Ilustração: Victória Sacagami/Gênero e Número

2020: o ano da pandemia e seu impacto nas mulheres, pessoas negras e LGBT+

Maior exposição ao risco de contágio e morte por covid-19, crescimento da violência de gênero, racismo na ação policial e falta de suporte para educação foram alguns dos impactos da pandemia nas populações mais vulneráveis

Lola Ferreira

Vitória Régia da Silva

187.291 mil óbitos confirmados e 7.263.619 casos de covid-19 no país até 22 de dezembro, segundo o Ministério da Saúde. É neste patamar que chegamos ao fim de 2020, o ano da pandemia de coronavírus. A covid-19, doença que abalou o mundo todo e a forma como nos organizamos em sociedade, não é democrática. A pandemia tem incidência diferente nos diversos segmentos da sociedade, que podem estar mais ou menos expostos. A população negra faz parte do primeiro grupo. O vírus afeta desproporcionalmente os negros, resultado da desigualdade racial e do racismo estrutural que remonta à escravidão.

“Não é simplesmente uma questão biológica ou genética, as condições sociais e ambientais são as que têm mais impacto na mortalidade e doenças que afetam a população negra e indigena. Os indicadores sociais dessas populações estão em situação de desvantagem e vulnerabilidade social em relação à população branca”, destaca Edna Maria de Araújo, professora do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva da Universidade Estadual de Feira de Santana, na Bahia, e uma das coordenadoras do Grupo Temático Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco). “A estruturação histórica do racismo faz com que essas populações sejam colocadas à margem, o que faz com que tenhamos iniquidades históricas, e resulta que essas populações tenham menos possibilidade de enfrentar a pandemia”. 

Os dados, ainda muito incipientes e subnotificados em relação à raça/cor/etnia, reforçam essa disparidade racial. Entre os hospitalizados pela covid-19, 209.034 são negros, enquanto 202.482 são brancos. Nos números da mortalidade pelo vírus, essa diferença persiste: negros são 74.949, e brancos, 62.993. Os dados são do Boletim Epidemiológico 50, que analisou os casos até 12 de dezembro.

Negros são mais hospitalizados e morrem mais de covid-19 e Síndrome Respiratória Aguda Grave

Falta de transparência e dados desatualizados dificultam monitoramento de casos por cor/etnia

negros

brancos

covid-19

não especificado

250 mil

209

202

141

134

75

63

28

27

0

óbitos

óbitos

casos

hospitalizados

casos

hospitalizados

fonte Boletim Epidemológico 50 / dados até 12/12

Negros são mais hospitalizados e morrem mais de covid-19 e Síndrome Respiratória Aguda Grave

Falta de transparência e dados desatualizados dificultam monitoramento de casos por cor/etnia

brancos

negros

covid-19

250 mil

209

202

75

63

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óbitos

casos

hospitalizados

não especificado

250 mil

141

134

28

27

0

óbitos

casos

hospitalizados

fonte Boletim Epidemológico 50 / dados até 12/12

Só depois que a Coalizão Negra por Direitos e outras instituições entraram com pedido, via Lei de Acesso à Informação, o Ministério da Saúde inseriu o recorte de raça/cor na análise da pandemia, em abril. Ainda assim, os dados que têm sido divulgados não têm qualidade que permita a realização de análises robustas para entender profundamente as iniquidades raciais em saúde.

“Esse é um problema de longa data, mas que se acentua na pandemia. Este governo percebeu que o registro dessa informação propicia mensurar as iniquidades que existem no nosso país. Advogamos para o registro dessa variável  e disponibilização  dos dados desagregados por raça e cor porque é através disso que podemos monitorar as desigualdades. Mesmo com a pressão social, ainda sofremos com a falta desses dados”, lamenta Araújo.

A covid-19 não só escancarou a desigualdade racial na área da saúde, mas em todos os setores como segurança, educação e violência. Mesmo em meio a uma pandemia e à imposição de isolamento social, homens negros continuam sendo mortos pela polícia em condições desproporcionais, as mulheres negras são as maiores vitimas da violência de gênero (que ficou ainda mais silenciosa nesse contexto) e foi um desafio para mães e estudantes, principalmente negros, prosseguirem com o ensino online.

“A população negra vai sair devastada neste processo, com muitos problemas de saúde, muitos problemas econômicos e muitos problemas de discriminação e violência, muito próximo ao efeito de uma intempérie ambiental”, já alertou Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola, em entrevista a Gênero e Número.

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Na linha de frente dos profissionais de saúde, mulheres negras são as mais impactadas pela pandemia

Segundo pesquisa da FGV, elas são em geral  técnicas de enfermagem ou agentes comunitárias de saúde e estão mais expostas ao risco do contágio, recebem menos treinamento, orientação e equipamento de proteção

“É frustrante e humilhante você ser profissional de saúde e ver faltar tudo de equipamento de segurança para o seu trabalho. Os testes, por conta dos apadrinhamentos de funcionários, são feitos em quem menos precisa ou não precisa de jeito nenhum. Nós profissionais não temos acesso e, para fazermos isso, é uma humilhação que dá desânimo pelo tamanho do descaso”, relata A.C.S, profissional da saúde e mulher negra da Bahia.

