Pessoas negras são 57% das vítimas de autolesão entre LGBTs+
Dados também mostram que conflito entre gerações é a causa mais apontada para esse tipo de violência; psicólogo alerta que estas ações precisam ser enxergadas como respostas a situações cotidianas e que profissionais de saúde ainda não sabem como lidar com elas
Ao pensar em sua trajetória acadêmica, Paulo Navasconi levou em conta uma vida marcada pelo luto, ou pelo convívio com a morte. Aos 12 anos, descobriu o suicídio do avô, até então um segredo bem guardado pela família. Durante a adolescência, também tentou tirar a própria vida – momento em que notou a dificuldade dos profissionais de saúde que o atenderam para registrar sua tentativa no prontuário de atendimento.
Vindo de uma família interracial do Paraná, Paulo encontrou, no mestrado, uma literatura acadêmica sobre suicídio no Brasil em que o fenômeno não era apresentado com indicadores de raça, classe econômica e sexualidade.
Foi a partir daí que o psicólogo, hoje doutorando em Subjetividade e Práticas pela Universidade Estadual do Maringá (PR), passou a pesquisar de que forma a interseccionalidade podia contribuir para lançar luz sobre jovens negros e LGBT+, vítimas até então invisibilizadas, mas que podem estar entre as maiores estatísticas de suicídio no Brasil. O estudo resultou no livro “Vida, Adoecimento e Suicídio – Racismo na Produção do Conhecimento sobre Jovens Negros/AS LGBTTIS” (Editora Letramento, 2019).
Segundo o Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM), em 2020, houve 12.080 suicídios no Brasil, a maior parte registrada entre homens negros, de 30 a 59 anos. Foram 2.576 casos, isto é, 21,3% do total. No entanto, ao olhar para esses dados, não encontramos indicadores de orientação sexual e de identidade de gênero – ecos da falta de literatura acadêmica sobre o tema.
O Sistema de Agravos de Notificação de Violência (Sinan), por sua vez, apresenta dados atualizados até 2019 de violências autoprovocadas, e com recortes de identidade sexual e de gênero.
De acordo com levantamento feito pela Gênero e Número no Sinan, em 2019, conflitos geracionais foram os motivos mais apresentados por gays, lésbicas, bissexuais e população trans (travestis, homens e mulheres trans) para autolesões. Das 2.093 ocorrências de autolesão registradas entre a população LGBT+, 1.436 apresentam informações sobre os motivos que levaram a elas. Dessas, 282 (20%) correspondem a conflitos geracionais (ou embates entre gerações mais novas e mais velhas), enquanto 17,82% correspondem a autolesões motivadas por situações de sexismo e 16% a situações de lgbtfobia.
Os dados também revelam que 57% da população LGBT+ com ocorrências de violência autoprovocada são pessoas negras. A faixa etária que se destaca, em todos os grupos, é a de jovens de 18 a 29 anos, que representam cerca de 37% dos casos. Mulheres negras lésbicas registram 16,24% dos casos de autolesão, seguidas por homens negros gays (15,61%) e trans (15,45%).
Violências autoprovocadas respondem, principalmente, a fatores geracionais, sexistas e lgbtfóbicos
Pessoas LGBT+ destacam que maior motivação (20% dos casos) foi o conflito geracional
gays
lésbicas
bissexuais
trans
20%
1°
LGBTFOBIA
1°
1°
1°
Conflito
geracional
2°
2°
2°
2°
3°
3°
3°
3°
Sexismo
0
fonte SINAN / 2019
Violências autoprovocadas respondem, principalmente, a fatores geracionais, sexistas e lgbtfóbicos
Pessoas LGBT+ destacam que maior motivação (20% dos casos) foi o conflito geracional
Conflito
geracional
Sexismo
LGBTFOBIA
gays
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fonte SINAN / 2019
No entanto, alerta Navasconi, situações de autolesão não podem ser observadas como tentativas de suicídio, mas respostas a violências cotidianas que devem ser contextualizadas de acordo com as especificidades sociais, de raça e de gênero que atravessam a população LGBT+.
“Podemos encontrar uma ritualização de práticas que na verdade são uma forma de pedido de socorro a diversas violências que a população LGBT+ enfrenta no dia a dia. Aqui, a autolesão não deve ser confundida com uma tentativa de suicídio, mas como um indicativo de problemas que deveriam ser lidos com mais atenção quando falamos em saúde mental, como a falta de acesso a diversos direitos básicos”, explica o psicólogo.
A campanha Setembro Amarelo, de conscientização pela prevenção do suicídio, já faz parte do calendário nacional, mas, em nível federal, encontra dificuldades para ações direcionadas à população LGBT+. A situação acaba sendo agravada com a falta de investimentos em atenção básica. No ano passado, por exemplo, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não fez nenhum gasto direto para essa parcela da população, apesar dos cerca de R$ 800 mil empenhados.
A invisiblidade de suicídios entre jovens negros LGBT+ não acontece apenas em estudos acadêmicos. A partir de 2014, o Ministério da Saúde passou a incluir os quesitos orientação sexual e identidade de gênero nos sistemas de informação do SUS, mas nem todos os bancos de dados apresentam o registro desses casos.
