimento significativo nos casos de violência registrados: agressões contra a população trans aumentaram mais de 800%, passando de 494 notificações em 2014 para 4.137 em 2017. O levantamento não considera homicídios, apenas agressões registradas em unidades públicas de saúde. 

“Mais do que alcançar leis e proteção, nossa maior luta, como pessoas trans, é fazer com que as pessoas entendam que somos pessoas. E que por isso não podemos mais admitir esse processo de desumanização que permite que se cometa todo tipo de violência e violação, inclusive levando à morte”, destaca Bruna Benevides, secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) e membro da Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI+ (Renosp-LGBTI+), em entrevista à Gênero e Número.

 

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Além das agressões físicas, Maria teve que lidar com atendimento transfóbico de alguns policiais e do hospital. Os agentes públicos desrespeitaram seu nome social e fizeram piadas. Na delegacia, teve que esperar duas horas para ser atendida, ao lado de alguns de seus agressores, que riam em frente à vítima com hematomas e ensanguentada. Nesse dia, ela desistiu de fazer a denúncia. No dia seguinte, Maria foi à Delegacia de Crimes Raciais e de Intolerância (Decradi), no Centro do Rio de Janeiro, onde conseguiu prestar depoimento e foi bem atendida. 

“Não esperava que fossem ter nenhum tipo de empatia com uma pessoa como eu. A sociedade nos enxerga como um indivíduo menor, com menos direitos. Então fiquei muito surpresa com a empatia e o cuidado no atendimento da delegacia especializada”, conta a jovem produtora, formada em moda. Segundo a Decradi, casos de violência contra a população LGBT+ são maioria entre os atendimentos, seguidos por episódios de racismo e intolerância religiosa. 

Embora o caso esteja em investigação e a polícia já tenha identificado alguns dos acusados, o medo de retaliação por parte dos agressores fez com que Maria se mudasse de cidade: “Tinha muito medo de que me encontrassem para terminar o que começaram”. Ela também conta que nunca mais voltou ao local em que foi agredida.

Os dados evidenciam que as agressões contra pessoas trans têm influência racial. Em 2017, a maioria das vítimas eram negras (57%), seguida de brancas (41%), indígenas e amarelas (1%). Esses dados estão em sintonia com outros levantamentos que apontam  o viés racial dessas violências, como o Dossiê de Assassinatos e Violência contra Travestis e Transexuais no Brasil, levantamento anual de agressões e homicídios de pessoas trans do Antra. Em 2018, segundo o documento, houve 163 assassinatos de pessoas trans, sendo que em 82% dos casos as vítimas foram identificadas como pessoas pretas e pardas. Devido à inexistência de dados oficiais sobre os assassinatos de travestis e transexuais no Brasil, a pesquisa é realizada a partir dos casos divulgados pela imprensa e de relatos de grupos afiliados à organização. 

Segundo Benevides, uma das organizadoras do Dossiê, certos marcadores sociais mostram que essas violências se intensificam mais entre alguns grupos: “Se olharmos o contexto social, observamos que pessoas negras e periféricas são mais expostas a esse processo de vulnerabilização. Devido à discriminação contra pessoas trans e ao racismo, não é surpreendente que as trans negras sejam as que mais sofrem com a violência. Esses marcadores sinalizam que alguns corpos têm maior exposição e vulnerabilidade, e por isso são as vítimas preferenciais dessa violência”.

Escassez de políticas públicas após 30 anos

O Tocantins foi o estado com maior taxa de violência contra a população trans em 2017, com 7 agressões para cada 100 mil habitantes, seguido dos estados de Roraima (5) e Acre com (4). Como não há  números oficiais sobre o tamanho da população trans no Brasil, o cálculo das taxas foi feito levando-se em conta a população total de cada estado. 

Para Byanca Marchiori, mulher trans e presidente da Associação de Travestis e Transexuais do estado do Tocantins (Atrato), fundada em 2017, o caráter local conservador, transfóbico e intolerante contribui para este alto índice de violência. “O estado é omisso, não oferece nenhum programa para a população trans. Dependemos muito das poucas iniciativas municipais, para acompanhamento e apoio a essa população”, destaca. Com 36 anos, Marchiori comemora o fato de ser uma sobrevivente e ter passado da média da expectativa de vida das pessoas transexuais no país, de 35 anos, segundo a Antra. O teto representa menos da metade da média nacional (76 anos), de acordo com o IBGE.

 

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De acordo com a Gerência de Diversidade e Inclusão Social da Secretaria de Cidadania e Justiça de Tocantins, “a intolerância sexual, a não aceitação da opção de gênero do outro, é (sic) o que leva a essa manifestação de ódio contra a população trans”. O uso do termo “intolerância sexual” para tratar da população transgênera evidencia uma certa confusão da secretaria em diferenciar identidade de gênero e orientação sexual, e o uso do termo “opção” para tratar de gênero e sexualidade não é adequado para tratar da população LGBT+, como explicam entidades representantes desses grupos (pessoas não “optam”, conscientemente, por sua orientação sexual). 

