Lei de paridade de gênero no México mostra caminho para nova política
Em 20 anos, o México saiu de menos de 20% de mulheres na Câmara e no Senado para a paridade no Congresso, o que só foi possível com o enfrentamento à desobediência dos partidos e a evolução de políticas de cotas de candidatura para a reivindicação pela paridade
Por Giulliana Bianconi, com Marilia Ferrari e Victoria Sacagami*
Aprovada por unanimidade há pouco mais de dois anos na Câmara e no Senado mexicanos, a Reforma Constitucional mais recente do país definiu que a busca pela paridade de gênero alcançaria os três poderes, os três níveis do poder Executivo e ainda organismos públicos autônomos, como o Banco do México e o Instituto Nacional de Estatística e Geografia. Quando as feministas comemoraram a “paridad en todo” (paridade em tudo), como ficou conhecida a mudança aprovada em 2019, o Congresso já vivenciava na prática algo inédito em relação à representatividade feminina: a primeira legislatura com paridade na Câmara e no Senado, que estava em curso, pois nas eleições de 2018 as mulheres haviam chegado a 49,3% na Câmara e a 49,2% no Senado. O avanço entre a Reforma de 2014 – que definiu a paridade para o Legislativo – e a de 2019, que transversalizou a decisão, foi possível porque já havia uma paridade no Congresso no momento dessa segunda votação, e portanto havia um expressivo número de mulheres parlamentares que, dentro da estrutura, eleitas, agora pressionavam pelo equilíbrio também no Executivo e no Judiciário.
Hoje, pós-eleições 2022, a representatividade feminina na Câmara já alcança 49,6% – o Senado não passou por novo pleito ainda. Para explicar como em 20 anos o México saiu de 16,6% de mulheres na Câmara para a paridade, o Instituto Alziras realizou uma extensa pesquisa documental, promoveu laboratórios neste ano que reuniram mulheres latinas que estão fazendo, discutindo e imaginando a política e produziu o relatório “A paridade de Gênero no México”, que abre a série de estudos no recém-lançado site do Convergências Democráticas. A publicação traz uma análise de como caminhou a legislação, mostrando que não foi um processo linear de ascensão numérica eleição a eleição desde que foram estabelecidas as primeiras políticas de cotas. A Gênero e Número destaca também, em série no site, o contexto das conquistas tratadas nos relatórios: primeiro México, em seguida Chile e, por fim, Bolívia.
Diferente da maior parte dos países latino-americanos, o México não passou nem por um golpe, nem por uma ditadura militar na segunda metade do século XX. Isso não quer dizer que não tenha atravessado anos de autoritarismo e governos não democráticos, tendo em vista que por aproximadamente 70 anos apenas um partido político governou o país.
Em relação ao Brasil, é interessante perceber a similaridade que havia no debate e nas articulações feministas nos anos 90 nos dois países para a criação e implementação de cotas mínimas de candidaturas. Os 30% de reserva para candidaturas de mulheres, assim como no Brasil, foram também implementados no México, e em 2008, com o novo Código Federal de Instituições Políticas e Processos Eleitorais (COFIPE), a nova reserva definida foi de 40%. Mas até as eleições de 2009, as mulheres ainda eram 27,8% das eleitas na Câmara do México. No estudo é possível entender que ausência de cotas para candidaturas de maioria simples e o fato de não existir até aquele ano regra alguma que definisse que titulares e suplentes deveriam ser do mesmo gênero davam brechas para que os partidos burlassem a legislação. Após o “Escândalo das Juanitas”, nas eleições de 2009, quando parte das mulheres eleitas cedeu a cadeira para os suplentes homens, a discussão ganhou outro rumo. As políticas que falavam em paridade, e não somente cotas, que já vinham em discussão desde o início dos anos 2000, ganharam argumentos, mas não contaram com o comprometimento do Instituto Federal Eleitoral (IFE), que repetiu as mesmas regras para as eleições seguintes. Foi com a entrada da Rede Mulheres no Plural (RMP) no Tribunal Eleitoral do Poder Judicial da Federação (TEPJF), como narra o estudo “A Paridade de Gênero no México”, que o cumprimento da legislação pelo IFE aconteceu. Com o enfrentamento aos partidos, que tiveram suas listas recusadas e tiveram que se adequar a lei, foi possível caminhar até a Lei de Paridade de Gênero para o Legislativo, em 2014, após dezenas de proposições.
A escalada até a paridade na Câmara e Senado mexicanos
Evolução da participação feminina no legislativo se consolidou
com Reforma Constitucional de 2014
SENADO
CÂMARA
Porcentagem
de mulheres
100%
0
50%
13,3%
mulheres
1997
17,2%
Candidatas a deputadas por representação proporcional foram colocadas no final das listas de candidaturas,
em posições inelegíveis.
A representação caiu.
98
99
16,6%
2000
01
02
Listas de candidaturas passaram a ser preenchidas de forma alternada, com pelo menos uma mulher a cada dois homens.
