Telemedicina: tecnologia utilizada para aborto na pandemia é segura e mais barata

 Experiência bem-sucedida na Inglaterra reduz aborto inseguro; em Uberlândia, Programa Nuavidas tenta expandir informação ao restante do país

 

Por Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira

  • Brasil não proíbe aborto por telemedicina

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Durante a pandemia, o Reino Unido ofereceu uma solução para mulheres em busca do aborto seguro em casa. Na última semana de março de 2020, quando a média de casos de covid-19 chegava a 3.300, o serviço público de saúde tentou aliviar as demandas em hospitais e clínicas com interrupção da gravidez via telemedicina, poupando tempo de pacientes e funcionários.

Foi quando um grupo de cientistas e médicos, liderados pelo Royal College of Obstetricians and Gynecologists, realizou um estudo comparativo sobre a eficácia do aborto medicamentoso via telemedicina — sem a necessidade de ultrassonografia — e em consulta médica presencial — com ultrassonografia e medicação para realizar o procedimento em casa.

Misoprostol entregue para vítima de violência sexual no Programa Nuavidas, em Uberlândia (MG)

Um total de 52.142 mulheres que buscavam interromper a gravidez antes de dez semanas passaram por uma dessas modalidades: 22.158 mulheres o fizeram na forma tradicional e 29.984 na modalidade de telemedicina. Os resultados não foram surpreendentes. Divulgados pelo International Journal of Obstetrics and Gynecology, os dados mostraram uma taxa de sucesso de 98,8% para o procedimento via telemedicina e 98,2% nas consultas presenciais combinadas com uso do medicamento abortivo em casa. Da mesma forma, confirmou-se que nos abortos domiciliares não houve casos de alto risco à saúde das mulheres e 96% delas relataram total satisfação com o atendimento e resultados.

ler As barreiras ao aborto medicamentoso no Brasil

O modelo de acesso ao aborto por telemedicina no Reino Unido — semelhante ao que seria implantado naquele mesmo ano em Uberlândia (MG), pela ginecologista Helena Paro, do Programa Nuavidas (Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual), do Hospital de Clínicas — seguiu protocolos médicos que garantem a segurança e saúde da paciente. A única observação foi sobre a ultrassonografia, que seria necessária caso houvesse histórico de sintomas que apontassem alto risco à saúde.

Pacientes aguardam atendimento do Programa Nuavidas / Foto: Soledad Dominguez

Houve achados importantes, dentre eles a redução do tempo de tratamento em quatro dias via telemedicina. A nova abordagem durou 6,5 dias, enquanto as consultas tradicionais levaram em média 10,7 dias. E a economia não foi só de tempo, mas também de custos do sistema de saúde: menos complicações e menos necessidade de optar pelo aborto cirúrgico e internações. 

Em pouco tempo, as autoridades tornaram efetivo o uso de pílulas abortivas para uso doméstico em casos de gravidez com menos de dez semanas de gestação, o que rapidamente se tornou o método mais comum, totalizando 47% de todos os abortos no Reino Unido de abril a dezembro de 2020.

aspa

Nosso estudo mostra que o aborto previsto em lei está concentrado em poucos municípios do país, consequentemente, com custo e tempo de viagem que provavelmente chegam a inviabilizar o acesso.

Para a doutora em saúde coletiva Marina Jacobs, o método poderia ter um impacto positivo no Brasil: “Nosso estudo mostra que o aborto previsto em lei está concentrado em poucos municípios do país, consequentemente, com custo e tempo de viagem que provavelmente chegam a inviabilizar o acesso. Considerando que o aborto nas situações previstas em lei é um serviço em saúde e deve ser de acesso universal, sua oferta na atenção primária e via telessaúde podem ser alternativas, comprovadamente seguras, para promover o cuidado de grande parte das pessoas que precisam interromper legalmente uma gravidez.”

