O atendimento especializado no SUS foi afetado na pandemia de coronavírus |Foto: Marcelo Casal Jr./ Agência Brasil

Cirurgias do processo transexualizador caem 70% em 2020 e denúncias de “esvaziamento” na saúde revelam risco para população trans

Médicos, usuários e políticos ouvidos pela Gênero e Número destacam os problemas da descontinuidade do processo transexualizador e a importância de uma saúde integral e transversal para pessoas transgênero

 

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Por Vitória Régia da Silva*

  • Apreensão em São Paulo

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  • Saúde integral e transversal

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A pandemia impactou significativamente o acesso das pessoas trans aos serviços de saúde. Em 2020, o número de atendimentos no processo transexualizador,  que é o processo de transição de gênero, no SUS caiu drasticamente: as cirurgias diminuíram em 70% e a terapia hormonal em 6,5% em comparação com o ano anterior, segundo dados do DataSus até novembro de 2020. 

Para Saulo Vito Ciasca, médico psiquiatra, professor de Saúde LGBT+ e um dos editores do livro recém-lançado “Saúde LGBTIA+ práticas de cuidado transdiciplinar”, a situação é grave. “O processo transexualizador já é aquém do que a população trans precisaria normalmente, e nesse período houve um subatendimento desse processo. A pandemia atrapalhou bastante muitos serviços, mas principalmente os destinados à população trans, que é uma população vulnerabilizada. Essa população sofreu um impacto maior da pandemia, que acentuou as desigualdades de acesso à saúde”.

Nos últimos anos, o número de atendimentos do processo transexualizador vinha aumentando no SUS. O processo transexualizador foi instituído pelas portarias nº457 e 1.707, em 2008, dentro do Sistema Único de Saúde. Em 2013, o processo foi ampliado e redefinido pela portaria nº 2.803. No DataSUS, os dados do processo aparecem só a partir de 2014, quando foram realizadas 32 cirurgias de mudança corporal e nenhum tratamento hormonal. Em 2019, esse número aumentou para 133 cirurgias e 3.910 tratamentos hormonais. Já em 2020, foram realizadas apenas 38 cirurgias e 3.653 tratamentos hormonais. Uma média de uma cirurgia a cada 9 dias.

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As cirurgias do processo transexualizador incluem mastectomia (retirada dos seios), plástica mamária (implante de prótese mamária de silicone), tireoplastia (redução do pomo de adão para feminilização da voz), histerectomia (retirada do útero e ovários), as cirurgias de redesignação sexual no órgão genital de ambos os gêneros e cirurgias complementares. Além disso, o SUS oferece terapia medicamentosa hormonal disponibilizada mensalmente (estrógeno ou testosterona) e acompanhamento do usuário no processo com uma equipe multiprofissional nas unidades de saúde e ambulatórios.

“Se uma pessoa trans interromper a terapia hormonal por conta da pandemia, ela vai voltar a ter características físicas que não deseja e não quer ter. No caso dos homens trans, eles podem voltar a menstruar. Muitas vezes se entende que a cirurgia de modificação corporal é uma cirurgia eletiva, mas a demora do processo pode ter consequências para essa população. Isso gera questões graves de saúde mental, aumenta risco de suicídio, autolesão, depressão e ansiedade. O não acesso aos cuidados e modificações corporais pioram a saúde mental das pessoas trans, que já é afetada pela transfobia da sociedade”, destaca o psiquiatra. 