2003
23%
04
05
17,9%
Começam a surgir proposições legislativas que incluem paridade.
Novo Código Federal de Instituições Políticas e Processos Eleitorais define cota de 40% para candida- turas de mulheres a cargos proporcionais.
2006
21,6%
07
08
27,8%
2009
“Escândalo das Juanitas”: mulheres eleitas renuncia- vam para que suplentes homens assumissem.
10
11
32,8%
Pela primeira vez as mulheres ultrapassaram os 30%
2012
Reforma Constitucional 2014 regula a paridade de gênero para as candidaturas ao legislativo.
37%
13
Primeiras eleições em que as
listas de candidaturas
apresentadas pelos partidos
que não cumpriam a
legislação foram rejeitadas
pelo Tribunal Eleitoral.
14
México se junta a Equador e Bolívia ao constitucionalizar o princípio de paridade de gênero na política.
42,6%
2015
16
Partidos tiveram que cumprir
com as cotas nas candida-
turas por representação
proporcional e maioria
simples e apresentar titular e
suplente do mesmo gênero.
17
Foram aplicadas as leis
de paridade de gênero em eleições para o Senado.
49,2%
2018
49,3%
19
Paridade em Tudo: Aprovada por unanimidade a Reforma Constitucional de Paridade de Gênero nos Órgãos do Estado.
Foram aplicados os 40% de
cotas de candidaturas para
candidatos/as ao Senado
pelo princípio proporcional.
20
49,6%
2021
fonte relatório “A paridade de Gênero no México/Instituto Alziras”
A escalada até a paridade na Câmara e Senado mexicanos
Evolução da participação feminina no legislativo se consolidou com Reforma Constitucional de 2014
SENADO
CÂMARA
Porcentagem
de mulheres
0
50%
100%
13,3%
mulheres
1997
17,2%
98
Candidatas a deputa
das por representação
proporcional foram
colocadas no final das
listas de candidaturas,
em posições inelegí
veis. A representação
caiu.
99
2000
16,6%
01
02
Listas de candidaturas
passaram a ser preen
chidas de forma alter
nada, com pelo menos
uma mulher a cada
dois homens.
2003
23%
04
Começam a surgir
proposições legisla
tivas que incluem
paridade.
05
17,9%
2006
Novo Código Federal
de Instituições Políti
cas e Processos
Eleitorais define cota
de 40% para candida-
turas de mulheres a
cargos proporcionais.
21,6%
07
08
27,8%
“Escândalo das Juani
tas”: mulheres eleitas
renuncia- vam para
que suplentes
homens assumissem.
2009
10
11
32,8%
Pela primeira vez as
mulheres ultrapassa
ram os 30%*
2012
37%
13
Reforma Constitucio
nal 2014 regula a
paridade de gênero
para as candidaturas
ao legislativo.
14
42,6%
2015
México se junta a
Equador e Bolívia ao
constitucionalizar o
princípio de paridade
de gênero na política.
16
17
Foram aplicadas as
leis de paridade de
gênero em eleições
para o Senado.
49,2%
2018
49,3%
19
20
Paridade em Tudo:
Aprovada por unani
midade a Reforma
Constitucional de
Paridade de Gênero
nos Órgãos do
Estado.
2021
49,6%
*2012+
Primeiras eleições em que as listas de candidaturas
apresentadas pelos partidos que não cumpriam a
legislação foram rejeitadas pelo Tribunal Eleitoral.
Partidos tiveram que cumprir com as cotas nas candida- turas por representação proporcional e maioria simples e apresentar titular e suplente do mesmo gênero.
Foram aplicados os 40% de cotas de candidaturas para candidatos/as ao Senado pelo princípio proporcional.
fonte relatório “A paridade de Gênero no México/Instituto Alziras”
O caminho para a maior representatividade política das mulheres no México ganhou rumos bem diferentes do que vimos no Brasil desde os anos 90. É, sem dúvida, um modelo bem-sucedido de adequação da dinâmica dos partidos, um ponto-chave para a mudança nas estruturas predominantemente masculinas. No Brasil, a representatividade feminina na Câmara atualmente é de 15%. No Senado, 14,8%. A primeira Lei que recomendava a reserva de 30% de vagas é de 1997. Na Minirreforma Eleitoral de 2009, a recomendação da reserva foi substituída pela indicação obrigatória do preenchimento de 30%, pois em 12 anos, desde a primeira lei, a representatividade na Câmara havia aumentado pouco mais de 2%. Desde 2009 até aqui, o avanço foi de apenas 6%.
