No Nordeste, prefeituras não executam recursos destinados à agricultura familiar pelo PNAE
Compras para a merenda de estudantes não foram realizadas ou não atingiram mínimo de 30% garantido pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) em municípios de Pernambuco e Piauí
Levantamento exclusivo da Gênero e Número mostra que, mesmo com a retomada das aulas presenciais em 2022, nos municípios de Camutanga e São José do Egito, em Pernambuco, e São Raimundo Nonato, no Piauí, as compras da agricultura familiar para a merenda de estudantes não foram realizadas ou não atingiram o mínimo de 30% garantido pelo Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE).
A reportagem identificou também a existência de um contrato assinado, mas sem a efetivação de pedidos e dos respectivos pagamentos aos fornecedores.
Os municípios de São Raimundo Nonato e São José do Egito estão situados na região de clima Semiárido, onde as chuvas se concentram em apenas quatro ou cinco meses do ano e nos demais ocorre a estiagem. A renda gerada pelo PNAE é importante para as agricultoras da região no período da estiagem, quando algumas delas, sem muita reserva hídrica, diminuem a produção.
Já no município de Camutanga, na Zona da Mata pernambucana, as fronteiras entre urbano e rural se confundem. Um mercado institucional como o do PNAE possui grande relevância para as pequenas famílias agricultoras, que, quase sempre, contam apenas com as feiras livres para comercializar seus produtos.
Regulamentado em 2009 pela Lei n° 11.947, o PNAE é importante para a garantia do Direito Humano à Alimentação. No Nordeste, o programa assume um papel essencial na segurança alimentar, garantindo o número mínimo de refeições diárias para as crianças. A mesma lei determina que 30% do valor repassado pelo programa deve ser destinado à compra de produtos da agricultura familiar.
Com a obrigatoriedade do investimento de 30% do orçamento na agricultura familiar, pequenas agricultoras, quilombolas, indígenas e assentados da reforma agrária têm acesso a mercados institucionais, o que aumenta sua renda e movimenta a economia local. A inserção de alimentos in natura na merenda escolar também estimula hábitos alimentares saudáveis. Além disso, a renda gerada pelo PNAE está no alicerce da manutenção de patrimônios alimentares tradicionais.
São José do Egito
Em 2022, a prefeitura de São José do Egito não executou um centavo dos 30% que deveriam ser destinados à agricultura familiar. Segundo a pesquisadora e graduanda em Nutrição pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), Lislaine Machado, no Sistema de Gestão de Prestação de Contas (SigPC), a prefeitura declarou não ter realizado aquisições da agricultura familiar. Nesse sistema, as entidades executoras lançam a prestação de contas do PNAE para avaliação pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE).
Do repasse de R$ 412 mil feito pelo FNDE, o município adquiriu R$ 63 mil reais em carnes, polpas e frutas do fornecedor Alberto da Silva Souza, mas fora da cota de aquisição da agricultura familiar.
A reportagem identificou um pagamento de R$ 2.872,75, em 8 de março de 2022, em nome da Associação de Apicultores e Meliponicultores Orgânicos do Alto Pajeú (Apomel). Consultada, a tesoureira da Apomel, Elzilene Rodrigues, afirmou que o pagamento refere-se às últimas vendas realizadas pela associação, em 2020, o que não representa aquisição de produtos da agricultura familiar no ano letivo de 2022.
Historicamente as mulheres, junto com os indígenas, quilombolas e assentados da reforma agrária são excluídos dos mercados institucionais, com o Pnae esse público pode fazer parte desta modalidade de compra | Foto: Paulo Lopes.jpg
Em 2022, a chamada pública para aquisição da agricultura familiar em São José do Egito foi declarada deserta, o que ocorre quando nenhum fornecedor participa. No entanto, o segundo passo do regulamento de compras do FNDE é a articulação dos atores sociais. Quando a regra é cumprida, a prefeitura identifica potenciais fornecedores interessados em participar da chamada.