A pandemia afeta de diferentes formas os profissionais de saúde que estão na linha de frente do combate à covid-19, e as disparidades de gênero e raça se exacerbam neste contexto. Neste grupo, as mulheres negras têm sido as mais afetadas. Elas sentiram medo (84%), desconfiança (28%) e tristeza (53%), além de declararem mais sensação de despreparo (59%) em relação a mulheres brancas, homens brancos e negros, segundo a pesquisa “A pandemia de covid-19 e (os)as profissionais de saúde pública: uma perspectiva de gênero e raça sobre a linha de frente” realizada pelo Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB) da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (FGV EAESP)  e divulgada pela Agência Bori. 

“Temos que olhar na dimensão da interseccionalidade. As mulheres negras que estão na base do sistema de saúde, são, em geral, técnicas de enfermagem ou agentes comunitárias de saúde, que são profissões menos valorizadas e com menor nível educacional. Por isso, elas estão mais expostas ao risco do contágio, recebem menos treinamento, orientação e equipamento de proteção. A pandemia exacerba uma desigualdade estrutural que já existe, e isso impacta na sensação de mais medo e despreparo em relação aos outros profissionais”, pontua Gabriela Lotta, pesquisadora da Fundação Getúlio Vargas (FGV) e uma das autoras do estudo.

O relatório do estudo, produzido em parceria com a Fiocruz e com a Rede Covid-19 Humanidades, foi publicado no dia 16 de dezembro. O levantamento foi feito a partir de pesquisa online com 1.264 profissionais de saúde de todos os estados brasileiros, entre 15 de setembro de 2020 e 15 de outubro de 2020, e faz parte da terceira rodada de entrevistas sobre impactos da pandemia nos profissionais da saúde pública do Brasil. Os resultados anteriores foram publicados em novembro, julho e maio. Esse é o primeiro que traz as respostas por gênero e raça.

Mulheres negras são as profissionais da saúde mais afetadas pela pandemia

Assédio moral, sensação de despreparo e pouco acesso a treinamento e testagem são alguns dos problemas

Sensação de medo por raça e gênero

mulher negra

mulher branca

homem negro

homem branco

tem medo

não tem medo

84,2%

30,3%

80,3%

26,8%

73,2%

19,7%

15,8%

69,7%

Sensação de preparo para realizar suas funções por gênero e raça

mulher negra

mulher branca

homem negro

homem branco

não se sente preparado

se sente preparado

58,7%

66,5%

51,7%

48,5%

51,5%

48,3%

41,3%

33,5%

Ocorrência de assédio moral a profissionais de saúde durante a pandemia

mulher negra

mulher branca

homem negro

homem branco

não

sim, e aumentou na pandemia

75%

19%

68%

16%

66%

15%

62%

13%

sim, mas continua igual ao que era antes

sim, e se iniciou na pandemia

11%

9%

8%

11%

7%

9%

3%

8%

Recebimento de treinamento, testagem e equipamentos

mulher negra

mulher branca

homem negro

homem branco

testagem contínua

treinamento

34%

58,7%

31,8%

52,6%

29%

50,8%

26%

44%

equipamento de forma contínua

71,6%

69,6%

57,3%

56,7%

fonte Fundação Getulio Vargas

Mulheres negras são as profissionais da saúde mais afetadas pela pandemia

Assédio moral, sensação de despreparo e pouco acesso a treinamento e testagem são alguns dos problemas

Sensação de medo por raça e gênero

mulher negra

mulher branca

homem negro

homem branco

tem medo

84,2%

80,3%

73,2%

69,7%

não tem medo

30,3%

26,8%

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15,8%

Sensação de preparo para realizar suas funções por gênero e raça

mulher negra

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homem negro

homem branco

se sente preparado

66,5%

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48,3%

41,3%

não se sente preparado

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Ocorrência de assédio moral a profissionais de saúde durante a pandemia

mulher negra

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sim, e aumentou na pandemia

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sim, e se iniciou na pandemia

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sim, mas continua igual ao que era antes

11%

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Recebimento de treinamento, testagem e equipamentos

mulher negra

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testagem contínua

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29%

26%

equipamento de forma contínua

71,6%

69,6%

57,3%

56,7%

fonte Fundação Getulio Vargas

As mulheres negras foram a maior parte das entrevistadas (361), o que revela como essa área é ocupada principalmente por elas. Lotta lembra que a área da saúde, por ser uma área de cuidado, é exercida majoritariamente por mulheres.  E quanto mais descemos as posições hierárquicas, mais ela fica feminina e negra. As mulheres negras que responderam à pesquisa estão principalmente nas áreas de enfermagem e agentes comunitárias de saúde e de endemia. Em reportagens da Gênero e Número, já tínhamos mostrado os efeitos da pandemia para enfermeiras e cuidadoras. 

São elas que também destacam um maior aumento do assédio moral na pandemia: 19%, mais que mulheres brancas (16%), homens negros (15%) e homens brancos (13%). O assédio moral pode se manifestar de diferentes formas, mas segundo a pesquisadora da FGV,  neste contexto não seria apenas ânimos exaltados, mas as dimensões sociais que  pesam mais para as mulheres porque impactam em outras dimensões de suas vidas. “É ser constrangida e obrigada a trabalhar em condições ruins sem o governo assumir a responsabilidade e sobre o risco de ser demitido. Isso aumentou profundamente na pandemia, o que mostra como as condições de trabalho desses profissionais são precárias e vulneráveis.”