“A sub-representação das mulheres no poder no Brasil é parte de uma política institucional sobre a presença das mulheres nas casas legislativas e nos executivos. Política essa que está expressa na ação dos partidos, com processos desiguais de recrutamento, apoio e destinação de recursos financeiros para campanhas, e também na ação do legislalador, que é pouco responsivo às dificuldades para o acesso das mulheres, mantendo a reserva de candidaturas por gênero em no mínimo 30%, enquanto, por outro lado, confere anistia aos partidos que descumprem as cotas. O México nos ensina que é preciso combinar legislação que obrigue e sanção que seja aplicada. Ou seja, é preciso compromisso real para que possamos atingir ao menos 30% dos eleitos por gênero”, analisa a coordenadora do Convergências Políticas e codiretora do Instituto Alziras, Roberta Eugênio. Nos últimos anos no Brasil houve tentativas lideradas por parlamentares e juristas feministas de promover legislação que garantisse reserva de cadeira, em vez de reserva de candidatura, como a PEC 134/2005, que propôs reserva de 16% das cadeiras no Legislativo federal, estaduais e municipais para mulheres, mas não avança. Paralelamente à busca por uma mudança mais robusta, o Tribunal Superior Eleitoral tem trabalhado eleição a eleição para evitar o fenômeno das candidaturas laranjas, fraudes que existem apenas para o cumprimento de cotas.
Os estudos que compõe a série Convergências Democráticas na América Latina pretendem contribuir com o resgate da história por maior representação das mulheres e outras minorias sociais nos países caso, através de uma análise atenta aos movimentos e ações estratégicas que impulsionaram a representação política em seus modelos para a tão sonhada paridade de gênero- que aqui, também esperamos, que ocorra englobando raça.
A reserva de vagas e a paridade de gênero ainda são assuntos sem tração no atual sistema político. Em vez disso, parlamentares que não reconhecem a urgência da maior representatividade feminina propõem no Congresso reserva de cadeiras no teto de 15% (PL 1951/2021), com projeção de alcance dos 30% somente em 2038.
Fora do Congresso, muita articulação acontece. Na sociedade civil brasileira, as iniciativas para apoiar mulheres candidatas são muitas e consistentes, como o Im.Pulsa, o Mulheres Negras Decidem, o Vote Nelas, o Vote LGBT+, o Tenda das Candidatas e o Vamos Juntas. A coordenadora do Im.pulsa, Danyelle Fioravanti, observa que eleger mais mulheres é importante também para melhorar as condições das mulheres que decidiram entrar na política, para que elas permaneçam no campo. “Vimos neste ano que muitas mandatárias não estão indo para o segundo mandato, não vão concorrer, isso nos confirma que é muito difícil estar nessa política onde câmaras ainda têm baixa representatividade feminina”, analisa Fioravanti.
No Im.pulsa, o trabalho é oferecer ferramentas online continuamente na plataforma. O conteúdo vem sendo desenvolvido para alcançar outros países da América Latina, além do Brasil, e já se estende a México, Argentina, Chile e Colômbia. Para que esse conteúdo seja, de fato, útil e conectado à realidade das mulheres, é pensado a partir da coletividade. A primeira leva foi resultado da convergência de mais de uma dezena de organizações e grupos: Allma, Atados, Bancada Ativista, Coletivo MASSA, Cria Preta, Goianas na Urna, Instituto Casa Mãe, Juventude Negra Política, Legisla Brasil, Me Farei Ouvir, Muitas, Pavio Criativo, Puxadinho e Vote Nelas.
“Também lançamos editais para promover formação presencial e promover a linguagem política, dar visibilidade e remunerar mulheres que estudam política”, conta Fioravanti. A proposta é se consolidar como uma comunidade e uma rede que engaja mulheres também na produção de conhecimentos sobre política. No momento, há edital aberto para mulheres que queiram propor conteúdos.
Maior representatividade ainda não garante fim da violência
Nas eleições mexicanas de 2018, quando finalmente a paridade de gênero foi alcançada no Congresso, após uma longa jornada feminista que começou com as cotas de candidaturas e se estendeu por mais de 20 anos mobilizando os campos político e jurídico, ainda havia dados alarmantes a serem discutidos: os de violência política contra as mulheres. De acordo com o livro “Perspectiva de Género en México”, publicado ano passado por pesquisadoras e parlamentares do país, “os processos eleitorais de 2017-2018 foram os mais violentos no nosso país até o momento e foram apresentadas entre 106 e 185 agressões contra mulheres que adentraram a política”.
O estudo “A paridade de Gênero no México” destaca que diante desse cenário, foi aprovado no México, em 2020, um decreto com reforma da “Ley General de Acceso de Las Mujeres a Una Vida Libre de Violencia” (Lei Geral de Acesso das Mulheres a Uma Vida Livre de Violência, incluindo), que traz capítulo específico da violência política contra as mulheres, o que faz com que o país tenha, portanto, além das políticas de paridade uma lei tipifica o crime de violência política contra as mulheres. A lição mais recente do país para a América Latina, portanto, é que violência política contra as mulheres é assunto que precisa ser encarado separadamente ao debate e aos avanços da ocupação das cadeiras do poder pelas mulheres.
É jornalista pela Universidade Federal de Pernambuco, cofundadora e diretora da Gênero e Número. Atualmente também se dedica a pesquisar e a escrever sobre movimentos de mulheres e sobre desigualdades de gênero e raça na América Latina. Possui especialização em Política e Relações Internacionais pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo.
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