Ainda de acordo com o mesmo regulamento, as chamadas públicas devem permanecer abertas por um prazo mínimo de 20 dias e ser amplamente divulgadas em espaços onde há circulação de membros da agricultura familiar. A modalidade de chamada pública, que é uma dispensa de licitação, é admitida pelo PNAE por ser o formato mais acessível às pequenas agricultoras familiares.
“Não fizeram [a divulgação] de propósito. Prova disso é que ninguém participou. Foi tão rápido, ninguém ficou sabendo. A gente sempre era comunicada por whatsapp, mas dessa vez ninguém foi informado, a gente não teve como participar”, recorda Maria de Lourdes do Nascimento, agricultora associada à Apomel.
De acordo com a integrante da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA), Vanessa Schottz, se a chamada foi declarada deserta, o município tinha a obrigação de realizar outra chamada, após avaliar quais critérios do regulamento de compra não foram cumpridos e confirmar se houve um processo de articulação dos atores sociais, ampla divulgação da chamada e se esta ficou aberta pelo mínimo de dias necessários para as pessoas participarem.
De acordo com o regulamento, só há três situações nas quais o repasse mínimo de 30% para agricultura familiar pode ser dispensado: quando há impossibilidade de emissão de nota fiscal, em caso de impossibilidade de oferta de produtos de forma regular e se as condições higiênico-sanitárias forem inadequadas.
Schottz reforça ainda que, quando a chamada é declarada deserta e a razão não se encaixa em nenhuma das excepcionalidades, permanece a obrigatoriedade de cumprir os 30%. “A menos que o município comprove essas excepcionalidades, o que não parece ser o caso, uma vez que há fornecedoras locais da agricultura familiar que relatam ter produção e que já são fornecedoras habituais, mas que não participaram da chamada por falta de informações sobre a abertura da chamada”, pondera.
Designado pela Câmara de Vereadores de São José do Egito para mediar o diálogo entre fornecedores e os gestores do PNAE, o vereador Vicente Neto (PSB) afirmou ter ficado surpreso com o resultado da chamada. “Tive diálogos com o prefeito, com o secretário de educação, com o gestor de licitações, que me garantiram que a chamada aconteceria. Porém, também fui pego de surpresa por ela ter acontecido e eu não ter tomado conhecimento”, relembra.
A reportagem fez contato com a prefeitura de São José do Egito para saber como foi realizada a divulgação da chamada pública do PNAE em 2022. Também perguntamos a razão pela qual não foram executados os 30% da agricultura familiar e todo o orçamento repassado pelo PNAE, uma vez que a nossa investigação identificou um montante de R$ 12 mil que não foram executados. Buscamos ainda confirmar a origem dos R$ 2.872,75, pagos à Apomel, em março de 2022. Até o fechamento desta reportagem, não recebemos retorno da entidade executora.
Camutanga
Em 2022, Camutanga executou 23,5% do seu orçamento com a agricultura familiar. O município formalizou um contrato com a Cooperativa de Produtores de Leite de Nazaré da Mata, mas não efetuou pedidos de produtos e não realizou pagamentos. Os pequenos produtores de leite e derivados se programaram para atender o contrato firmado com a prefeitura, mas como não foi formulado nenhum pedido, a cooperativa sofreu prejuízos e fechou as portas.
“Na hora que a gente fecha um contrato, a gente se programa. A gente compra açúcar, embalagem, outros insumos para fazer a bebida, e fica aguardando os pedidos. Se os pedidos não chegam, a gente fica no prejuízo. A Cooperativa de Produtores de Leite de Nazaré da Mata funcionou até dezembro do ano passado. Além de Camutanga, outros contratos não foram efetuados e a gente preferiu dar uma parada”, relata o presidente da Cooperativa, José Antônio Lopes Júnior.
São Raimundo Nonato
Em São Raimundo Nonato, a execução da agricultura familiar pelo PNAE não passou de 14%. De um repasse de R$ 958 mil, a entidade executora investiu apenas R$ 124 mil em produtos da agricultura familiar.
