Foram abertos 6.324 boletins de ocorrência por intolerância religiosa nos últimos dois anos |Foto: Clara Nascimento

Oito casos de intolerância religiosa são denunciados por dia em São Paulo

Estado registrou mais de 6 mil casos em 2017 e 2018 e, embora boletins de ocorrência não especifiquem a religião das vítimas, Secretaria de Justiça afirma que, assim como no resto do Brasil, religiões de matriz africana são os principais alvos

Por Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

A cada dia, foram registrados, em média, oito casos de intolerância religiosa no estado de São Paulo em 2018, segundo dados da Secretaria de Segurança, disponibilizados via Lei de Acesso à Informação (LAI) à Gênero e Número. Foram abertos 6.324 boletins de ocorrência nos últimos dois anos: 3.070 em 2017 e 3.254 no ano passado, representando um aumento de 6%. Somente em 2018, de acordo com os números da pasta, metade dos casos foram classificados como injúria (art. 140 do Código Penal) e 16% como difamação (art.139). Em nota, a Secretaria de Segurança Pública informou que a criação de um campo específico nos registros de ocorrência para reportar se o caso foi relacionado à intolerância religiosa permite mais precisão nas notificações.

Apesar de os dados não discriminarem a religião das vítimas, segundo o secretário da Justiça e Cidadania, Paulo Dimas Debellis Mascaretti, as religiões de matriz africana são as que mais sofrem esse tipo de preconceito e discriminação. A avaliação de Mascaretti se alinha com os dados do Disque 100 analisados pela Gênero e Número e pelo DataLabe na reportagem especial “Terreiros na mira”, publicada na semana passada. Os números do serviço do governo federal para denúncias relacionadas a direitos humanos revelam que 59% do total de casos registrados de 2011 a junho de 2018 são referentes a religiões de matriz africana, como a umbanda e o candomblé. O estado de São Paulo é o segundo com maior número de denúncias (95), atrás apenas do Rio de Janeiro (177).

Sandra Santos, presidente Associação Umbandista e Espiritualista do Estado de São Paulo (AUEESP), alerta que apesar da grande quantidade de casos os números em São Paulo podem ser ainda mais elevados. “Infelizmente [a intolerância]  já faz parte do cotidiano. E o que mais nos incomoda é que ainda pode haver uma subnotificação, já que muitos casos não são lavrados como ‘intolerância religiosa’, e sim como conflitos entre vizinhos, perturbação da ordem, ameaça, calúnia, difamação ou injúria”, comenta.

Em declaração conjunta, a Associação Paulista de Umbanda, o Primado Organização Federativa de Umbanda  e Candomblé do Brasil, a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, a União Regional Umbandista da Zona Oeste da Grande São Paulo e a Federação de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo destacam que as religiões de matriz africana ainda não recebem a indispensável proteção do Estado brasileiro e que os templos são submetidos à sistemática perseguição em todo o território:

“A intolerância religiosa contra as religiões de matriz africana vem do tempo da escravidão e simplesmente por serem religiões oriundas da África. O crescente número de [igrejas] neopentecostais tem pesado muito, juntamente com bancadas evangélicas na política, que proliferaram assustadoramente”.

Intolerância gera receio na autodeclaração

Ao mesmo tempo em que crescem as denúncias de violência, as religiões afro-brasileiras registraram crescimento de 43,8% de 2000 a 2010 no número de adeptos na capital paulista, de acordo com o estudo “Diversidade Étnico-racial e Pluralismo Religioso no Município de São Paulo”, publicado pela Prefeitura em dezembro de 2016.

Entre as religiões afro-brasileiras, o maior número de fiéis está concentrado na umbanda e no candomblé. Ao todo, 50.794 pessoas declararam professar a primeira religião, 18.058, a segunda, e 854 de outras religiosidades afro-brasileiras. O número aparentemente baixo em relação às outras religiões tem explicação: “Muitos de seus fiéis preferem não se identificar publicamente por receio de discriminação religiosa”, diz o estudo.

A deputada estadual Leci Brandão (PCdoB) apresentou o Projeto de Lei 226/2017, que penaliza casos de discriminação por motivo religioso. A multa por reincidência pode chegar a R$ 77 mil. O projeto ainda tramita na Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Segundo o secretário Mascaretti, a aprovação desse projeto de lei é importante porque seria mais uma possibilidade de punição nos casos de intolerância religiosa.

Em março deste ano, a Secretaria de Justiça e Cidadania lançou a campanha “Respeitar o próximo é cultivar a paz”, para conscientizar que intolerância religiosa é crime e estimular as denúncias. A campanha dialoga com o Fórum Inter-Religioso para uma Cultura de Paz e Liberdade de Crença, também da Secretaria da Justiça, criado por lei para implantar políticas de enfrentamento e combate à intolerância religiosa. O grupo tem 101 membros, entre eles, representantes de 22 segmentos religiosos, e pessoas indicadas pelo poder público e pela sociedade civil. O Fórum também recebe denúncias de intolerância religiosa pelos telefones (11) 3291-2624 e 3291-2631 ou pelo e-mail denunciaintoleranciareligiosa@justica.sp.gov.br.

* Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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