“Sou negra e minha mãe branca disse que não existe negro bonito no Brasil”

Relatos de racismo sofrido por mulheres negras à plataforma “Racismo à Brasileira” destacam o  impacto emocional deste crime na vida delas; 95% não denunciam, e especialistas alertam para a necessidade de trabalhar vivências pessoais como questões sociais e políticas

Vitória Régia da Silva

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Relatos de vivências cotidianas como perseguição de seguranças em estabelecimentos comerciais, negação ao acesso a algum serviço ou direito ou constrangimentos relacionados à cor da pele se destacam em “Racismo à Brasileira”, uma iniciativa antirracista lançada pela Gênero e Número em novembro de 2021 e que busca evidenciar não só  crimes de racismo ou injúria racial, mas principalmente violências “invisíveis”, como preterimento amoroso de parceiros por causa da cor e desmerecimento, que afetam, principalmente, a saúde mental das mulheres negras. 

Foram elas o principal grupo a relatar casos de racismo na plataforma. Entre os depoimentos anônimos de mulheres negras, chama a atenção o fato de que 95% dos episódios nunca foram denunciados. Cerca de 62% deles estão relacionados a situações de violência psicológica/moral e, em 55% o impacto emocional é o mais visível. Em cerca de 27% dos casos, a principal sensação provocada pelo racismo é a de não-pertencimento.

aspa

Teve um dia em que minha mãe branca disse que não existe negro bonito no Brasil, eu falei pra ela que por ser negra ouvir isso dela era um absurdo. Ela disse que eu não sou negra, sou morena ou mulata e que se todo mundo é descendente de escravizado, por algum parente distante dela já ter sido um, ela também poderia se dizer mulata. Eu insisti dizendo que não se usa morena ou mulata e que eu sou negra portanto. Ela saiu de casa por 3 dias e ficou sem falar comigo porque não aceita que eu seja negra.

As histórias compartilhadas remetem a diversos períodos da vida das mulheres negras, desde a infância, adolescência ou fase adulta:

Eu tinha 8 anos, fui pra escola usando tranças. Estava muito feliz porque, com tranças, o meu cabelo balançava. Mas sofri bullying dos colegas. Eu chorava muito e não queria ir mais pra escola. Era uma escola de classe média de Salvador e eu era a única da sala de cabelo crespo. Durante muitos anos eu senti raiva do meu cabelo e até dos meus pais por isso. Só consegui usar meu cabelo natural aos 35 anos. Sinto por todas as meninas e meninos que sofrem de baixa autoestima em razão das suas características naturais.

LEIA TAMBÉM: Na plataforma “Racismo à Brasileira”, você encontra casos de racismo que marcaram pessoas negras e o impacto em suas vidas

 

A promotora de Justiça Lívia Sant’Anna Vaz, do Ministério Público do Estado da Bahia, e reconhecida como uma das 100 pessoas de descendência africana mais influentes do mundo (Mipad), destaca que no Brasil o chamado “racismo à brasileira” não é um racismo velado porque é possível determinar quais são os lugares onde estão prioritariamente pessoas brancas e quais em que se vê majoritariamente pessoas negras e que existe um distanciamento entra a população negra e o sistema de justiça; . 

“O Direito é um sistema que é apartado da realidade que ele vai mudar,  que desconhece a realidade que ele vai mudar.  E aí a gente acaba produzindo realmente aplicações parciais de justiça, de liberdade, de igualdade”, destaca. “ Eu digo o seguinte: não são as mulheres negras que precisam do sistema de Justiça, porque nós chegamos aqui sem apoio dele. Na verdade, é o contrário, é o sistema de Justiça  que precisa das mulheres negras. O Direito, que deveria ser um mecanismo de emancipação de todas as pessoas, tem servido de instrumento de manutenção do poder”.

Vulnerabilidade e violência

Ativista, educadora popular em saúde, coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (Nesp/Ceam-UnB) e professora na Plataforma Feminismos Plurais, Marjorie Chaves destaca que os relatos não podem ser lidos apenas como traumas individuais, mas como violências que refletem uma posição mais ampla do racismo na sociedade brasileira: aquela associada a falta de acesso a diversos direitos, enfrentada por boa parte da população negra e definida como racismo estrutural: 

“É preciso considerar que o fato de serem mulheres negras as coloca no lugar de vulnerabilidade em relação à violência contra as mulheres, em desvantagem no acesso à justiça reprodutiva e na pouca participação na representação política. Embora sejam situações que evidenciam o racismo estrutural como definidor de lugares e destinos, elas são resultado do racismo cotidiano experimentado nas relações sociais, por isso, não podem ser pensadas de forma separada”, explica.

