No próximo 4 de setembro, o Chile realiza um plebiscito que pode aprovar a primeira Constituição da história redigida por uma assembleia paritária, onde homens e mulheres ocupam cargos na mesma proporção. O novo texto foi escrito por 155 constituintes, 17 deles indígenas.
A experiência única no mundo já era imaginada por movimentos sociais desde o início do século XXI. Nas eleições de 2013, o movimento Marca AC convocou o eleitorado a escrever no canto da cédula de votação a reivindicação de uma Assembleia Constituinte (AC). Mas foi a onda de protestos iniciada em outubro de 2019 que acelerou o processo de substituição da Carta Magna do país.
A história dessa articulação, que entregou uma constituinte paritária e com reserva de vagas para povos originários do que hoje é o Chile, é contada no relatório “A paridade de gênero na Convenção Constitucional Chilena 2021-2022”, o terceiro da série de estudos do projeto Convergências Democráticas América Latina.
Outra forma de lutar
“Evadir, no pagar, otra forma de luchar”. Uma busca rápida na internet mostra uma série de vídeos do início da onda de protestos de outubro de 2019 no Chile, conhecida como Estallido social (Explosão social). O grito entoado por jovens com uniformes escolares convocava a população a não pagar passagem no transporte público da capital, Santiago, depois do aumento de preço anunciado no início daquele mês.
Em um dos vídeos mais famosos das primeiras manifestações, uma câmera filma quatro policiais dentro de uma estação de metrô. Eles observam as grades que impedem a entrada de um grupo de pessoas que grita do lado de fora enquanto tenta derrubar o portão. Quando conseguem, dezenas de estudantes – a maioria feminina – descem as escadas com suas mochilas nas costas e se organizam para pular as catracas e deixar seu recado: não pagar era a forma de lutar.
O então presidente, o neoliberal Sebastián Piñera, respondeu ao protestos com repressão e um decreto de estado de emergência. Antes de terminar outubro, uma mensagem de áudio enviada a amigos por Cecilia Morel, primeira-dama naquele momento, foi vazada. Era possível ouvi-la dizer que as manifestações pareciam “uma invasão estrangeira ou alienígena” e que ela e seus interlocutores teriam que “diminuir nossos privilégios e compartilhar com os demais”.
Ali manifestantes já começavam a relatar a violência policial. Ao Instituto Nacional de Direitos Humanos (INDH), 3.526 pessoas denunciaram violações por parte das forças de segurança e militares. 526 denúncias foram por violência sexual.
Entre as denúncias, constam casos em que as mulheres eram obrigadas a despir-se em delegacias ou quartéis, abuso sexual, estupro e ameaças de estupro, além de lésbicas serem colocadas em celas masculinas para serem estupradas. As mulheres também denunciaram policiais e militares por realizarem insultos e utilizarem linguagem sexista (ONU, 2019).”
Em 15 de novembro de 2019, governo e oposição assinaram o Acordo pela Paz Social e a Nova Constituição. O documento de 12 pontos previa para abril de 2020 um plebiscito sobre a redação de um novo texto constitucional para o país, onde ainda vigora — com reformas — a Constituição de 1980, elaborada durante a ditadura militar (1973 —1990).
Adiado pela pandemia, o plebiscito sobre a nova Constituição foi realizado em outubro de 2020. Nele, 78% do eleitorado chileno optou por uma nova Carta e 79% de votantes decidiram que o novo texto deveria ser redigido por uma Convenção Constitucional eleita especialmente para a tarefa.
Quando foram votar, chilenos e chilenas já sabiam que, caso aprovada, a conformação de uma Convenção Constitucional seria paritária. A lei 21.216, aprovada em março de 2020 pelo Congresso, emendou a Constituição atual para garantir mecanismos de correção e distribuição equitativa dos cargos de constituinte.
