A ascensão do bolsonarismo resultou em um aumento de ataques à população LGBTQIA+, impulsionados sobretudo por parlamentares apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). De janeiro 2019 a junho de 2022, deputados estaduais de todo o Brasil apresentaram ao menos 122 projetos de lei que afetam negativamente esse grupo. No entanto, mesmo diante desse cenário hostil, um movimento progressista tem resistido e se manifestado nos plenários do Brasil.
Em um espécie de contra-ataque aos colegas conservadores, deputados estaduais apresentaram um total de 209 projetos de lei – cerca de quatro por mês – em defesa de direitos da população LGBTQIA+. O levantamento inédito da AgênciaDiadorim foi feito em Assembleias Legislativas de 26 estados e do Distrito Federal entre 1º de janeiro de 2019 a 5 de junho de 2023.
Dos 209 projetos de lei pró-LGBTQIA+ apresentados, 25 já foram aprovados. O primeiro deles, de autoria do deputado distrital Fábio Félix (PSOL-DF) — proposto em 26 de fevereiro de 2019 e aprovado em 25 de junho daquele mesmo ano —, instituiu conteúdos dirigidos à população LGBT na programação do Dia de Prevenção ao Suicídio do Distrito Federal. A lei foi sancionada em 8 de agosto de 2019 pelo governador Ibaneis Rocha (MDB).
O projeto aprovado mais recentemente foi no Acre, proposto em julho de 2022 e aprovado no mês seguinte, de autoria de Neném Almeida (à época, Podemos; hoje sem partido). Ele proíbe que cargos de livre nomeação e exoneração sejam ocupados por pessoas que tenham sido condenadas pelos crimes de racismo, injúria racial, homofobia ou violência doméstica e familiar contra a mulher.
A maior parte dos projetos aprovados — seis, ao todo — é voltada à instituição de datas celebrativas ou de enfrentamento à LGBTfobia. Há também quatro leis que preveem penalidades administrativas para pessoas e estabelecimentos em casos de discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Os projetos se assemelham à lei de São Paulo, em vigor desde 2001, que prevê advertências, multas e até cassação de alvará de funcionamento em caso de crimes desse tipo.
Há três leis aprovadas para cada um dos seguintes temas: implementação de mecanismos de coleta de dados, formulação de políticas públicas, medidas simbólicas (como nomear unidade de saúde em homenagem a militantes ou pessoas LGBTQIA+) e garantia do uso de nome social. Neste último caso, há uma lei pioneira do Distrito Federal, também do psolista Fábio Félix, que garante o respeito ao uso do nome social nas lápides e atestados de óbito de travestis, mulheres transexuais, homens transexuais e demais pessoas trans.
Houve também dois projetos de criação de conselhos estaduais, além de uma única lei aprovada na área de esporte, no Amapá, apresentada pela deputada estadual Cristina Almeida (PSB), que instituiu infrações administrativas por atos de racismo e LGBTfobia nos equipamentos esportivos.
Para o antropólogo Lucas Bulgarelli, o perfil de leis aprovadas na legislatura anterior, de 2019 a 2022, reflete uma estratégia parlamentar de evitar confronto com conservadores ao abordar temas relacionados à população LGBTQIA+. Ele é pesquisador-diretor do Instituto Matizes, ONG que trabalha na pesquisa e educação sobre equidade, diversidade, inclusão e direitos humanos.
“Esses projetos de lei voltados à criação de data e de medidas simbólicas são bem paradigmáticos, no sentido de que algumas Assembleias Legislativas têm dificuldade em conseguir emplacar projetos que toquem em temas mais sensíveis à população LGBTQIA+”, explica.
Dos 209 projetos de lei pró-LGBTQIA+ apresentados em cerca de quatro anos e meio, 44 foram arquivados — entre eles, seis tratavam de punições administrativas em casos de LGBTfobia e outros seis de enfrentamento à violência.
No Rio de Janeiro, por exemplo, dois PLs que tratavam da violência contra lésbicas, gays, bissexuais, trangêneros e intersexo foram arquivados. O estado aparece com frequência entre os cinco mais violentos para a população LGBTQIA+ — em 2022, compôs o quinteto tanto no dossiê de assassinatos publicado pela Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) quanto no relatório do Observatório de Mortes e Violências contra LBGTI+ no Brasil.
O alto número de arquivamento de projetos de lei nessas áreas, acredita Bulgarelli, mostra “uma certa dificuldade que a gente ainda encontra em relação ao respeito à decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que criminalizou LGBTfobia em 2019.”
