Falta de políticas específicas obriga quilombolas a contato externo e aumenta risco de contágio por covid-19
Povos não têm órgão de saúde específico e não há planos direcionados para conter a pandemia; lideranças e comunidades organizam suas próprias barreiras sanitárias e soluções para evitar explosão de casos e falta de alimentação
Às margens do rio Curuá, no Pará, o sangue dos negros escravizados nas terras de Santarém ainda corre nas veias de 400 famílias. No Quilombo Pacoval, dentro dos limites do município de Alenquer, segue vivo o passado de dor e luta dos negros, que não foi amenizado pela assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Mas se naquela época a luta era por alforria e por condições dignas de viver, hoje os grilhões são invisíveis, mas não menos dolorosos. Em meio à pandemia de covid-19, quilombolas de todo o país, especialmente da Região Norte, amargam os efeitos de um país que não se preocupou em estabelecer políticas consistentes de apoio às comunidades nos últimos 132 anos, e são obrigados a estabelecer, como sempre, suas próprias regras e mecanismos para sobreviver.
Levantamento da Gênero e Número com base em informações da pesquisa Regiões de Influência das Cidades do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostra que 97% dos territórios quilombolas do país estão localizados em municípios cuja população precisa se deslocar para ter atendimentos básicos de saúde, os chamados serviços de baixa e média complexidade, que incluem consultas, exames, serviços ortopédicos e radiológicos e outros atendimentos que não impliquem internação.
Ou seja, são municípios que não oferecem todos os serviços básicos de saúde para a população, por falta de recursos humanos, financeiros ou estruturais, o que resulta na preferência ou necessidade dos moradores de ir para cidades mais próximas. Alenquer, centro urbano mais próximo de Pacoval, é um desses municípios. A população que sai da cidade busca atendimento principalmente em Santarém, no próprio estado do Pará, ou em Manaus, no Amazonas. Mas todo esse deslocamento fica mais complicado quando falamos de comunidades quilombolas que, em sua maioria, já são distantes dos centros urbanos, ainda que os menores.
Pacoval fica a cerca de 60 km do centro de Alenquer, com necessidade de barco e mais um caminho por uma estrada “terrível”. De Alenquer até Santarém são mais de 80 km. Ou seja, se um membro de alguma das 400 famílias do quilombo adoecer e precisar de cuidados mais intensos, precisa se deslocar por, no mínimo, 140 km. Essa distância, conta Edilton Pacoval, uma das lideranças quilombolas da comunidade, é fundamental para que o lugar crie e fortaleça suas próprias medidas de prevenção à covid-19. Até agora, não há nenhum caso suspeito em Pacoval.
“A nossa principal preocupação é evitar que o vírus chegue. Então, estamos desenvolvendo ações, como fechar as nossas barreiras sanitárias e orientar que somente pessoas da comunidade atravessem. Também temos uma parceria para que a Polícia Militar e a Vigilância Sanitária orientem como e quando cada estabelecimento pode funcionar”, explica.
Além disso, Edilton fala que a busca por parcerias para doações de cestas básicas também é constante, para evitar que os moradores tenham que ir até os centros urbanos. A necessidade de contato com o centro urbano, aliás, é um dos principais desafios para que os quilombolas mantenham o novo coronavírus longe das comunidades.
Muitas famílias dependem do que plantam em suas terras para sobreviver. A colheita é vendida em feiras livres e a comerciantes do centro urbano. Mas com as medidas de quarentena em vários municípios do Pará, que chegam ao lockdown (isolamento completo), o escoamento da produção ficou impossibilitado, e cada ida a um centro urbano é um risco.
A pandemia se tornou para nós o maior desafio, porque questões estruturais que já estão postas historicamente nas comunidades não foram resolvidas. — Givânia Silva, coordenadora-geral da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)
A preocupação também se estende a outras lideranças quilombolas. Também no Pará, Magno Nascimento, da Comunidade Quilombola África, no Moju, explica que a situação chega a ser ainda mais crítica em algumas comunidades. Já há a dificuldade natural de obter água potável, álcool em gel ou sabão. Mas há famílias que não conseguem se alimentar de forma alguma. “As comunidades quilombolas trabalham com extrativismo e agricultura familiar, e essa produção está atropelada. Ainda que consiga produzir, não consegue comercializar. Se não comercializa dentro da comunidade, não consegue chegar no centro urbano por causa do lockdown”, analisa Nascimento.
Enquanto aguarda esperançoso alguma política pública que seja efetiva para auxiliar as comunidades, Nascimento, que é elaborador de projetos da Malungu, a Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará, e mestre em sustentabilidade de comunidades tradicionais pela Universidade de Brasília, conta que uma vaquinha online arrecadou cerca de R$ 12 mil, e há outra a ser lançada no próximo mês. O dinheiro será direcionado para 30 comunidades quilombolas.
Exposição constante
As idas ao centro urbano, contam as lideranças, podem até ser vistas como problemáticas, mas há um momento que os moradores não conseguem evitar.
“As pessoas vão às cidades buscar políticas públicas que não existem nas comunidades e trazem o vírus. Raríssimas comunidades têm posto de saúde e, quando têm, o médico vai mensal ou trimestralmente. A saúde tem que ser buscada na cidade, a cesta básica, que a comunidade não produz, também, o serviço bancário, idem. Esses serviços são centralizados nos centros urbanos, alguns são centralizados nas capitais”, afirma Nascimento.