Marjorie destaca que a solidão vivida por elas também se acentua à medida que buscam desafiar papéis historicamente impostos e passam, por exemplo, por processos de ascensão social:

O racismo na vida da mulher negra

95%

das mulheres

não denunciaram

o episódio

de racismo

5%

fizeram denúncia

locais

das agressões

27%

relataram que

a violência

ocorreu em um

estabelecimento

comercial

15%

instituição

de ensino

11%

local

público

em casa

local de trabalho

outros

casa do(a)

agressor(a)

transporte

escola

rua

principais tipos

de agressões

85%

sofreram

constrangimento

62%

violência

psicológica/

moral

fonte racismo à brasileira/ gênero e número

O racismo na vida da mulher negra

95%

das mulheres

não denunciaram

o episódio

de racismo

5%

fizeram denúncia

locais

das agressões

27%

relataram que

a violência

ocorreu em um

estabelecimento

comercial

15%

instituição

de ensino

11%

local

público

em casa

local de trabalho

outros

casa do(a)

agressor(a)

transporte

escola

rua

principais tipos

de agressões

85%

sofreram

constrangimento

62%

violência

psicológica

/moral

fonte racismo à

brasileira/

gênero e número

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“Mulheres negras não são vistas como produtoras de conhecimento, o que faz com que sejam associadas a ocupações essenciais, porém, de menor prestígio social, como o trabalho doméstico e os serviços de limpeza. Essa relação faz com que não sejamos vistas como cientistas, advogadas, historiadoras, arquitetas competentes, o que confere um lugar de não-pertencimento. Estamos falando de uma sensação com resultados materiais na vida das mulheres negras e que atinge tanto suas relações sociais e afetivas quanto seu lugar na estrutura da sociedade”.

aspa

Quando tinha uns 13 anos, estava conversando com meus amigos e do nada um amigo meu disse que Deus tinha me amaldiçoado porque me fez negra e mulher. - Relato anônimo de uma mulher negra à plataforma "Racismo à Brasileira"

No Rio de Janeiro, as mulheres negras são as maiores vítimas de injúria racial segundo o “Dossiê Crimes Raciais”, lançado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP-RJ) em novembro de 2020. De acordo com o estudo, mais da metade das vítimas de racismo em 2019 foram mulheres (58,2%).

Psicóloga especializada em “psicologia preta”, Celia Chagas também observa, a partir do convívio com pacientes, uma relação direta entre o não-pertencimento e a quebra de expectativas sociais. Se homens e mulheres negras sempre estão sujeitos a se sentirem sozinhos nos novos espaços que circulam, há um peso maior quando há recorte de gênero – já que, em muitos casos, as mulheres relatam situações de preterimento por homens que acabam preferindo se relacionar com mulheres brancas.

“O homem é sempre bem visto quando ascende socialmente, mas a mulher negra não. Ela sempre tem que buscar alternativas ao que vai encontrar naquela situação em que está, e que pode incluir relações com homens em posição social inferior, por exemplo. Isso pode  acarretar situações de inveja, rancor, e acaba não resolvendo essa solidão que ela já vivia”, afirma a psicóloga.

Na infância, na rua, na escola...

O racismo "silencioso" contra mulheres negras

27%

dos relatos traziam sensações de não pertencimento em espaços públicos

Em uma loja de shopping, a vendedora, que atendia uma mulher branca que entrou na loja depois, só se aproximou de mim para dizer que liquidação era no subsolo.

16%

falavam sobre traumas de infância ou adolescência

Quando eu tinha 8 anos, fazendo compra com minha mãe, corri para pegar uma promoção relâmpago. Ao me aproximar correndo, uma mulher branca agarrou a filha, protegendo ela de mim. E só largou quando minha mãe, branca, chegou, me abraçou e disse que eu era filha dela”

12%

relatam dificuldades

na presença

acadêmica

Após passar no mestrado em primeiro lugar, portanto com direito a bolsa, a coordenação da instituição decidiu mudar as regras de classificação para o próximo ano, alegando que naquele ano (o que passei) a avaliação tinha contribuído para que pessoas que não tinham o perfil de pesquisa conseguissem a bolsa.”

