Em 2022, o Brasil registrou 180,5 mil internações por aborto em hospitais da rede pública e privada. O SUS recebeu 156,4 mil dessas pacientes – nove de cada 10 casos de hospitalização para interrupção da gravidez ou por perda gestacional. A rede pública de saúde atendeu 91% dos abortos espontâneos e foi responsável por garantir 97% dos procedimentos classificados como legais.
No Brasil, a interrupção voluntária da gestação é permitida em três situações: gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da gestante e anencefalia do feto.
O levantamento da Gênero e Número a partir do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que compreende as unidades particulares, considera hospitalizações por aborto espontâneo, aborto por razões médicas e legais, outros tipos de aborto, aborto não especificado, outros produtos anormais da concepção, falha de tentativa de aborto e complicações consequentes a aborto e gravidez ectópica ou molar.
Os dados comprovam que o SUS já absorve quase todos os casos de aborto que chegam aos hospitais, mas especialistas coincidem em que a maior parte dessas internações pode ser evitada se o Brasil atualizar os métodos utilizados para o procedimento e descriminalizar a interrupção da gravidez.
Segundo a Organizaçao Mundial da Saúde (OMS), o aborto com remédios pode ser realizado com segurança desde que os comprimidos sejam administrados em uma unidade de saúde ou pela própria paciente em casa, com orientações médicas.
A técnica medicamentosa prevê o uso combinado de mifepristona e misoprostol ou o uso isolado de misoprostol. No Brasil, porém, o único medicamento disponível é o misoprostol – conhecido pelo nome comercial de Cytotec – e seu uso é restrito a hospitais cadastrados.
O ginecologista e obstetra Cristião Fernando Rosas, que também coordena a Rede Médica pelo Direito de Decidir, lembra que o aborto com medicamentos por telemedicina é o método mais utilizado em países onde o procedimento foi legalizado ou descriminalizado.
O México, que descriminalizou, e o Uruguai e a Argentina, que legalizaram o aborto - e têm um sistema público de saúde muito menos potente do que o nosso - já absorveram totalmente as solicitações, porque os abortos são feitos em casa”
No Brasil, a maioria dos abortos são feitos por meio de curetagem — método invasivo, que demanda anestesia geral e internação. Além de custar mais aos cofres públicos, a técnica é mais onerosa para as mulheres, uma vez que oferece riscos de complicação.
O próprio Ministério da Saúde (MS) admite que a curetagem é um método “obsoleto” e “não é recomendado pela OMS há mais de 10 anos” em ofício enviado ao Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 989, que trata sobre a garantia do aborto em hipóteses previstas por lei. No documento, o MS afirma que o método deve ser substituído por aspiração manual intrauterina (AMIU), aspiração elétrica ou pelo tratamento medicamentoso.
As técnicas de AMIU ou bomba elétrica fazem aspiração a vácuo do útero. O procedimento é realizado em ambiente ambulatorial e não exige internação. O MS também afirma que o aborto com medicamentos orientado por telemedicina, até a 12ª semana de gestação, é “seguro e eficaz”.
Em 2020, o Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), foi pioneiro em oferecer o serviço de aborto com medicamentos por telemedicina no Brasil. O acompanhamento e as orientações podem ser feitos por mensagem de texto ou áudio, telefone ou vídeochamada.
“Na faixa de segurança de até 12 semanas, a paciente pode autoadministrar os medicamentos e fazer o próprio acompanhamento com teste de urina de gravidez, quatro ou cinco semanas depois do tratamento”, explica Helena Paro, ginecologista, obstetra e coordenadora do Nuavidas. “Mas, se a mulher não se sente segura de fazer o tratamento em casa, o sistema de saúde tem que estar preparado para qualquer alternativa de tratamento.”
Descriminalização do aborto pode reduzir internações
Helena Paro aponta que, com a descriminalização, as pessoas que decidem interromper a gestação deixam de recorrer a métodos inseguros, que podem levar à morte e requerem internações, e passam a realizar procedimentos mais adequados.
Quando uma mulher recorre a um aborto clandestino, ela não tem acesso a informações sobre métodos contraceptivos. A possibilidade de reincidir, sem querer, em outra gravidez indesejada, é maior do que se tivermos o aborto incorporado oficialmente no sistema de saúde”
A experiência de países como Portugal, Espanha e Uruguai, que legalizaram o aborto, é de redução no número de procedimentos. Quem decide interromper a gestação no sistema de saúde passa a ter acesso a métodos contraceptivos – principalmente os de longa duração -, além de receber orientações sobre planejamento reprodutivo.
Em seu voto, favorável à ADPF 442, Rosa Weber, ex-ministra do STF, classificou a descriminalização do aborto como “justiça reprodutiva”, pois entende que o procedimento deve ser tratado como um problema de saúde pública, já que o aborto inseguro “é uma das quatro causas diretas da mortalidade materna”.
Weber, que construiu o seu voto após analisar dados, pesquisas e a manifestação de representantes da sociedade civil favoráveis e contrárias à descriminalização, afirma que não é possível falar em “proteção do valor da vida humana” sem considerar os direitos das mulheres e sua dignidade.
Realizamos o download das bases de dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) no site do Datasus (https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos/#) e filtramos apenas os casos cujo CID-10 principal foi entre “o02” e “o089” e as agregamos, mês a mês, para os anos de 2013 a 2022. Codificamos as variáveis de interesse de acordo com tabelas de frequência realizadas no próprio banco de dados. O download foi realizado em 25/09/2023.
Para os dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), utilizamos um script que facilita os downloads da página https://dadosabertos.ans.gov.br/FTP/PDA/TISS/HOSPITALAR/ para todos os meses de 2022, em todas as unidades da federação. Posteriormente, houve a junção de todos os estados e o filtro pelos mesmos códigos do CID-10 utilizados para o SIH. O download foi realizado em 02/10/2023.
Por fim, foi realizada a união das bases de dados do SIH e da ANS para análises comparativas entre os dois sistemas.
Obs: o estado de Roraima não apresentou dados para os códigos do CID-10 analisados no mês de junho de 2022 na base de dados do SIH.
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Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.
Diego Nunes da Rocha é graduado e mestre em Ciências Sociais pelo PPGSA/UFRJ e doutorando em Sociologia no IESP-UERJ. Pesquisador associado do Ceres (Centro para o Estudo da Riqueza e Estratificação Social), Diego tem interesse em estratificação social, em especial no campo educacional. É analista de dados da Gênero e Número.
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