Saúde mental

“Como trabalho na linha de frente nessa  pandemia, fiquei um mês sem ver a minha filha e sem abraçar os meus pais. Sentindo uma solidão por ter que conversar com  eles por videochamada… a dor era surreal, querendo estar  próximo e não poder.  Única forma de mantê-los seguros  e  protegidos”, conta A.S, profissional de saúde negra do Amazonas, que mostra como a saúde mental dos profissionais da linha de frente foi impactada no período. 

Segundo a pesquisa, 689% dos homens negros e brancos disseram que a sua saúde mental foi impactada durante a pandemia, em comparação a 83% das mulheres negras e brancas. Os profissionais da saúde que se declaram amarelos, indígenas e transgêneros foram os que tiverem a saúde mental mais impactada no periodo, somando 89% dos que afirmaram ter a saúde mental impactada.  A população LGBT+, principalmente pessoas trans e LGBTs negros e indígenas, é um dos grupos mais vulneráveis à pandemia, como já mostramos em reportagem na Gênero e Número

Uma médica transexual de São Paulo relata que tudo mudou na percepção de trabalho e na relação com usuários e o sistema de saúde. Ao estudo, ela disse que “as exigências nesse contexto de pandemia são maiores, o medo desestabiliza e ainda tem as péssimas condições de trabalho”. Dentre os que se declaram amarelos, indígenas e transgêneros, 87% afirmaram ter medo do coronavírus.

Para Lotta, a população LGBT+, em especial as trans, ocupa posições claras na área da saúde. “A maior parte é agente comunitário de saúde ou profissionais da enfermagem, que então expostos ao risco adicional e à exclusão, que já faz parte da nossa dinâmica social e nesse momento fica mais explícito. Esses processos de exclusão são anteriores à pandemia, mas são reforçados nesse contexto e, por isso, afeta mais a saúde mental dessa população”.

O pouco apoio no cuidado da saúde mental oferecido aos profissionais também foi desigual. Dentre os grupos analisados, os homens negros foram os que menos receberam ajuda (23%); entre homens brancos, mulheres brancas e negras, esse número sobre para 29%, enquanto 31% dos amarelos, indígenas e transgêneros receberam algum apoio.

Avaliação do governo e reabertura

Os entrevistados pela pesquisa ainda avaliaram as três esferas do Executivo sobre sua atuação durante a pandemia do coronavírus. Não houve uma diferença significativa em relação às respostas por gênero e raça, mas as mulheres negras foram as que menos avaliaram positivamente as três esferas. O governo municipal é o que tem mais credibilidade, segundo os respondentes. A percepção de apoio do governo municipal foi de 51% por mulheres negras, 57% por mulheres brancas, 55% por homens negros e 64% por homens brancos. Já o governo federal teve avaliação positiva apenas por 34% das mulheres negras, 30% das mulheres brancas, 35% dos homens negros e 36% dos homens brancos.

“Desde o primeiro resultado da pesquisa, em abril,  as avaliações do governo municipal e estadual melhoraram e a do federal continuou no mesmo patamar. Isso acontece porque os profissionais de saúde são os que sentem mais diretamente as omissões do governo federal, e é reflexo da política  de desmerecimento  da questão da covid em nível federal. A própria postura do presidente legitima que se minimize a importância da atuação desses profissionais nesse momento”, destaca Lotta.

O estudo também destaca a percepção dos profissionais de saúde em relação ao processo de flexibilização do isolamento social e reabertura. Os homens brancos são a maior parcela dos que declararam ser favoráveis a uma reabertura total com o uso de máscaras (39%). Em contrapartida, quase metade das mulheres negras e brancas  (48%)  e 40% dos homens negros são favoráveis a uma reabertura apenas dos serviços essenciais com o uso de máscaras.

“A dificuldade de conscientização das pessoas acaba adoecendo tantas outras. Precisávamos de mais apoio das governanças. Se até o presidente é contra as normas básicas de segurança à saúde, que dirá o povo, que menos entende. O SUS trabalha com a maioria das pessoas carentes também,  há uma certa desconfiança da existência do vírus”, conta  uma profissional de saúde do Paraná que não foi identificada.

Para a pesquisadora da FGV, isso é reflexo das especificidades que mulheres e homens negros  vivem, o que faz com que tenham uma percepção diferente na hora de pensar a reabertura. “Eles vivem isso na pele e lidam com a dimensão do risco mais forte do que os homens brancos, cuja maioria é composto por médicos, o que faz com que fiquem muito mais receosos com relação à pandemia. Eles vivem no limite e percebem como está piorando, por isso, o medo fica bem mais forte”, finaliza.

Ainda mais silenciosa, violência contra mulheres cresce na pandemia

Falta de transparência, de uniformização de dados e de informações sobre identidade de gênero das vítimas dificulta o monitoramento dos casos de violência contra mulheres e travestis

A pandemia de covid-19 e o isolamento social tiveram impacto nos casos e nos registros de violência contra mulheres. Esse tipo de violência, que já sofre com subnotificação, tornou-se ainda mais presente e invisível no ano em que a casa, local mais perigoso para as mulheres, foi o lugar em que passamos a maior parte do tempo. E os dados mostram: entre março e junho de 2020, houve um crescimento de 16% nos registros de feminicídio em relação ao mesmo período do ano passado, segundo a pesquisa  “Violência contra mulheres: como a pandemia calou um fenômeno já silencioso”, do Instituto Igarapé. 