Há dois anos, o Matizes realizou uma pesquisa na qual constatou 34 barreiras que impedem o reconhecimento institucional da LGBTIfobia no Brasil. “São gargalos de várias ordens, tanto mais estruturais, como também de procedimentos administrativos”, lembra o antropólogo. Há dificuldade, por exemplo, de padronização de boletins de ocorrência e de informações das secretarias de segurança pública em relação à violência contra a população LGBTQIA+.
Outros 140 projetos de lei pró-LGBTQIA+ apresentados ainda estão em tramitação nas Assembleias Legislativas do país. Eles aguardam apreciação e possíveis modificações.
Do que tratam as leis pró-LGBTQIA+
Demandas urgentes da população LGBTQIA+ norteiam a maioria dos PLs estaduais. A Diadorim os classificou de acordo com os temas, quatro são os mais recorrentes:
Dados e estatísticas: Foram identificados 26 PLs relacionados a essa área, com o objetivo de estabelecer mecanismos de coleta e disponibilização de informações sobre a população LGBTQIA+. Essa medida visa auxiliar na elaboração de políticas públicas mais efetivas;
Enfrentamento à violência: Com 24 projetos, essa área é uma das principais preocupações dos parlamentares. Os PLs visam criar medidas e ações para combater a discriminação, a intolerância e a violência baseadas em orientação sexual e identidade de gênero;
Penalidades administrativas: Os legisladores apresentaram 22 projetos relacionados a essa categoria. O intuito é estabelecer penalidades administrativas para casos de discriminação e violência contra a população LGBTQIA+, visando garantir a aplicação de medidas punitivas adequadas;
Datas e celebrações oficiais: A criação de datas e celebrações oficiais é outra área contemplada pelos projetos de lei, com 20 iniciativas. Esses PLs buscam instituir marcos importantes para a comunidade LGBTQIA+, visando o reconhecimento e a visibilidade de suas lutas e conquistas.
Há ainda grande quantidade de projetos de lei pró-LGBTQIA+ que defendem a garantia do uso do nome social por pessoas trans (15 projetos), a implementação de políticas afirmativas (14 projetos) para promover inclusão e igualdade, a melhoria das políticas de saúde para essa população (13 projetos), a possibilidade de “alteração de registro civil” para refletir a identidade de gênero (11 projetos) e o incentivo à prática esportiva inclusiva (11 projetos).
Em 2022, um levantamento de projetos de lei anti-LGBTQIA+ feito pela Diadorim mostrou que o índice de aprovação era de menos de 2%. Já entre as 209 leis pró-LGBTQIA+ propostas entre 2019 e 2023 cerca de 12% foram aprovadas.
A razão para essa diferença é que os “projetos pró-LGBT são reais”, na opinião da coordenadora da ONG VoteLGBT, Evorah Cardoso. “Eles são feitos por candidaturas que efetivamente querem fazer avançar o reconhecimento de direitos e políticas públicas e se valem do seu exercício de mandato legal para viabilizar esses direitos e essas políticas”, explica. Ao contrário das propostas contra os direitos dessa população, que “não são feitas para serem aprovadas, necessariamente”.
Segundo Evorah, “as [propostas] anti-LGBT são feitas por causa do barulho que elas geram fora das casas legislativas”. “Então se tratam de estratégias de mobilização de um eleitorado LGBTfóbico, especialmente transfóbico, em torno de agendas como defesa da criança ou defesa da família, como se LGBTs não fossem pais, não fossem crianças, não existissem famílias LGBT. Então são simulacros de projetos de lei.”
Para a coordenadora da VoteLGBT, não é possível prever quais serão os principais temas de PLs LGBTQIA+ nesta atual legislatura, mas ela defende que “seria importante que os mandatos LGBTs e pró-LGBTs atuem de forma articulada”, semelhante à estratégia de grupos conservadores. “É isso que a gente vê em relação aos parlamentares que apresentam projetos de lei anti-LGBTs.”
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Paulo é advogado e mestre em Filosofia Política pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi coordenador geral do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim) e assessor jurídico da Pastoral Carcerária Nacional. Atualmente, é coordenador executivo do Fórum Justiça e Desenvolve projetos e ações voltados para a defesa dos Direitos Humanos, com foco em políticas de acesso à justiça, sistema prisional, gênero e diversidade sexual.
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