Apenas 3,6% municípios do país oferecem aborto legal

Maioria está concentrada no Sudeste, em cidades com IDH alto

Municípios com registro de oferta de aborto legal hoje

Municípios com oferta potencial de aborto (considerando OMS e código penal brasileiro)

Municípios com oferta potencial de aborto

(considerando normativas do SUS)

mulheres em idade fértil

[10 - 49 anos]

% de munícipios

% de munícipios

% de munícipios

sudeste

30,1%

72,9%

95,4%

26,24 mi

nordeste

22,7%

46,1%

93,3%

18,24 mi

sul

21,5%

63,8%

93,2%

8,7 mi

norte

58,1%

93,3%

26,5%

6,12 mi

centro-oeste

32,1%

66,2%

95,8%

5,16mi

Fonte Artigo "Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios?", de Marina Jacobs (2022)

Apenas 3,6% municípios do país oferecem aborto legal

Maioria está concentrada no Sudeste, em cidades com IDH alto

Municípios com registro de oferta de aborto legal hoje

% de munícipios

centro-

oeste

sudeste

norte

nordeste

sul

32,1%

30,1%

26,5%

22,7%

21,5%

Municípios com oferta potencial de aborto

(considerando normativas do SUS)

% de munícipios

centro-

oeste

sudeste

nordeste

sul

norte

72,9%

66,2%

63,8%

58,1%

46,1%

Municípios com oferta potencial de aborto (considerando OMS e código penal brasileiro)

% de munícipios

centro-

oeste

sudeste

norte

nordeste

sul

95,4%

93,3%

93,2%

93,3%

95,8%

mulheres em idade fértil

[10 - 49 anos]

26,24 mi

18,24 mi

8,7 mi

6,12 mi

5,16mi

sudeste

nordeste

sul

norte

centro-

oeste

Fonte Artigo "Como a normatização sobre o serviço de aborto em gravidez decorrente de estupro afeta sua oferta nos municípios?", de Marina Jacobs (2022)

ler Só 55% dos hospitais que ofereciam serviço de aborto legal no Brasil seguem atendendo na pandemia

Na primeira semana de agosto de 2020, Uberlândia atingia 3.900 novos casos de coronavírus. Com uma população estimada em 700 mil habitantes, esta cidade localizada ao Norte de Minas Gerais, a cerca de 130 km da divisa com Goiás, conta com dois hospitais públicos: o Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia e o Hospital Municipal Dr. Odelmo Leão Carneiro. 

“As unidades de saúde estavam ocupadas com pacientes de covid e outros casos de saúde em geral. Havia poucos leitos”, explica a médica Renata Catani, ginecologista do Programa Nuavidas. 

Foi então que a equipe da ginecologista Helena Paro, do Programa Nuavidas, implementou atendimentos para aborto legal medicamentoso via telemedicina, uma alternativa às mulheres que haviam sofrido violência sexual e engravidaram. “Desde o início da pandemia queríamos avançar para dar assistência às mulheres que não pudessem vir de forma presencial”, explica.  

Os números sobre violência sexual sempre geraram um alerta constante na equipe das profissionais do Nuavidas: embora não pudessem dar solução aos mais de 214 casos de estupro no município em 2020, faz parte da rotina dos profissionais de saúde enxergar não apenas números, mas também histórias de vida. 

Registros de estupro em Uberlândia (MG)

2018

2020

2019

2021

300

214

170

154

102

notificações

0

Fonte Sinan/DataSUS

Registros de estupro em Uberlândia (MG)

2018

2020

2019

2021

300

214

170

154

102

notificações

0

Fonte Sinan/DataSUS

ler “Menos mulheres”: Invisíveis, moradoras de rua estupradas não têm acesso ao aborto legal

O Hospital de Clínicas é um dos maiores do Brasil e recebe grande parte da população local e regional. A unidade ocupa sete quarteirões no bairro de Umuarama, na zona norte de Uberlândia. Uma rampa conecta internamente o Pronto Atendimento ao espaço do Nuavidas. Ali há salas ambientadas para receber mulheres, adolescentes e crianças. Na recepção de janelas internas, duas secretárias posicionadas atendem a mais de 50 pessoas por mês, por telefone ou pessoalmente. 