“Nos casos de feminicídio, sabemos que ele é precedido de uma série de outras violências. A raiz da violência contra as mulheres é a desigualdade de gênero. Ela se baseia nessa crença histórica de inferioridade das mulheres e seus corpos e isso se expressa na invisibilidade da violência. Como em sua maioria acontece dentro de casa e na mão de pessoas conhecidas, muitas vezes não é percebida como violência. Quanto mais falarmos sobre, mais deixamos de naturalizar e normalizar isso”, afirma Renata Avelar Giannini, doutora em Estudos Internacionais pela Old Dominion University (EUA) e uma das pesquisadoras responsáveis pelo estudo. 

Das 27 unidades federativas, apenas 17 disponibilizaram os dados sobre feminicídio e homicídio de mulheres para a pesquisa. O Rio Grande do Sul apresentou um aumento impressionante de 725% nesses casos, seguido de Mato Grosso (130%) e Pernambuco (75%). Somente em cinco houve queda: Distrito Federal (-64%), Alagoas (-22%),  Paraíba (-21%), Ceará (-13%) e Minas Gerais (-4%). 

[+] Leia também: Ações pouco efetivas das empresas desestimulam denúncias de assédio moral e sexual, revela pesquisa

Uma análise de curto prazo, que compara os registros em três períodos (antes do isolamento, durante o isolamento e depois da flexibilização), mostra que os registros de feminicídio diminuíram, chegando a 25% no período de flexibilização do isolamento social. Sete estados apresentaram queda na média desses casos, e as maiores reduções foram observadas no Mato Grosso do Sul (-75%), na Paraíba ( -55%) e em Mato Grosso (-42%), enquanto o Distrito Federal apresentou um aumento de 275%. Ao contrário dos registros de feminicídio, os de homicídios contra mulheres apresentou, na média, uma queda de 16% no período. No entanto, alguns estados apresentaram crescimento, como Rondônia ( 245%), Mato Grosso do Sul (141%) e Alagoas (75%). 

Feminicídio é o termo usado para denominar assassinatos de mulheres cometidos em razão do gênero. É quando a vítima é morta por ser mulher. Nem todo homicídio de mulheres é considerado feminicídio. Para isso, além de ser do gênero feminino, as situações devem envolver violência doméstica e familiar ou discriminação em relação à condição de mulher.

“A pandemia teve um claro impacto no aumento do feminicídio nesse contexto. O isolamento e a ‘superconvivência’ geram um aumento de comportamentos violentos por parte do parceiro, como mostraram pesquisas realizadas durante outras pandemias, como o Ebola e a H1N1. Uma hipótese é que, com a flexibilização, essa ‘superconvivência’ e essa frustração no meio familiar diminuem, mas não voltam ao mesmo patamar que antes da pandemia”, explica Giannini.

Violência de gênero cresce durante a pandemia

Feminicidio e ligações para o 180 aumentaram durante o período; assassinato de pessoas trans foi 47% maior que ano passado

Aumento de chamadas 180

Variação total de feminicídio

março a junho

2019

2020

RR

AP

+70

+33

AM

+53

CE

MA

PA

+92

+30

RN

+37

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PB

PI

AC

+87

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PE

+59

AL

TO

RO

SE

+8

+96

+45

+61

BA

+19

MT

+45

71

DF

+2

GO

83

+25

MG

+18

ES

MS

+20

-7

SP

RJ

+50

+38

PR

5 estados com maior variação de assassinatos

de pessoas trans

+26

SC

+41

RS

+44

2020*

2019

21

19

18

17

17

11

1

pessoa trans é

assassinada a

cada 48 horas

9

6

5

4

ce

mg

rj

sp

ba

* Assassinatos até 31 de outubro

fonte Instituto Igarapé/Antra

Violência de gênero cresce durante a pandemia

Feminicidio e ligações para o 180 aumentaram durante o período; assassinato de pessoas trans foi 47% maior que ano passado

Aumento de chamadas 180

RR

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+70

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Variação total de feminicídio

março a junho

2019

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5 estados com maior variação de assassinatos de pessoas trans

2020*

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* Assassinatos até 31 de outubro

1

pessoa trans é

assassinada a

cada 48 horas

fonte Instituto Igarapé/Antra

Dificuldade de registros e falta de transparência

No Brasil, os registros de violência contra a mulher em 2020 apresentaram uma tendência decrescente de 22%, segundo a pesquisa. Isso não significa uma redução da violência em si, já que o registro é afetado pela possibilidade ou não de a vítima fazer a denúncia. Diferentemente do caso de feminicídio, por exemplo. A análise de curto prazo revela que após uma queda nos registros durante o isolamento, houve aumento ou ao menos diminuição no ritmo de queda para todos os tipos de violência.

Para a pesquisadora do Igarapé, a diminuição dos registros evidenciam as dificuldades que as mulheres enfrentam para denunciar casos de violência. Segundo ela, a denúncia à polícia é dificultada pela revitimização dessas mulheres, o que acontece com frequência. 

Dália Celeste, pesquisadora da Rede de Observatório de Segurança, concorda.  “As mulheres são mais violentadas ainda quando vão fazer uma denúncia nas delegacias; elas não têm proteção e são intimidadas. A culpa recai sobre a mulher, o que faz com que muitas não cheguem a fazer a denúncia para não passar por isso”, diz.