Pessoas negras representam 57% dos casos de violência autoprovocada entre os LGBTs+
Em meio a subnotificações, mulheres negras lésbicas apresentam as maiores ocorrências*
NEGROS
BRANCOS
AMARELOS
INDÍGENAS
400
350
No Brasil, há o registro de violências autoprovocadas de 315lésbicas negras em 2019
300
250
200
150
100
50
0
lésbicas
gayS
trans
biSSEXUAIS
*Dados computados a partir de ocorrências com registro de raça das vítimas
fonte SINAn / 2019
Pessoas negras representam 57% dos casos de violência autoprovocada entre os LGBTs+
Em meio a subnotificações, mulheres negras lésbicas apresentam as maiores ocorrências*
NEGROS
BRANCOS
AMARELOS
INDÍGENAS
400
0
200
gayS
lésbicas
No Brasil, há o registro de
violências autoprovocadas de
315lésbicas negras em 2019
biSSEXUAIS
trans
*Dados computados a partir de ocorrências com registro de raça das vítimas
fonte SINAn / 2019
Efeito da pandemia
Para a população LGBT+, a pandemia tornou tudo ainda mais delicado. Pesquisadora em Campinas (SP), Marcela**, de 23 anos, voltou a morar com os pais em uma cidade menor do interior de São Paulo quando as atividades acadêmicas passaram para o formato virtual. Desde então, ela convive com crises de ansiedade e de exaustão com a sobrecarga doméstica.
“Como mulher, a pandemia certamente influenciou na qualidade de meu trabalho. Tenho que passar horas do meu dia fazendo serviços domésticos e cuidando de crianças que não são minhas porque minha família demanda isso de mim. Como resultado, estou exausta e não consigo ser tão produtiva no trabalho como era antes”, conta.
Bissexual e em um relacionamento com um homem, Marcela também sente um silenciamento e apagamento da sua sexualidade entre seus familiares, o que, para ela, acentua conflitos e a faz reviver antigas feridas todos os dias:
“O fato de voltar a morar com minha família de origem na pandemia certamente limitou minha sexualidade e minha individualidade. Passei a ter que me justificar e dar satisfação novamente aos meus pais, o que dificulta minha expressão sexual. Além disso, fui novamente exposta ao ambiente abusivo e tóxico no qual cresci, sofrendo abuso psicológico e financeiro”.
Já para o professor de ensino fundamental na rede pública de São Paulo Jair Custódio, o cuidado com a saúde mental é um desafio permanente. Homem gay, negro e cis, ele acredita que a idade também o levou a ter dificuldades para encontrar ajuda profissional. E sente que o atravessamento entre o racismo e a homossexualidade contribui para que leve uma vida afetiva solitária, inclusive em contextos familiares:
“Sempre entendi o ser um homem gay como uma questão de identidade, portanto, minhas escolhas sempre levam em conta isso, e não é uma condição que possa ser transformada. Mas o fator ‘ser negro’ também geralmante incorre em outras posturas violentas, como posturas retrógradas de familiares e a objetificação do meu corpo negro”, conta o professor de 55 anos.
Segundo o psicólogo Paulo Navasconi, a pandemia evidenciou um distanciamento entre profissionais de saúde e a população LGBT+ | Foto: Arquivo Pessoal
Tudo, acredita o atendente de telemarketing Marcelo Castro, é fruto da falta de informação. Aos 23 anos, ele, que é um homem negro e trans, conta com ajuda psicológica desde que passou por seu processo de transição. De Altinópolis, em Minas Gerais, mudou-se para Uberlândia, uma cidade mais desenvolvida no Triângulo Mineiro, e onde, segundo ele, foi mais fácil encontrar ajuda – inclusive na pandemia.
“Acredito que hoje a maior barreira com profissionais de saúde seja a falta de informação. Eu comecei a minha transição em uma cidade pequena, mas tive ajuda psicológica desde o início, só que contando com a sorte de profissionais que estavam dispostos a aprender o que eu estava vivendo. Hoje sou atendido por profissionais que já lidam melhor com essas questões e percebo a diferença de um atendimento mais especializado”, reflete.
Durante a pandemia e diante da diminuição de recursos públicos para políticas específicas de atenção às pessoas LGBT+, entidades da sociedade civil buscaram formas de monitorar e ajudar esta parte da população mais vulnerável.
A pesquisa online “Diagnóstico LGBT+ na pandemia”, realizada entre 28 de abril e 15 de maio de 2020, pelo coletivo #VoteLGBT, ouviu pessoas declaradamente LGBT+ sobre suas preocupações com a pandemia. Em primeiro lugar ficou a questão da saúde mental, que incluía problemas como ansiedade, depressão e crise de pânico, com 42,72% das mais de 9.500 respostas. Depois vinham as novas regras de convívio, com 16,58%; solidão, com 11,7%; e falta de renda, com 10,62%. No ano passado, a pesquisa do coletivo com a população LGBT+ revelou que pessoas transgênero são as mais vulneráveis aos impactos do isolamento social.
No geral, observa Paulo Navasconi, a pandemia evidenciou um distanciamento entre profissionais de saúde e a população LGBT+.
“Tivemos muitos aprendizados com o isolamento social, sobretudo sobre o impacto que a pandemia teve em pessoas que, muitas vezes, não têm sua orientação sexual ou identidade de gênero aceita pela família. Mas, novamente, ainda encontramos muitos desafios para que profissionais de saúde possam lidar com essas situações de forma mais contextualizada e que, principalmente, ajudem a notificar situações extremas para entender melhor como ajudar”, lamenta.
Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.
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