A agricultora e mãe solo Silvia Souza, do assentamento Novo Zabelê, no semiárido piauiense, diz que vem sentindo o impacto da redução dos recursos nas chamadas públicas. Segundo ela, a Associação dos Produtores e Produtoras Agroecológicos do Semiárido Piauiense (Apasp), organização da qual ela faz parte, começou a comercializar para o PNAE em 2016. Até 2018, os recursos das chamadas garantiam um lucro bom, afirma.
“Vinha dando muito certo. A partir de 2019/2020 houve uma redução de recursos e isso foi impactante não só para mim, mas para todas as famílias. Porque quando você se planeja baseada numa renda que você acredita que vai ter, [e não tem] isso gera um impacto. E quando você é chefe de família, tem um impacto muito maior, porque tem a surpresa da diminuição de recursos”, afirma a agricultora.
Para recompor a renda, Sílvia diz que vem participando dos pregões eletrônicos do Instituto Federal de Pernambuco (IFPE) e da plataforma de comercialização de produtos agroecológicos Orgânicos Zabelê. É da agricultura familiar que Sílvia tira o sustento dela, do filho e da casa, que mantém sozinha.
A reportagem fez contato com os gestores do PNAE nos municípios de Camutanga e São Raimundo Nonato. No primeiro caso, perguntamos a razão para a não efetivação dos pedidos previstos no contrato assinado com a Cooperativa de Produtores de Leite de Nazaré da Mata. No segundo caso, buscamos saber o motivo para a redução no volume de recursos das chamadas públicas em São Raimundo Nonato. Nenhuma das prefeituras retornou os nossos contatos.
Agricultoras são mais impactadas
Vanessa Schottz alerta que os problemas na execução dos recursos da agricultura familiar no PNAE afetam todas as pessoas, com ênfase nas mulheres, que encontram obstáculos para acessar mercados institucionais.
“Elas têm dificuldade, logo no início, para reunir a documentação, porque a sua produção não é reconhecida. Elas têm dificuldades de acessar a nota do produtor, documento que precisa ser emitido após a entrega dos produtos, além das dificuldades para acessar a Assistência Técnica e Extensão Rural (Ater)”, pontua.
Elzilene assegura que os recursos do PNAE são importantes para a autonomia econômica das mulheres agricultoras. “As mulheres tomam à frente e são quem comercializa no PNAE. Isso faz com que elas fiquem mais ativas dentro de casa, podendo dizer para onde vai o recurso, onde será melhor investido. Facilita muito a vida das agricultoras e faz com que elas possam ir e vir sem ter que pedir ao companheiro”, avalia a tesoureira da Apomel.
“É uma renda que ajuda nas despesas. Quando não tem [a renda do PNAE], a gente come menos, tem que diminuir a feira”, desabafa a agricultora Ana Lúcia Alves, do Sítio Olho D’água, área rural de São José do Egito. Desde 2010, Ana comercializa pela Apomel, mas afirma que, a partir de 2020, com o começo da pandemia, parou de vender seus produtos.
“Não conto quantas vezes batemos na porta da prefeitura, para conversar com o gestor”, revela Maria de Lourdes do Nascimento. Segundo a associada da Apomel, no início de 2022, membros da associação tentaram diálogo com o prefeito do município, Evandro Valadares (PSB), para reivindicar a abertura da chamada. A resposta ouvida foi que “não poderia haver chamada pública por se tratar de um ano de eleição”, afirma a agricultora.
De acordo com Luiz Henrique Bambini, especialista em Políticas Públicas de Alimentação, com anos de experiência na gestão do PNAE, em São Paulo, não existe nenhuma regra que proíba a realização de chamada pública do PNAE, que é previsto por lei, em ano de eleição. “Pelo contrário, a não aquisição de produtos da agricultura familiar pode acarretar responsabilidade fiscal”, explica.
O artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, que trata das vedações no período eleitoral, não menciona a proibição de licitações em ano eleitoral. Todavia, o artigo traz uma série de ressalvas que devem ser seguidas para evitar o uso indevido dos recursos, como a publicidade de ações e programas institucionais durante o período eleitoral, o que derruba a justificativa, que segundo as fontes, foi apresentada pela prefeitura de São José do Egito para a não realização da chamada pública no início do ano de 2022.