Outro destaque do estudo é a falta de transparência de alguns estados. “Isso já era comum antes da pandemia, mas está servindo como desculpa para a falta de transparência. Os dados de Segurança Pública sobre violência contra mulheres no Brasil são extremamente desiguais, os estados devem divulgar de uma forma mais uniformizada e coordenada. Pelo contexto que estamos vivendo, precisamos dos dados para entender da melhor forma possível como a segurança das mulheres está sendo afetada”, comenta Renata Avelar Giannini.

[+] Leia também: Em tempos de coronavírus, mulheres negras assumem o protagonismo contra a violência de gênero

Este ano, por conta da pandemia, alguns estados, como São Paulo, passaram a disponibilizar o boletim de ocorrência online para violência doméstica, e agressores estão sendo notificados de medida protetiva por telefone ou WhatsApp em todo o Brasil. Ainda é cedo, segundo as pesquisadoras, para ver se esta medida teve efeito nos registros das denúncias. 

Em todos os tipos de violência contra a mulher, com exceção do feminicídio, houve uma queda nos registros. A violência psicológica foi analisada através do indicador de ameaça, enviado por 17 estados da federação, e apresentou uma redução de 24% nos registros de março a junho de 2020 em relação a 2019. Quanto à violência física, dados de 18 estados mostram que a queda geral na média brasileira de casos reportados de lesão corporal dolosa foi de 26%. Já no caso de violência sexual, houve uma queda de 26% nos registros de estupro. 

Apenas quatro estados enviaram informações sobre violência patrimonial, que indicam uma redução de 44% nos registros destes casos, e mostram, principalmente, que a ausência de dados e o pouco debate tornam a violência patrimonial quase invisível no Brasil. Por fim, a tendência decrescente nos registros também foi confirmada para a violência moral, que apresentou uma redução média de -21% nos 13 estados que enviaram dados.

Os dados da chamada 180, enviados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, revelam uma tendência diferente dos registros da polícia. Foram registradas 7.910 chamadas de março a junho de 2020, o que representa um crescimento de 36%. Os estados com os maiores aumentos foram Tocantins (96%), Ceará (92%) e Paraíba (87%). O único estado que apresentou redução foi o Mato Grosso do Sul, com -7%. 

aspa

Se o feminicídio é algo que lutamos para conseguir diminuir e combater, o transfeminicídio é uma pauta de corpos que ainda não são reconhecidos. É um processo total de desumanização. Não basta nos matar, tem que nos mutilar, carbonizar e executar - Dalia Celeste, pesquisadora da Rede de Observatório de Segurança de Pernambuco

Por ser um canal telefônico, diferente do registro da polícia, esses dados conseguem expressar um pouco melhor a violência contra as mulheres no isolamento social, segundo Giannini. “Se antes da pandemia eram só 40% dos casos subnotificados, como é agora? Temos indícios de que a violência aumentou. O que é importante destacar é o que vamos fazer a partir de agora para reforçar esses canais de denúncia ou entender melhor o que está acontecendo com essas mulheres. O Estado tem que garantir a segurança das mulheres, e que medidas de proteção e acolhimento sejam reforçadas nesse período.”

Transfeminicídio

A violência de gênero não afeta só as mulheres cisgêneros. Também cresceu a violência contra mulheres trans e travestis no contexto da pandemia de coronavírus no Brasil. De janeiro a outubro de 2020, houve um aumento de 47% em relação ao mesmo período de 2019, segundo Boletim nº 5 de Assassinatos contra travestis e transexuais em 2020, da Associação Nacional de Transexuais e Travestis (Antra). Todas as 151 pessoas assassinadas em 2020 até 31 de outubro eram travestis ou mulheres trans e a maioria das vítimas eram negras. No país, uma pessoa trans foi assassinada a cada 48 horas.

“As mulheres trans e travestis estão na linha de frente da luta das pessoas trans. Esses corpos não são aceitos dentro dos espaços, por isso, são marginalizados e não têm acesso a políticas públicas, ficando em um lugar de vulnerabilidade. Por terem a identidade de gênero feminino, que socialmente é entendido como passível de violação, elas são as maiores vítimas de homicídios contra a população trans”, pontua Dalia Celeste, pesquisadora da Rede de Observatório de Segurança de Pernambuco. 

Houve um aumento em todos os bimestres comparado ao último ano. No primeiro bimestre, o aumento foi de 90%, no segundo, de 48%; o terceiro apresentou aumento de 39%, o quarto bimestre, de 70%, e o quinto bimestre, de 47%.

[+] Leia também: Violência contra mulheres trans e travestis começa em casa e continua do lado de fora

Celeste, que é uma mulher trans, ainda aponta a ausência de dados oficiais sobre a violência contra a população trans, o que faz com que as organizações sociais, como a Antra, tenham que fazer esse mapeamento e se perpetue a invisibilidade dessa questão: “A primeira coisa que sempre falo é que vivemos em uma sociedade que nem reconhece as pessoas trans. Se o feminicídio é algo que lutamos para conseguir diminuir e combater, o transfeminicídio é uma pauta de corpos que ainda não são reconhecidos. É um processo total de desumanização. Não basta nos matar, tem que nos mutilar, carbonizar e executar”.  

No Brasil, legislações como a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340) e a Lei do Feminicídio (Lei nº13.104) podem atender a mulheres trans e travestis, mas os dados de Segurança Pública não trazem a identidade de gênero das vítimas, o que torna difícil mapear as vítimas desses tipos de violência.