A regras da Constituinte do Chile
Paritário, feminista e plurinacional, o grupo redigiu a proposta de nova Constituição
artigo 1
Define a Convenção Constitucional como uma assembleia representativa, paritária e plurinacional
=
artigo 3
Perspectiva de gênero e a abordagem feminista durante o debate
• pessoas com
deficiência
• diferentes
orientações sexuais
• identidades de
gênero diversas
Determina o uso de linguagem não sexista que facilite a comunicação com:
Reconhece a existência de trabalhos não remunerados de cuidado e determina que sejam levados em consideração para garantir a participação plena no debate das constituintes.
artigo 11
Determina que o uso da palavra e os tempos destinados aos e às constituintes devem ser distribuídos de acordo com os critérios de paridade.
artigo 28
Determina que em caso de licença ou afastamento da/o constituinte titular, uma pessoa do mesmo gênero assuma o cargo.
mesmo
gênero
mesmo
gênero
artigo 30
Determina que as jornadas de trabalho da Convenção Constitucional sejam pensadas para garantir a participação de pessoas responsáveis pelo cuidado de outras.
Determina organização com antecedência e respeito aos horários pactuados para começo e fim das sessões.
artigo 32
Determina que todos os organismos da Convenção são paritários e que homens cis não podem superar 60% dos integrantes em de nenhum deles. Essa regra não se aplica a mulheres e outras identidades de gênero.
máximo de
60%
homens
fonte Convenção Constitucional do Chile
A regras da Constituinte do Chile
Paritário, feminista e plurinacional, o grupo redigiu a proposta de nova Constituição
artigo 1
Define a Convenção Constitucional como uma assembleia representativa, paritária e plurinacional
=
artigo 3
Perspectiva de gênero e a abordagem feminista durante o debate
Determina o uso de linguagem não sexista que facilite a comunicação com:
• pessoas com
deficiência
• diferentes
orientações sexuais
• identidades de
gênero diversas
Reconhece a existência de trabalhos não remunerados de cuidado e determina que sejam levados em consideração para garantir a participação plena no debate das constituintes.
artigo 11
Determina que o uso da palavra e os tempos destinados aos e às constituintes devem ser distribuídos de acordo com os critérios de paridade.
artigo 28
Determina que em caso de licença ou afastamento da/o constituinte titular, uma pessoa do mesmo gênero assuma o cargo.
mesmo
gênero
mesmo
gênero
artigo 30
Determina que as jornadas de trabalho da Convenção Constitucional sejam pensadas para garantir a participação de pessoas responsáveis pelo cuidado de outras.
Determina organização com antecedência e respeito aos horários pactuados para começo e fim das sessões.
artigo 32
Determina que todos os organismos da Convenção são paritários e que homens cis não podem superar 60% dos integrantes em de nenhum deles. Essa regra não se aplica a mulheres e outras identidades de gênero.
homens
máximo de
60%
fonte Convenção
Constitucional do Chile
Cotas x paridade
Javiera Arce-Riffo, cientista política e uma das autoras da fórmula de paridade para a Convenção Constitucional, aponta para o pouco impacto da cota de 40% para candidatas mulheres, aprovada em 2015 pelo governo de Michele Bachelet junto com uma reforma eleitoral.
Assim como no Brasil, a resistência dentro dos partidos chilenos em apresentar candidatas competitivas acabou por impulsionar candidaturas laranja, em que mulheres eram sub financiadas ou concorriam sem o devido apoio que permitisse sua eleição.
“No mundo inteiro, os partidos são os principais responsáveis pela sub-representação das mulheres na política institucional. Por isso é importante instalar mecanismos de cotas ou de paridade intensos, que obriguem as siglas e propor uma boa oferta de candidaturas, mas também a corrigir as instituições informais que influenciam a apresentação dessas candidaturas”, aponta a cientista política.
O que Arce-Riffo chama de instituições informais nos partidos são as regras de funcionamento que não estão necessariamente escritas, mas que estabelecem rotinas pensadas com viés de gênero e determinam quem define os nomes de candidatos e candidatas e quais serão os critérios para posicioná-los diante de uma eleição.
“As mulheres ficam em esferas inferiores dos partidos. Muitas vezes, quando avançam e não respondem às expectativas de submissão, são retiradas de lugares de maior poder com práticas misóginas. Uma delas é a escolha de horários para reuniões em que as mulheres responsáveis pelos cuidados de outras pessoas não podem participar. Além disso, a palavra final sobre candidaturas fica concentrada sempre nos mesmos homens dos partidos”, pontua.