12%

contam sobre dificuldades no mundo

do trabalho

Trabalhei por 16 anos em local que era parado todos os dias e pedia meu crachá, enquanto as pessoas brancas não recebiam o mesmo tratamento”

fonte racismo à brasileira/ gênero e número

Na infância, na rua, na escola...

O racismo "silencioso" contra mulheres negras

27%

dos relatos traziam sensações de não pertencimento em espaços públicos

Em uma loja de shopping, a vendedora, que atendia uma mulher branca que entrou na loja depois, só se aproximou de mim para dizer que liquidação era no subsolo.

16%

falavam sobre traumas de infância ou adolescência

Quando eu tinha 8 anos, fazendo compra com minha mãe, corri para pegar uma promoção relâmpago. Ao me aproximar correndo, uma mulher branca agarrou a filha, protegendo ela de mim. E só largou quando minha mãe, branca, chegou, me abraçou e disse que eu era filha dela”

12%

relatam dificuldades

na presença

acadêmica

Após passar no mestrado em primeiro lugar, portanto com direito a bolsa, a coordenação da instituição decidiu mudar as regras de classificação para o próximo ano, alegando que naquele ano (o que passei) a avaliação tinha contribuído para que pessoas que não tinham o perfil de pesquisa conseguissem a bolsa.”

12%

contam sobre dificuldades no mundo

do trabalho

Trabalhei por 16 anos em local que era parado todos os dias e pedia meu crachá, enquanto as pessoas brancas não recebiam o mesmo tratamento”

fonte racismo à

brasileira/

gênero e número

Solidão que, para Marjorie, também encontra respostas estruturais quando as vítimas são mulheres negras em contextos de vulnerabilidade social – o que para a pesquisadora reforça a necessidade de um olhar mais entrecruzado entre saúde mental e racismo estrutural:

“Em uma sociedade patriarcal, homens negros são maioria atingida por homicídios e pelo encarceramento, enquanto mulheres negras são as maiores vítimas de violência de gênero e da pobreza. O lugar de não-pertencimento atinge toda a população negra, mas afeta de forma específica as mulheres negras porque elas também são atingidas pela violência vivenciada pelos seus filhos, pais ou companheiros”, ressalta a ativista e professora.

Dororidade é transformar dor em Potência

Penso nas Mulheres e Jovens Negras. Somos estatísticas …regra..sempre nos piores indicativos. Saúde. Emprego…Escolaridade. Racismo…e por aí vai…

E agora o aumento  do feminicídio. com protagonismo de Jovens e Mulheres Negras.  Ainda estamos sujeitas ao subemprego, à informalidade, à violência. E na Pandemia esse quadro se agravou.

As mulheres e Jovens Negras são, em sua maioria, mães solo. Referências econômicas da família. Aí que entra o Conceito de Dororidade, Livro lançado em 2017 pela Editora NÓS/ SP. O Conceito nasceu da minha inquietude frente à Sororidade. Sororidade é um Conceito fundamental para o Feminismo  ancora o Feminismo. Hoje falo sobre Feminismos…porque temos variadas especificidades. Mas, muitas vezes, não me sentia incluída. 

Sabemos que um dos problemas do pensamento feminista foi perceber o Movimento Feminista como um bloco único, moldado para a Mulher ocidental, de classe média, instruída. Raça, diferenças culturais, étnicas não estavam na discussão da luta pelos direitos das Mulheres. Enquanto se reinvidicava “o direito de trabalhar fora”, Nós e nossas Ancestrais já trabalhavam fora há muito tempo. Foi Lélia González que empreendeu o Feminismo nos anos 80 do século XX. Daí…temos o Feminismo Negro. 

No meu Livro Dororidade coloco: “Sororidade une, irmana, mas não basta. O que parece nos unir…unir todas as Mulheres, sem diferença de raça, classe, etnia, é a dor. A dor da violência que sofremos no cotidiano. A dor provocada pelo Machismo. Que atinge a todas as Mulheres. Mas Nós, Mulheres e Jovens Negras temos uma dor a mais. A dor provocada pelo Racismo. Contudo, Dororidade fala das sombras. Da nossa voz silenciada. Da nossa  ausência e invisibilidade histórica”. Dororidade nasce na minha esperança, de um Feminismo…Feminismos mais inclusivos. De várias vozes. Na perspectiva de construir um diálogo feminista com todos os tons de Pele, com todos os tons de Pretas. Antirracista. E que Sororidade dialogue com Dororidade, sempre! E que venham dias melhores! 