Na avaliação de Lourdes, a forma como a chamada pública foi gerida tem razões políticas. “A gente fica de fora porque eles nos consideram de oposição. Eles têm apoio das grandes empresas de polpa de Caruaru nas eleições. Aí quando ganham, eles pegam polpa em Caruaru, né? São pequenas fábricas de bolo que apoiam eles [nas eleições e quando eles ganham] e eles pegam bolos de lá [para fornecer na merenda]”, denuncia.
Baixa execução não é de hoje
De acordo com os dados da execução da agricultura familiar disponibilizados FNDE, o município de Camutanga possui um histórico de baixa execução dos recursos da agricultura familiar. Em 2019, o município destinou apenas 11,7% do orçamento à aquisição de alimentos fornecidos por famílias agricultoras. Em 2018, o percentual gasto foi de 11,51%, e em 2017, foi ainda mais baixo, 8,12%.
Nos últimos três anos, a reportagem só encontrou registros de execução da agricultura familiar em São José do Egito, em 2018, que foi de 40,92%, e em 2019, ano em que o valor registrado foi de 26,1%. Essa base de dados é alimentada pelo Sistema de Gestão de Contas (SigPC), e considera as notas fiscais lançadas pelas entidades executoras, nesse caso, as prefeituras. Os dados referentes aos anos de 2020, 2021 e 2022 ainda não foram disponibilizados.
Em 2019, o município de São Raimundo Nonato destinou R$ 16 mil do repasse de R$ 766 mil feito pelo PNAE, o que representa 2,2% dos recursos – muito abaixo dos 30% determinados pelo programa. No sistema, não há registros de gastos com a agricultura familiar nos anos de 2015, 2016 e 2018.
Em resposta à reportagem, a Coordenação Geral do Programa Nacional de Alimentação Escolar (CGPAE), do FNDE, afirmou que “realiza monitoramentos presenciais e virtuais nos municípios e estados, seguindo alguns critérios, como estar abaixo da meta dos 30% da agricultura familiar. Dessa forma, estão previstos monitoramentos para este ano.”
Ainda segundo o órgão, há também o “e-pnae, aplicativo no qual a população pode acompanhar diariamente o PNAE no município, com informações referentes ao repasse financeiro, nutricionistas do município, cardápios elaborados”. O órgão reforçou que 22 estados brasileiros contam com 25 Centros Colaboradores em Alimentação e Nutrição Escolar (Cecane). Esses espaços realizam assessorias, monitoramentos, capacitações e acompanham a gestão do programa ao longo de todo o ano letivo.
Os dados revelam que o cumprimento do mínimo de 30% dos recursos do PNAE para a agricultura familiar ainda tem um longo caminho a ser percorrido. No meio dessa distância, estão as famílias agricultoras que veem sua renda reduzida e seus pratos mais vazios, e os estudantes, que podem estar reféns do clássico suco com biscoito.
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Jornalista formada pela Universidade Joaquim Nabuco (PE) com 25 anos de experiência em assessoria de comunicação e reportagem nas áreas de direitos humanos, gênero e meio ambiente. É da equipe Inclusão e Diversidade do Colabora – jornalismo sustentável, e já assinou matérias em veículos como o O Joio e o Trigo, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo, ((o)) Eco e Saiba Mais e assinou reportagens para o The Brazilian Report nas eleições 2022. Venceu o edital “Primeira Infância e a cobertura das eleições”, realizado pelos veículos Nós, Mulheres da Periferia, Alma Preta Jornalismo, Amazônia Real e Marco Zero Conteúdo, com o apoio da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal. Já recebeu o Prêmio Sassá de Direitos Humanos, além de ser premiada por As Amazonas, Abraji e pela Embaixada dos Estados Unidos com o podcast “Cidadãs das Águas”, no curso Podcast: o seu conteúdo para o mundo.
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