“Quando falamos de segurança pública, a população trans padece de um estigma que vem desde a época da ditadura, de que somos vistas como inimigas dos Estados. Então as pessoas trans, muitas vezes, não se sentem seguras em efetivar denúncias ou entregar a sua proteção ao Estado, que muitas vezes é quem nos viola, quando não implementa políticas públicas, quando não reconhece nossa identidade de gênero ou não garante acesso a políticas que já estão instituídas”, disse Bruna Benevides, secretária de articulação da Antra, em outra reportagem da Gênero e Número. 

A pesquisadora pernambucana da Rede de Observatório de Segurança denuncia que apesar de o feminicídio abranger também mulheres trans e travestis, devido à transfobia, muitas vezes não são enquadrados os casos de violência doméstica e feminicídio de mulheres trans nos registros. “Acabam registrando simplesmente como homicídio, quando percebemos que não é.  As mulheres trans e travestis são executadas de forma brutal, com requinte de violência, e em uma tentativa de higienização. Isso é algo que a sociedade não vem debatendo, que está naturalizado”, finaliza.

Interrupção de operações policiais no auge da pandemia mostrou que outra política de segurança é possível

Durante os meses em que cumpriram decisão do Supremo Tribunal Federal de interromper operações, polícias do Rio mataram até 80% menos; perfil das vítimas continua sendo negros e pobres

A ausência de uma política consistente de prevenção e combate à covid-19 no Brasil jogou luz sobre a expressão “mortes evitáveis”. No contexto da doença, seriam aquelas que aconteceram quando era possível evitar o contágio, com melhores políticas de incentivo ao isolamento, ou que aconteceram devido à sobrecarga do sistema de saúde. Mas ainda que as mortes causadas pelo novo coronavírus sejam o assunto principal do ano, as mortes evitáveis no contexto da Segurança Pública também merecem atenção: até novembro, só no estado do Rio de Janeiro, foram 1.160 mortos pelas polícias.

Ainda não há dados de raça para as vítimas de 2020, mas os mais recentes, de 2019, mostram que no Rio de Janeiro pessoas negras são 86% daquelas mortas pela polícia. Os dados são da Rede de Observatórios da Segurança e consideram os cinco estados monitorados pela rede. Na Bahia, a proporção de negros entre os mortos chega a 97%. No Ceará, 87%, e em Pernambuco, 93%. Em São Paulo, que tem menor proporção entre os estados monitorados, negros são 63% dos mortos. 

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“É uma enorme quantidade de mortes totalmente evitáveis, de pessoas que só morreram porque eram jovens negros de favelas e periferias, e porque a corporação policial aceita, tolera e, de certa forma, sanciona esse tipo de estratégia: a polícia atira para matar se do outro lado tiver um jovem negro da favela”, aponta Silvia Ramos, pesquisadora de Segurança Pública no Cesec (Centro de Estudos de Segurança e Cidadania) e coordenadora geral da Rede.

Negros são 86% dos mortos pelas polícias

Dados referentes a cinco estados mostram padrão de atuação; em 2020, STF interviu para diminuir letalidade no Rio

Mortos pela polícia em 2019 (em%)

não informado

brancos

negros

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2%

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92%

78%

25%

77%

1%

9%

3%

fonte Rede Observatórios de Segurança

Negros são 86% dos mortos pelas polícias

Dados referentes a cinco estados mostram padrão de atuação; em 2020, STF interviu para diminuir letalidade no Rio

Mortos pela polícia em 2019 (em%)

brancos

negros

não informado

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2%

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77%

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fonte Rede Observatórios de Segurança

A dor de quem fica

“Levanta, preto! A tia tá aqui.” Foi esta uma das frases mais marcantes entre as várias gritadas no velório de Jhordan Luiz Natividade, de 17 anos, em 14 de dezembro deste ano. Jhordan e Edson Arguinez Júnior, de 20 anos, foram assassinados por policiais militares em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Mais duas mortes evitáveis.

Os jovens deixaram suas famílias para entrarem nas estatísticas em que as vítimas são principalmente jovens negros e pobres, mas com impacto na vida de muitas mulheres. São elas que geralmente estampam as capas de jornais, repetidamente, chorando a perda. São mães, tias, avós, primas e irmãs. 

No caso de Jhordan e Edson, a dinâmica das mortes foi brutal: eles estavam em uma moto quando policiais militares atiraram à queima-roupa, sem pedir sequer para que descessem do veículo. No chão, foram chutados e apanharam com o cano do fuzil. Depois da abordagem, foram jogados na traseira da viatura. 

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Seus corpos foram encontrados horas depois, com mais marcas de tiros e violência. O maxilar de Jhordan, por exemplo, estava quebrado. O cabo Júlio César Ferreira dos Santos e o soldado Jorge Luiz Custódio da Costa foram presos após familiares das vítimas levarem os vídeos da abordagem para uma delegacia. 

“O Edson era um filho carinhoso, gentil, educado. Ele não fez nada para justificar essa crueldade que fizeram com ele. Na cabeça dos PMs, dois pretos não podem andar em uma moto sem serem criminosos”, disse à época Renata, mãe de Edson. 

No enterro dos rapazes, Alecssandra, mãe de Jhordan, lamentou não estar no lugar do filho: “Perdoa a tua mãe por eu não estar sentindo a sua dor”. 

aspa

O que vemos como solução é reduzir o poder, a força e o armamento da polícia. É reduzir essas estratégias de policiamento que ‘preventivamente’ atacam garotos negros passando na rua de moto, a pé ou dentro de suas comunidades - Silvia Ramos, pesquisadora de Segurança Pública no Cesec 

Silvia Ramos, que pesquisa Segurança Pública há mais de 20 anos, diz que cenas, enterros e mortes como a Jhordan e Edson são constantes, e os dados comprovam: são mais de 1.500 por ano somente no Rio de Janeiro. Mas apesar de sempre vermos mães chorando sobre caixões, nunca há um pedido de desculpas.