Por isso, Arce-Riffo acredita que a paridade na Convenção Constitucional aconteceu também porque o humor social mudou no Chile, com a crise de representatividade e o desgaste da imagem dos partidos políticos. “Nós já vínhamos pensando uma fórmula de paridade, mas se os movimentos feministas não estivessem tão fortes, não teríamos conseguido aprová-la”, avalia.
O fortalecimento dos movimentos feministas em torno da pauta de direitos reprodutivos a partir de 2008 trouxe para a explosão social de 2019 a perspectiva de gênero e as demandas se moldaram com as mobilizações pelo direito ao aborto legal.
“Havia uma sensação de impotência muito grande de não ter acesso a nenhum tipo de interrupção legal da gravidez. Mas depois surgem outras demandas, que deixam em evidência as desigualdades sociais. Os próprios movimentos entendem que o aborto legal não é suficiente quando você é vítima de violência. Além disso, a demanda pela legalização do aborto tem um marcador de classe, porque sabemos que as ricas abortam em clínicas particulares e as pobres morrem”, relembra a cientista política.
Apesar das diferenças entre o sistema eleitoral brasileiro e o chileno, onde é possível lançar candidaturas avulsas e candidatos competem dentro de uma lista, o Brasil deve olhar com atenção para as movimentações políticas do país andino.
É o que indica Carolina Stuchi, uma das supervisoras do estudo “A paridade de gênero na Convenção Constitucional Chilena 2021-2022” e coordenadora do Legislativas – grupo de estudos sobre política e gênero (UFABC).
Mesmo com contextos diferentes, a experiência chilena nos dá algumas pistas sobre como avançar na representatividade das mulheres no Brasil, como a necessidade de fortalecer essa agenda dentro dos movimentos sociais, em especial os feministas, para que as eventuais propostas de paridade tenham sustentação política”, defende.
Stuchi também avalia que as estruturas e práticas dos partidos políticos são uma barreira para o crescimento de candidaturas femininas e lembra que, no Chile, a maioria das mulheres eleitas para a Convenção eram independentes. No entanto, ela não acredita que o modelo de candidaturas avulsas seja a solução para o Brasil. “As estruturas partidárias e o financiamento de campanha precisam ser repensados.”
Regulamento com perspectiva de gênero
O relatório do Instituto Alziras reconstruiu detalhadamente como os regulamentos para o funcionamento da Convenção Constitucional moldaram os trabalhos de maneira que a paridade não se restringisse à quantidade de eleitos e eleitas para os cargos, mas também à distribuição da palavra durante os debates e dos cargos.
O Regulamento Geral da Convenção Constitucional, em seu primeiro artigo, define o organismo como uma assembleia representativa, paritária e plurinacional. Outros cinco artigos preveem mecanismos que buscam garantir a participação de todos os representantes com atenção especial às iniquidades de gênero que, muitas vezes, dificultam o acesso de mulheres a esferas decisórias da política institucional.
O artigo 30, por exemplo, determina que as jornadas de trabalho sejam pensadas também para constituintes responsáveis pelos cuidados de outras pessoas — trabalho desproporcionalmente realizado por mulheres. Nesse sentido, prevê respeito aos horários de começo e fim das sessões e organização antecipada do calendário.
Já o artigo 32 estabelece um máximo de 60% de homens cis em qualquer órgão da Convenção e exime mulheres e outras identidades de gênero de seguir a mesma regra, em reconhecimento das desigualdades de gênero históricas no acesso a cargos eletivos.
“O que nós queríamos com a paridade não é somente que haja um número igual de homens e mulheres redigindo a Constituição. Nós também buscávamos uma representação real de interesses, ou seja, queríamos feministas nas listas. E funcionou, elas chegaram lá graças ao seu poder de mobilização”, comemora Arce-Riffo.
Jornalista formada pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECo-UFRJ), colabora com a Gênero e Número desde 2017. Metade tijucana e metade porteña, cobre política latino-americana desde 2013, com foco em direitos humanos, feminismos, gênero e raça. Foi correspondente de Opera Mundi em Buenos Aires, co-editora da Revista Geni, publicação independente sobre gênero e sexualidades e colunista da FM La Tribu, rádio independente com sede em Buenos Aires. Já publicou em UOL, Marie Claire, The Brazilian Report e Brasil de Fato. Também cuida de criança todos os dias.
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