Sabemos, através de dados oficiais, que as Jovens, Meninas e Mulheres Negras são mais vulneráveis a várias Violências…da escravidão até aqui…e o Machismo, assim como o Racismo não dá tréguas. Na mídia, por exemplo, Mulheres Negras famosas foram mais alvo de Racismo nas Redes que os Homens Pretos, maridos às vezes também famosos.

A Juventude Negra, a População Negra, também são expostas, quase que diariamente.  Lélia González, no seu Pretugues diria “Cume qui é? Século  XXI, quase 134 pós ‘Abolição’ e ainda estão discutindo Racismo, Injúria Racial…enfim Racismo?”

Dororidade veio pra dialogar com Sororidade.E como o Conceito foi ressignificado por um Grupo de Mulheres Jovens Pretas ” Dororidade é a Empatia entre as Mulheres Negras  gerada pelas suas dores comuns.

* Vilma Piedade, professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira, autora do Livro-Conceito “Dororidade” (editora NÓ/SP) e “Sobre Feminismos”, com Andréa Pacha (editora Agir).

**O texto foi publicado da forma que Vilma Piedade escreveu

Muito além de uma mera impressão

Outro fator que se destaca nas experiências das mulheres, segundo a psicóloga, está no processo de reconhecimento do problema já que, muitas vezes, as agressões não são diretamente associadas a ofensas, xingamentos ou a questões de cor. Apesar de sentirem que estão enfrentando uma situação racista, a dificuldade para aceitar está muito associada ao mito da “democracia racial” – conceito histórico que, por muitas décadas, dominou estudos das Ciências Sociais que negavam o racismo no Brasil. 

“A gente escuta desde a infância e a adolescência que todo mundo é igual, e acaba crescendo achando que todo mundo vai ser lido como bonito, que não vamos ter problemas para arranjar um emprego ou casar, mas aí quando chega o momento de enfrentar o mercado de trabalho, de perceber que os padrões de beleza para uma marca não somos nós, começa a sentir qual é o problema. E é nessas situações que há sempre quem diga que isso é um complexo, ‘deixa disso, só basta se esforçar’, mas sabemos que não é bem assim”, afirma.

Efeitos do racismo contra a mulher negra

55%

dos relatos tiveram como resultado impactos emocionais

20%

provocaram

mudança de comportamento

13%

levaram à

conscientização

racial

11%

causaram

abandono/ distanciamento

de ambientes

fonte racismo à brasileira/ gênero e número

Efeitos do racismo contra a mulher negra

55%

dos relatos tiveram como resultado impactos emocionais

20%

provocaram

mudança de comportamento

13%

levaram à

conscientização

racial

11%

causaram

abandono/ distanciamento

de ambientes

fonte racismo à

brasileira/

gênero e número

LEIA TAMBÉM: Pela primeira vez, mais mulheres do que homens são eleitos para a Academia Brasileira de Ciências

 

Para a psicóloga, o contexto contribui para que, durante boa parte dos processos terapêuticos vivenciados por mulheres negras, o primeiro passo de acolhimento delas é aceitar que foram vítimas do racismo e que não estão apenas diante de uma intuição equivocada:

“É o momento importante em que esse sentimento é legitimado. E qual é a nossa busca dentro da psicologia? Tratamos do autoconhecimento e confirmamos que não é uma impressão, mas uma questão social que de fato nos coloca em ambientes diferentes da nossa cor e que isso nos constrange”, esclarece.

Acesse a base de dados da reportagem aqui

*Agnes Sofia Guimarães e Vitória Régia da Silva são repórteres, e Flávia Bozza Martins é analista de dados da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista, escritora e cineasta. Graduada em Comunicação Social com habilitação em jornalismo pela UFRJ, mora há oito anos no Rio de Janeiro. Faz parte da diretoria executiva e é editora-assistante multiplataforma da Gênero e Número, além de editora-chefe da Revista Capitolina. Integra a Gênero e Número desde 2017, e sua busca pela construção de uma comunicação que tenha como base as diversidades de gênero, raça e sexualidade é transversal a todas as atividades que desenvolve em rede e profissionalmente

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Justiça Reprodutiva. Já publicou em sites como Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e está à frente da equipe de comunicação do Instituto de Referência Negra Peregum. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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