“Nunca vi um policial pedir desculpas a uma mãe de favela. Mas isso não é só do caráter do policial, é estratégia da corporação. Eles são instruídos a mentirem, a nunca admitirem que se excederam no uso da força e que poderiam não ter matado”, analisa Ramos.

Intervenção

Para impedir casos como os dos meninos de Belford Roxo é que, em junho de 2020, houve uma proibição do Supremo Tribunal Federal para que as polícias do Rio de Janeiro interrompessem as operações policiais em favelas de todo o estado. O estopim para a decisão do ministro Edson Fachin, com base na ADPF 635, foi a morte do menino João Pedro, de 14 anos, dentro da própria casa em São Gonçalo, na região metropolitana do estado, com tiros nas costas. Outra morte evitável.

Na decisão, Fachin afirmou que, via de regra, “os agentes de Estado devem justificar todas as circunstâncias que os levaram ao emprego da arma e devem demonstrar que a exceção de seu emprego está plenamente justificada pelas circunstâncias do caso”. Mas não é o que acontece. Por isso, o ministro suspendeu as operações durante a pandemia de covid-19, exceto em casos especiais, que deveriam ser comunicados ao Ministério Público. 

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A decisão funcionou: em maio, os mortos em decorrência de intervenção policial foram 130. Em junho, 34. Em junho de 2019, ocorreram 153 mortes nessas circunstâncias, 77% a mais. A diminuição na quantidade de mortes em 2020 se manteve até setembro, quando foram registradas 52. Mas em outubro, com a pandemia ainda em curso, os índices voltaram à normalidade sangrenta: 145 pessoas morreram em confrontos com a polícia. 

Para Ramos, a decisão do STF expressou como a alta letalidade policial não tem nenhuma justificativa.

“O que vimos é que quando a polícia quer parar de matar e reduzir os efeitos letais, consegue. Esse sobe e desce das mortes pela polícia não tem nada a ver com as dinâmicas de criminalidade: nos cinco meses em que a polícia matou menos do que normalmente, os crimes contra o patrimônio e a vida não aumentaram”, afirma a pesquisadora. 

Crianças

A política letal das polícias também atinge as crianças ainda mais jovens que João Pedro. Até o início de dezembro, 2020 registrou ao menos 22 crianças de até 12 anos baleadas no Rio de Janeiro. Oito dessas morreram, de acordo com o aplicativo Fogo Cruzado. As mais recentes foram Emily Victória, de 4 anos, e Rebeca Beatriz, de 7 anos. Elas brincavam na porta de casa, em Duque de Caxias, na região metropolitana do Rio, quando PMs tentaram abordar uma moto e houve disparos. 

“Eles só sabem fazer isso, dar tiro. Olhou, dá tiro”, disse Ana Lúcia Silva Moreira, mãe de Emily. 

O laudo balístico foi inconclusivo, sem poder afirmar se as balas saíram dos fuzis dos policiais, mas o policiamento ostensivo e a naturalidade com que tiros são dados em áreas residenciais, com crianças, chama a atenção.

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“A polícia não age desse jeito nos bairros abastados de maioria branca. É uma estratégia de segurança pública racista, voltada para jovens negros da favela, que são vistas reiteradas vezes como o local do mal e onde só tem bandidos”, analisa Silvia Ramos.

Para 2021, não há qualquer proposta de melhorias. O governador em exercício do Rio de Janeiro, Cláudio Castro, decretou que reduzir o número de mortos pela polícia fará parte do plano de metas que premiará agentes de segurança. 

Mas para Silvia Ramos, a real mudança só acontecerá quando o investimento em educação, cultura e lazer forem altos. Atualmente, de acordo com dados da Rede, a Segurança do Rio custa R$ 21 bilhões, entre gastos com estrutura e profissionais da ativa e aposentados. 

“Esse dinheiro não serve para melhorar a polícia, mas para mais armas, mais munições, mais viaturas, mais coletes, mais policiais na rua fazendo a mesma coisa. O que vemos como solução é reduzir o poder, a força e o armamento da polícia. É reduzir essas estratégias de policiamento que ‘preventivamente’ atacam garotos negros passando na rua de moto, a pé ou dentro de suas comunidades”.

Sem amplo suporte financeiro, manter educação em dia foi desafio para mães e estudantes em 2020

Câmara dos Deputados levou nove meses para aprovar projeto de suporte a estudantes da educação básica; ensino superior, mais difícil financeiramente para negros, sofreu com ensino remoto

Nove meses depois do início da pandemia, a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que destina R$ 3,5 bilhões para estudantes de escolas públicas conseguirem ter acesso à internet enquanto as aulas presenciais não voltam ao normal. A proposta pretende beneficiar também professores da rede pública. O texto ainda vai para votação no Senado e, caso aprovado, depende de sanção do presidente Jair Bolsonaro. A proposta define que o valor seja repassado aos estados e municípios até o dia 28 de fevereiro, cerca de 15 dias antes da pandemia completar um ano.