Além da intolerância, a secretaria justificou a taxa baseando-se na “carência de informação e de políticas públicas” na região, já que o Tocantins é um “estado novo”. Fundado há mais de três décadas, antes da sua emancipação, em 1988, o estado fazia parte de Goiás. O órgão também destacou o apoio a movimentos LGBTs+ e o incentivo à 16ª Parada LGBT+ na capital Palmas como algumas das iniciativas para o combate à violência contra pessoas trans. Sergipe foi o estado com a menor taxa (0,1), atrás de Distrito Federal (0,5) e Ceará (0,7).  

 

 

Criminalização da LGBTfobia no STF

Dia 13 de junho, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu pelo enquadramento da LGBTfobia na Lei  7716/89, que discorre sobre os crimes por preconceito e discriminação, conhecida como Lei do Racismo, até que o Congresso aprove uma legislação sobre o tema. A partir de agora, condutas destes tipos contra a população trans são crimes e passam a ser tipificadas como LGBTfobia. 

A decisão do Supremo é uma tomada de posição que determina que Estado brasileiro vai ter que garantir a segurança dessa população, além de reconhecê-la como cidadã institucionalmente, pela primeira vez”, disse Benevides. Ela ressalta que a legislação não acaba com a violência nem com a LGBTfobia, mas faz com que as pessoas saibam que a partir de agora suas declarações e atos são passíveis de punição.

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A decisão do STF prevê também que os homicídios de LGBTs+ em razão de orientação sexual e identidade de gênero passem a ser vistos pela lei como qualificados. A discriminação por LGBTfobia torna-se motivo torpe quando há intenção de matar. O julgamento também prevê que o exercício da liberdade religiosa seja preservado, desde que não configure discurso de ódio.

“O fato inovador é que com a decisão de acrescentar nos boletins de ocorrência um campo sobre a motivação por LGBTfobia, especialmente nos casos de homicídio, poderemos ter dados e estatísticas confiáveis sobre a morte de pessoas LGBTs+”, destaca Thiago de Souza Amparo, advogado e professor de políticas de diversidade e discriminação no curso de Direito da Fundação Getúlio Vargas (FGV) em São Paulo. Segundo ele, a partir da decisão do Supremo, também é possível que nos casos de lesão corporal por discriminação contra essa população, a LGBTfobia seja considerada um agravante, que pode levar a um aumento da pena. Essa decisão depende da interpretação do juiz e das informações coletadas nos boletins de ocorrência.

Disputa pela criminalização e pelos direitos LGBTs+ no Legislativo

No Congresso, os parlamentares discutem uma proposta que criminaliza a discriminação por identidade de gênero e orientação sexual, mas que faz uma ressalva ao discurso religioso contra LGBTs. O projeto de lei 672/ 2019, de autoria do senador senador Weverton (PDT/MA), não pune templos religiosos nesses casos. O projeto está em tramitação na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania. 

O deputado federal David Miranda (PSOL/RJ) está se articulando com outros parlamentares, incluindo o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM/RJ), para criar outra legislação que contemple os anseios das pessoas LGBTs+. O único parlamentar assumidamente gay na Casa apresentou o projeto de lei 2653/19, que prevê medidas protetivas destinadas a vítimas de violência decorrente de sua orientação sexual, identidade e expressão de gênero, e características biológicas ou sexuais. O projeto tem uma série de medidas semelhantes às previstas na Lei Maria da Penha. “O texto também determina a ampliação de ações educativas para o combate dos preconceitos. Proteção salva vidas”, destaca Miranda. Na justificativa do projeto, a pesquisa da Gênero e Número “Violência contra LGBTs+ nos contextos eleitoral e pós-eleitoral” é citada para contextualizar o aumento da violência no ano passado. 

Além da discussão dessas propostas, a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado aprovou em maio o projeto de lei 191/2017 que inclui mulheres transgêneros e transexuais na Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06). Se aprovada em plenário, as mulheres trans poderão contar com a proteção da lei nos casos de violência doméstica. A proposta altera o artigo 2º da Lei Maria da Penha e determina que “toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, identidade de gênero, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social”. O projeto seguirá diretamente à Câmara dos Deputados caso não haja requerimento para ser discutido no plenário do Senado

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

**nome fictício para proteger a identidade da vítima

** Os dados para esta reportagem foram obtidos pela equipe da Gênero e Número responsável pela construção do projeto Mapa da Violência de Gênero, que faz parte da segunda geração de projetos apoiados pela ALTEC e será lançado em breve.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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