A comunicação, divulgação e a tecnologia desenvolvidas pela equipe foram estratégicas para divulgar informações, esclarecer dúvidas sobre violência sexual. Durante a pandemia, foram organizadas mais de dez palestras online nos canais do Youtube do Nuavidas, que conta com mais de 500 inscritos, e na TV Universitária de Uberlândia, com 22.600 assinantes. Os vídeos com as profissionais da equipe se espalharam pelas redes sociais para falar sobre gênero, violência e cuidado.  

O serviço virou assunto de reportagens nacionais e internacionais. As consultas telefônicas para o Programa chegavam de vários pontos do país. “Umas 30 por semana, tanto de adultas quanto de adolescentes e crianças, vítimas de violência sexual”, explica a secretária do serviço, Aline Ferreira Cardoso. 

“O primeiro caso que atendemos por telessaúde foi o de uma mulher do interior de São Paulo. Ela chegou de ônibus a Uberlândia para receber atendimento, buscar os medicamentos e voltar para o seu destino, onde fez o aborto acompanhada por nós, médicas, pela internet”, conta Renata Catani, uma das duas ginecologistas do Nuavidas. 

Brasil não proíbe aborto por telemedicina

Enquanto organizações internacionais como a OMS afirmavam que serviços de saúde reprodutiva e de planejamento familiar deveriam continuar funcionando durante a pandemia, o governo Bolsonaro se esquivava do assunto. Em 2020, um dado estarrecedor foi revelado pelo um estudo “A tragédia da Covid-19 no Brasil: pelo menos 124 mortes maternas”: oito em cada dez gestantes e puérperas que morreram de coronavírus no mundo eram brasileiras. 

Na urgência de mudar esse cenário, a equipe do Programa Nuavidas, a Anis – Instituto de Bioética e a Rede Médica pelo Direito de Decidir prepararam uma cartilha de protocolos para aborto legal com medicamentos via telessaúde. 

A Justiça Federal extinguiu recentemente uma ação do Ministério Público Federal, instaurada em 2021, contra o aborto legal por telemedicina. Isso quer dizer que não há até hoje nenhuma decisão judicial contra o aborto por telemedicina ou contra a cartilha. As pacientes hoje chegam no hospital e, após a primeira consulta, recebem um kit com medicamentos e instruções. 

aspa

O Nuavidas não é nada inovador no seu procedimento de aborto medicamentoso via telemedicina. É inovador pelo tamanho da resistência que nós enfrentamos para implementar o serviço e para reduzir o aborto inseguro em Minas Gerais"

Apesar das resistências dentro e fora do ambiente hospitalar, a iniciativa atendeu pelo menos 34 mulheres em 2021 e, até setembro de 2022, foram mais 20 mulheres. Entre 2021 e junho 2022, mais de 260 mulheres adultas e adolescentes buscaram atendimento no hospital por terem sido vítimas de violência sexual. 

“O Nuavidas não é nada inovador no seu procedimento de aborto medicamentoso via telemedicina. É inovador pelo tamanho da resistência que nós enfrentamos para implementar o serviço e para reduzir o aborto inseguro em Minas Gerais,” conclui Helena Paro. 

 

 



Apoio
Instituto Serrapilheira — projeto contemplado na chamada “O papel da ciência no Brasil de amanhã”
Realização Genêro e Número e GHS América Latina
Pesquisa e Reportagem Soledad Dominguez, Natalia Veras, Mariana Oliveira
Edição Maria Martha Bruno
Fotos Raissa Dantas de Sousa
Design
Marilia Ferrari, Victoria Sacagami

 

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