[+] Leia também: Pessoas trans e LGBT+ negras e indígenas estão mais expostas ao impacto da covid-19, aponta pesquisa

Atendimento e acesso à saúde para pessoas trans diminui na pandemia

As cirurgias do processo transexualizador* caíram em 70% de 2019 a 2020

Cirurgias para mulheres trans/travestis

Cirurgias para homens trans

Cirurgias complementares de Redesignação Sexual

Tratamento hormonal

Do ano de 2019 para 2020, a

quantidade de tratamentos

hormonais caiu 6,5%

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2020

* masectomia, histerectomia, tireoplastia, plástica mamária e cirurgias de redesignação sexual

fonte DATASUS

Atendimento e acesso à saúde para pessoas trans diminui na pandemia

As cirurgias do processo transexualizador* caíram em 70% de 2019 a 2020

Cirurgias para mulheres

trans/travestis

Cirurgias para

homens trans

Cirurgias complementares

de Redesignação Sexual

Tratamento hormonal

Do ano de 2019 para 2020, a

quantidade de tratamentos

hormonais caiu 6,5%

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2020

* masectomia, histerectomia, tireoplastia, plástica mamária e cirurgias de redesignação sexual

fonte DATASUS

Apreensão em São Paulo

Além de o isolamento por conta da pandemia de covid-19 limitar o acesso da população ao tratamento transexualizador, a gestão de Bruno Covas, prefeito da capital paulista, tem dificultado esse acesso, segundo denúncia de usuários e profissionais da saúde. Na Unidade de Saúde Básica (UBS) de Santa Cecília, que atende quase mil pessoas trans no seu programa de hormonioterapia, a gestão direta de servidores públicos foi transferida para o Instituto de Atenção Básica e Avançada à Saúde (Iabas). Essa UBS é um dos principais aparelhos de saúde da capital paulista no atendimento à população trans, com tratamento de hormonioterapia e equipe especializada. Já a empresa Iabas é alvo de investigações em São Paulo e no Rio de Janeiro por desvios de verba pública. A prefeitura paulistana decidiu não renovar o contrato da Iabas para gestão de unidades de saúde, mas ela continua gerindo a UBS de Santa Cecília.  

Uma profissional da UBS, que preferiu não se identificar, relatou que o serviço terceirizado oferecido pela Iabas  é “péssimo” e que “são profissionais muito ruins, sem a menor experiência”. Segundo ela, essa mudança de gestão colocou em risco a continuidade do programa, e médicas que já realizavam esse atendimento foram pressionadas e ameaçadas de serem removidas da unidade de saúde.

Para Jill Moraes, 57 anos, que participa do programa desde sua criação em 2015, quando tinha apenas 9 pessoas, o tratamento continuado está em risco. “O ciclo da hormonioterapia não pode ser interrompido. Com 57 anos, por conta da menopausa, eu já não produzo mais hormônios do gênero feminino. Se eu deixar de receber o hormônio masculino, meu prejuízo emocional, físico e biológico seria grande. Posso ficar no meio do caminho nessa transição”, destaca.  “Isso é gestão da morte, porque deixaria nossos corpos no meio do caminho. Os hormônios têm riscos naturais, e assumimos eles quando usamos, o que não queremos bancar é que a negligência dos governantes com os nossos corpos aumenta esse risco. O custo nesse caso seria muito maior”.

[+] Leia também: Isolamento social limita acesso de população a tratamento transexualizador no SUS

Também à frente do movimento dos usuários contra mudanças e um eventual encerramento do programa está a  jovem trans Hannah Sttella Macario Cipriano Lourenço e Silva, 28 anos, que é atendida pelo programa de hormonioterapia da UBS de Santa Cecília desde 2017. Ela, Moraes, Gabriel de Oliveira Lima e Luan Souza criaram uma comissão para dialogar com a Secretaria da Saúde de São Paulo.

“O serviço prestado pela gestão direta é um serviço de excelente qualidade, diferente da gestão da terceirização, que é de péssima qualidade. Essas empresas têm como foco a produtividade, não a qualidade do atendimento. O impacto dessa mudança é a rotatividade dos médicos, assim, não existe vínculo entre médico e paciente, entre médico e a comunidade do entorno. Há também a contratação de médicos generalistas, que não têm qualificação, e especialistas em número insuficiente para atender a comunidade. O programa está se mantendo até hoje porque nossas médicas estão resistindo e na luta, mesmo sofrendo até perseguição”, destaca Silva. 

