Rio de Janeiro (RJ), 08/03/2023 - Mulheres fazem passeata no Dia Internacional da Mulher - 8M, por direitos e contra a violência e o feminicídio, no centro da cidade. Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
Abortos caem mas ainda levam 2 a cada 5 mulheres ao hospital
Entre mulheres que abortam, proporção é maior entre indígenas, segundo Pesquisa Nacional do Aborto 2021
Dados da Pesquisa Nacional de Aborto (PNA), de 2021, mostram um declínio nas hospitalizações após a interrupção voluntária da gestação. Em 2010, 55% das mulheres que realizaram um aborto foram hospitalizadas, enquanto em 2021 a proporção caiu para 43%. A proporção de mulheres que usaram medicamentos para realizar o aborto também caiu no mesmo período, de 48% para 39%.
A PNA realizou amostra apenas com pessoas identificadas como mulheres, para efeitos de comparação com o Censo, mas o aborto é um evento obstétrico comum na vida de todas as pessoas com capacidade de gestar, de todos os credos e classes sociais no Brasil.
Segundo Débora Diniz, antropológa, professora da Universidade de Brasília e uma das autoras da PNA, a estimativa é de que meio milhão de abortos tenham ocorrido no país em 2021.
Criminalizar o aborto é criminalizar uma necessidade de saúde, é perseguir, punir, mandar para a clandestinidade, para a insegurança, para o risco. O aborto é uma necessidade de saúde definida pela Organização Mundial da Saúde e políticas de saúde global”, destaca Diniz.
A antropóloga avalia que o número de abortos reduziu em países nos quais houve a descriminilização justamente porque a questão sai das delegacias e vai para o sistema de saúde. A partir deste momento, pessoas que com capacidade de gestar podem ter acesso a planejamento familiar e reprodutivo, acesso a métodos contraceptivos e acolhimento em casos de violência. Essas políticas públicas ajudam a prevenir um segundo aborto, afirma.
Apesar da queda no número de internações, possivelmente por mais acesso à informação de mulheres em condições mais privilegiadas, Helena Paro, professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU) e ginecologista do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital de Clínicas da universidade, considera alta a procura por hospitais para finalizar o aborto. A criminalização, alerta, favorece o mercado clandestino.
“Ainda é um impacto muito grande para o sistema de saúde, isso não precisaria acontecer se o tratamento medicamentoso fosse orientado por profissionais capacitados, de maneira a tranquilizar as mulheres”, defende Paro.
A ginecologista ressalta que o aborto induzido por medicamentos é tão seguro quanto o aborto cirurgico — quando realizado pelo procedimento chamado Aspiração Manual Intrauterina (AMIU).
Embora o número de abortos esteja em declínio — em 2010, 15% das entrevistada afirmaram já haver feito algum aborto; em 2021, 10% disseram o mesmo —, mais da metade das mulheres que já interromperam uma gestação o fizeram antes dos 20 anos de idade. A estimativa é que, aos 40 anos, uma de cada sete brasileiras já tenha abortado alguma vez na vida.
Dados do Ministério da Saúde levantados pela Gênero e Número corroboram a pesquisa e mostram que as hospitalizações para realização de curetagem pós-abortamento e esvaziamento do útero pós-aborto por aspiração manual intrauterina (AMIU) se concentram na faixa etária de 20 a 24 anos.
Esse procedimentos estão relacionados a diagnósticos de de aborto espontâneo, aborto por razões médicas e legais, falha de tentativa de aborto, aborto não especificado e outros tipos de aborto.
Vulnerabilidade reduz acesso a métodos contraceptivos
A PNA aponta que os índices mais altos de aborto são detectados entre pessoas negras e indígenas, com nível de escolaridade mais baixo, residentes de áreas mais pobres. A precariedade nos serviços de assistência em saúde nesses locais, a falta de educação sexual nas escolas e de acesso a métodos contraceptivos, além da convivência com a violência dentro de casa e nas relações, são alguns dos aspectos que explicam esta realidade, segundo especialistas.