Enquanto o imbróglio se arrastou durante todo o ano de 2020, mães, estudantes e professores se viram às voltas com as limitações impostas pelo ensino à distância. Alguns com pouca internet, outros sem internet, além da falta de computador ou celular que não suportava as atividades, aliando toda a demanda educacional com as demandas domésticas e de trabalho.

A pesquisa “Sem Parar: O trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, um dos projetos especiais da Gênero e Número neste ano, já havia mapeado o problema. As mulheres brasileiras afirmam que a necessidade de auxiliar as atividades educacionais dos filhos de até 12 anos aumentou 49% no cenário de aulas online. 

Mas não é somente a falta de internet que atrapalha. Para quem leciona e para quem aprende, 2020 apresentou inúmeros obstáculos. A pesquisa “Sentimento e percepção dos professores brasileiros nos diferentes estágios do coronavírus do Brasil”, do Instituto Península, mostra que durante a pandemia os professores se sentiram mais sobrecarregados e ansiosos. 

Em outubro, a Gênero e Número publicou uma reportagem sobre os efeitos da pandemia nos professores. “Nenhum de nós se formou para fazer o que estamos fazendo. A sala de aula não é isso, estamos improvisando. Estamos frustrados  em relação à prática docente porque não conseguimos executar o que fomos instruídos a executar”, disse à época a professora Keilla Villa Flor, de Brasília. 

A mesma pesquisa mapeou que o principal desafio do ensino remoto é a falta de infraestrutura e conectividade dos estudantes (79%). Por isso, um auxílio público para garantir a internet é tão importante.

Em seu voto para o projeto aprovado recentemente na Câmara, de suporte aos alunos, a relatora Tábata Amaral (PDT/SP) argumenta que a garantia de conectividade não é “apenas para garantir o aprendizado novo, mas também a conexão com o antigo, que corre o risco de se perder”. Tábata também diz que garantir os estudos dos alunos em 2021, seja totalmente online ou no modelo híbrido, pode ajudar a evitar evasão escolar.

Topo da formação é composto por maioria branca

Pretos e pardos estão principalmente em níveis mais baixos de escolaridade

Distribuição de raça/cor por nível de desigualdade em 2019

pretos

pardos

brancos

Sem instrução e menos de 1 ano de estudo

9%

8%

5%

Fundamental incompleto

39%

36%

31%

Fundamental completo

8%

8%

7%

Médio incompleto

7%

7%

5%

Médio completo

26%

24%

24%

Superior incompleto

5%

4%

3%

Superior completo

18%

8%

7%

fonte Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe GEMAA 2020

Topo da formação é composto por maioria branca

Pretos e pardos estão principalmente em níveis mais baixos de escolaridade

Distribuição de raça/cor por nível de desigualdade em 2019

brancos

pretos

pardos

Sem instrução e menos de 1 ano de estudo

9%

8%

5%

Fundamental incompleto

39%

36%

31%

Fundamental completo

8%

8%

7%

Médio incompleto

7%

7%

5%

Médio completo

26%

24%

24%

Superior incompleto

5%

4%

3%

Superior completo

18%

8%

7%

fonte Relatório das Desigualdades de Raça, Gênero e Classe GEMAA 2020

Ensino superior

Outra face da educação impactada pela pandemia foi o Ensino Superior. Dados compilados pelo Relatório das Desigualdades de Raça, Classe e Gênero, do GEMAA (Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa) da UERJ, mostram que pessoas negras (ou seja, a soma de pretos e pardos) estão mais presentes nos níveis mais baixos de escolaridade. 

Enquanto 18% dos brancos têm ensino superior completo, essa proporção é de apenas 8% para pretos e 7% para pardos. Esse dado pode ter raiz nas dificuldades que pessoas negras e brancas enfrentam durante a sua permanência nas universidades. Também o Gemaa apontou que o principal obstáculo para pessoas negras se manterem na universidade é a dificuldade financeira. Para pessoas brancas, os problemas principais giram em torno de dificuldade emocional e falta de disciplina para estudos.

A Gênero e Número também trouxe essa análise em 2020. Na época, Poema Eurístenes, pesquisadora do Gemaa, analisou que “apesar de ser mencionada em algum momento por pessoas brancas, [dificuldades financeiras] nem entra como seus principais problemas, enquanto para pessoas pretas e pardas é o principal”. Por isso, a análise por cor/raça em relação às políticas públicas educacionais se torna necessária. 

Essa dificuldade ficou mais acentuada durante o ano. O monitoramento das instituições de ensino do Ministério da Educação aponta que, em dezembro, não há nenhuma universidade federal com atividades suspensas, mas a maioria mantém as aulas remotas. Apesar disso, diante da falta de um plano de orientação federal para a educação no âmbito da pandemia, coube a cada universidade se adaptar à nova realidade, no tempo possível. A Universidade Federal do Rio de Janeiro, por exemplo, iniciou as aulas remotas somente no segundo semestre. No dia 30 de novembro, a universidade iniciou o primeiro período acadêmico de 2020, que só acaba em março de 2021.

No início de dezembro, em meio à alta de casos e sem um plano definido de vacinação, o MEC anunciou que o retorno das aulas presenciais deverá acontecer em 1º de março. A data foi uma correção: a determinação anterior estabelecia que já em janeiro os alunos deveriam voltar às universidades. Na ocasião, o chefe da pasta, Milton Ribeiro, disse que “não há mais condições para prorrogar o retorno das aulas presenciais”.

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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