A jovem conta que denúncias desse desmonte em outras UBS também têm sido feitas. É o caso do Hospital Municipal da Vila Santa Catarina, que tinha um ambulatório trans. Depois da mudança de gestão, quem assumiu foi a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Albert Einstein. Quando o contrato desta empresa acabou, o serviço foi descontinuado. Contactado, o hospital não soube informar sobre a continuidade ou não do serviço. Já a Secretaria Municipal de Saúde não se pronunciou sobre as denúncias até o fechamento da reportagem.

A vereadora Erika Hilton (PSOL), primeira mulher trans negra eleita na capital paulista, está acompanhando o caso. Segundo ela, o diálogo com o poder executivo ainda é bastante difícil. “Pessoas trans precisam de tratamento digno e respeito. O impacto do desmonte do tratamento de hormonioterapia é profundo e pode causar depressão, entre outros problemas. A descontinuidade do tratamento gera uma quebra de vínculo de confiança entre os profissionais da saúde e os pacientes, interrompe o que o serviço se compromete a fazer, o acolhimento e acompanhamento no tratamento de hormonioterapia”, afirma. 

[+] Leia também: Quantidade de pessoas trans eleitas em 2020 é quatro vezes maior que em 2016

Saúde integral e transversal

Apesar de ser um braço importante, a saúde das pessoas trans não se restringe ao processo transexualizador.  Por isso, a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais, instituída pelo Ministério da Saúde em 2010, prevê a instituição de mecanismos de gestão para atingir maior equidade no SUS, a ampliação do acesso da população LGBT+ aos serviços de saúde e a qualificação da rede de serviços para a atenção e o cuidado integral à saúde da população LGBT+.

A discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, no entanto, ainda incide na área da saúde e afasta pessoas trans desses serviços. Por isso, enfatiza Erika Hilton, a saúde integral e a hormonioterapia não dizem respeito apenas a consultas e medicamentos. O acolhimento e o vínculo, afirma, são essenciais:

“Pessoas trans são pessoas e também precisam de acompanhamento de todos os parâmetros de saúde, como qualquer um. Mas por conta da transfobia estrutural, acabamos sendo afastadas do consultório médico. Um exemplo: no cadastro de pacientes de ginecologia feito pelo SUS, só é possível assinalar sexo feminino, ou seja, o SUS não reconhece os corpos dos homens trans como pacientes do serviço de ginecologia, e é profundamente transfóbico para uma pessoa trans ter que declarar outro gênero que não é aquele com o qual se identifica, então, esses homens às vezes passam a vida inteira sem esse acompanhamento”.

Para o médico Saulo Ciasca, uma das soluções para um sistema de saúde mais acolhedor para pessoas trans seria a educação dos profissionais de saúde. “Não somos  educados para tratar das pessoas LGBT+, e muitas vezes acham que isso é um debate de militância e não de saúde, sendo que as políticas de saúde se relacionam com as demandas sociais. Tem que ir na base para melhorar o acesso da pessoa trans na saúde.O desafio é aumentar a empatia e a educação, para que profissionais de saúde sejam abertos e entendam as especificidades dessa população”.

Em 2020, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não gastou nenhum centavo com a população LGBT+, apesar dos cerca de R$ 800 mil empenhados, como mostramos em reportagem recente. Segundo Marina Reidel, mulher trans e diretora de Promoção de Direitos LGBT do Ministério, o trabalho da pasta é o de articulação com outros ministérios e departamentos. “Assim, os serviços devem ser mantidos em todas as áreas. Entretanto, com o cenário da pandemia muitos deles sofreram alterações. Mas devemos manter esse trabalho, que é o de articular e buscar sempre a transversalidade das áreas, pensando sempre à luz dos direitos humanos”.

Acesse a base de dados desta reportagem

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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