O mais recente boletim epidemiológico da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), de 13 de maio, mostra que já são 128 casos confirmados de quilombolas com covid-19 no Brasil, e outros 36 com suspeita de contágio seguem em monitoramento. O boletim registra ainda 21 mortes pela doença – e duas em investigação.
Desde o registro do primeiro caso de covid-19 entre quilombolas, houve um óbito a cada dois dias. Amapá (7) e Pará (5) concentram a maior parte das mortes. A situação no Amapá chama a atenção das lideranças e pode ser explicada pela proximidade dos quilombos com o centro urbano, o que promove uma maior interação com pessoas que possam levar o vírus para as comunidades. Mas todo esse cenário pode ser ainda pior. Como no resto do país, faltam testes. Além disso, não há nenhum campo de preenchimento oficial de dados da saúde que identifique se a pessoa é quilombola ou não.
E se o Ministério da Saúde sequer divulga dados com informações de cor e raça, não há qualquer menção de uma divulgação oficial sobre o impacto do novo coronavírus nos quilombos. Cabe à sociedade civil fazer esse levantamento e pleitear, a partir dele, políticas direcionadas. Para Núbia Santana, da Conaq/AP, é urgente que os governos federal e estadual e os municípios deem visibilidade à questão quilombola.
“A visibilização de quantos de nós foram afetados tem que existir e, principalmente, tem que haver políticas de saúde. As outras políticas, como saneamento básico, já estamos acostumados a não ter, então a pandemia só agravou. Tem famílias que precisam de apoio financeiro, é necessário ter mais ações de combate. As barreiras sanitárias são importantes, mas na minha comunidade, por exemplo, não é possível porque ela é cortada por uma rodovia”, avalia Santana.
Projeto de lei em prol dos quilombos
Para tentar conter os desdobramentos terríveis do novo coronavírus nas comunidades quilombolas de todo o Brasil, foi apresentado na Câmara dos Deputados o projeto de lei 2160/2020, que posteriormente foi anexado ao PL 1142/2020. O projeto prevê auxílio emergencial às comunidades quilombolas, no valor de um salário mínimo mensal por família, durante a pandemia, sem necessidade de inserção em cadastros anteriores. O texto também prevê garantia de testagem rápida nos quilombos e institucionalização das barreiras sanitárias.
Bira do Pindaré (PSB/MA) é um dos autores do projeto e também líder da Frente Parlamentar Mista em Defesa das Comunidades Quilombolas. Em entrevista à Gênero e Número, o deputado explicou que o foco nas comunidades tradicionais é porque elas têm, por si só, especificidades anteriores ao novo coronavírus.
“O que a gente propõe é atenção especial em relação ao auxílio, para garantir que essas famílias recebam. Pedimos uma atenção da Caixa Econômica a essas comunidades. Lá não tem um aparelho celular por pessoa. É preciso que haja uma ampliação, uma flexibilização em relação a esses procedimentos”, explica o parlamentar.
Além das questões mais urgentes, o deputado conta que há uma luta constante dentro do Congresso Nacional por maior atenção às políticas públicas para quilombolas. “Os indígenas têm serviço especial de atendimento à saúde, isso é previsto, está na lei e tem no Ministério da Saúde um órgão específico. Não há o mesmo para quilombolas. Não há dúvidas de que é um povo invisibilizado.”
Resquício do colonialismo
A falta de políticas públicas é uma tecla na qual a Conaq vem batendo há 24 anos. Coordenadora-geral da instituição, Givânia Silva aponta que a invisibilização dos povos tradicionais, em especial os quilombolas, é um resquício do colonialismo.
“A pandemia se tornou para nós o maior desafio, porque questões estruturais que já estão postas historicamente nas comunidades não foram resolvidas. A covid-19 só estampa um problema que estava lá, mas a doença vira uma oportunidade de dar visibilidade à ausência de políticas públicas e à forma que o Estado brasileiro majoritariamente racista se comporta junto a essas comunidades”, alerta Silva.
A coordenadora aponta os mesmos problemas narrados anteriormente: a dificuldade de estar longe dos centros urbanos, que concentram todos os serviços, e a dificuldade de alimentação, já que o escoamento da produção está impossibilitado. Ela também faz coro com Bira do Pindaré e conta que a Caixa Econômica já está ciente da necessidade de aperfeiçoar o recebimento do auxílio para comunidades distantes.
Mas, para Silva, o que efetivamente faz com que tudo relacionado ao povo quilombola seja marcado por tanta luta, vaivém e perdas é, realmente, o racismo: “A reflexão é que o Brasil só tem aprofundado, cada dia mais, seu racismo e seu colonialismo. As instituições são infectadas pelo racismo e isso prejudica, e muito, a população negra”, analisa.
Sem esquecer do impacto da covid-19 em toda a população: “O desafio já é grande para todos os brasileiros, não quero, em hipótese alguma, diminuir qualquer que seja a situação de quem está passando por este momento. Os brasileiros pobres, principalmente, porque ricos se trancam em suas casas, apesar de terem sido eles que trouxeram a doença”.
Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.
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