A epidemiologista, pesquisadora associada do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz/Bahia e pesquisadora da Associação de Pesquisa Iyaleta, Emanuelle Goes, que estuda racismo e justiça reprodutiva acredita que o primeiro aborto ocorre na adolescência e em contexto de violência sexual. “As meninas negras são vítimas mais frequentes de violência sexual e engravidam em decorrência disso”, avalia Goes.
Boa parte dessas vítimas, com até 14 anos, deveria ter acesso ao aborto legal, uma vez que qualquer ato de conotação sexual mantido com crianças ou adolescentes até essa idade é considerado estupro de vulnerável por lei. No entanto, o acesso ao direito, em alguns casos, é negado pelo próprio serviço de saúde ou por intervenção judicial.
“É importante mostrar o quanto as mulheres não conseguem acessar um planejamento reprodutivo de qualidade ou o quanto a violência sexual está no cotidiano delas, impactando o seu percurso reprodutivo”, completa a Goes.
Aborto é questão de saúde
Segundo Helena Paro, ainda que todas as pessoas tivessem acesso aos métodos contraceptivos eficazes, haveria casos de falha dos métodos, o que demanda debater o aborto como uma questão de saúde.
“Uma pessoa que tem planos e projetos de vida precisa ter autonomia para poder decidir e seguir ou não com seus projetos a partir de uma gravidez não desejada. A gente precisa falar com mais tranquilidade e menos estigma para que as pessoas possam compreender o aborto como uma necessidade de saúde, que é o que ele é”, aponta Paro.
A ginecologista e obstetra Ana Teresa Derraik Barbosa, fundadora do Nosso Instituto, organização com projetos sociais e educativos focados em direitos sexuais e reprodutivos, complementa que a gravidez indesejada, especialmente na adolescência e na juventude, pode alimentar o ciclo de pobreza e, por consequência, motivar que a história se repita nas gerações subsequentes.
“A probabilidade de ela [gestante adolescente] sair da escola por conta da gravidez e da criança que nasce é enorme. Ela fica sem escola, com fatias menos nobres no mercado de trabalho e mais dependente da família parental, dos programas de governo e do parceiro violento”, avalia Barbosa.
A PNA 2021 teve como método a pesquisa domiciliar. As entrevistas foram conduzidas com uma amostra de 2 mil mulheres, representativa de mulheres alfabetizadas com idades de 18 a 39 anos e residentes de áreas urbanas. O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Ciências Humanas e Sociais (CEP/CHS) da Universidade de Brasília (UnB).
Os resultados foram obtidos pela Gênero e Número na fase do prelo, que antecede a publicação. O estudo já está disponível na Revista Ciência e Saúde Coletiva, da Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Essa é a terceira onda da pesquisa, que também foi aplicada em 2010 e 2016.
Quem leu essa Reportagem também viu:
Direitos reprodutivos
Aborto inseguro afasta Brasil de meta da redução da mortalidade materna
Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.
Olindense que adotou o Rio para viver. Integra a Gênero e Número a partir de 2023. Atua como pesquisadora e analista de dados com foco em gênero, saúde e direitos reprodutivos, fecundidade, educação e violência. Já colaborou com o Ipea como assistente de pesquisa e analista de dados, e foi assessora de comunicação na SMS/Camaragibe. Doutoranda em Demografia no Cedeplar (UFMG), mestre em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), especialista em Programas e Projetos Sociais (UNICAP) e Jornalista pela UFPE, atualmente, é graduanda em Estatística também na ENCE.
Se você chegou até aqui, apoie nosso trabalho.
Você é fundamental para seguirmos com o nosso trabalho, produzindo o jornalismo urgente que fazemos, que revela, com análises, dados e contexto, as questões críticas das desigualdades de raça e de gênero no país.
Somos jornalistas, designers, cientistas de dados e pesquisadoras que produzem informação de qualidade para embasar discursos de mudança. São muitos padrões e estereótipos que precisam ser desnaturalizados.
A Gênero e Número é uma empresa social sem fins lucrativos que não coleta seus dados, não vende anúncio para garantir independência editorial e não atende a interesses de grandes empresas de mídia.