A subnotificação e o apagamento do motivo dos estupros contra lésbicas nos dados de violência sexual são obstáculos para entender o problema, segundo especialista | Foto: Agência Brasil

No Brasil, 6 mulheres lésbicas são estupradas por dia

A maior parte dos casos – 61% – acontece dentro de casa, mostram dados da Saúde

Vitória Régia da Silva

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A violência contra a população LGBT+ tem muitas faces. Uma delas é a violência sexual, incluindo o crime de estupro. Nesse tipo de violência, as mulheres lésbicas são as mais atingidas entre LGBT+. Em média, 6 lésbicas foram estupradas por dia em 2017, em um total de 2.379 casos registrados, segundo levantamento exclusivo da Gênero e Número a partir de dados obtidos no Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan, parte do Ministério da Saúde) via Lei de Acesso à Informação. Em 61% dos casos notificados, a vítima foi estuprada mais de uma vez.

É dentro de casa e no meio familiar que as mulheres lésbicas são violentadas. Em 61% dos casos, a agressão ocorreu na residência, enquanto 20% aconteceram em vias pública e 13% em “outros locais”. Os homens são algozes. Aparecem como autores em 96% das agressões sexuais Mulheres são apenas 1% das agressoras. Em 2% das agressões há registros de ambos os gêneros como agressores. Em 1% dos casos notificados o gênero do autor não é identificado. 

“A misoginia e o ódio total às mulheres lésbicas, refletidos nesses dados sobre violência sexual, estão ligados a não necessidade da figura masculina em uma relação entre mulheres e como isso macula a virilidade e masculinidade frágil dos homens heterossexuais”, analisa a presidente da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da Ordem dos Advogados Brasileiros (OAB) do Paraná e coordenadora jurídica das Organizações Internacionais de Direitos Humanos no Grupo Dignidade e Aliança Nacional LGBTI Ananda Puchta. “Por isso, o estupro sempre foi uma demanda do movimento de mulheres lésbicas, porque sempre aconteceu. Só ano passado conseguimos uma legislação que pudesse nos ajudar a quantificar essa questão”, conta.

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Segundo a advogada, o problema maior segue sendo a subnotificação e o apagamento do motivo desses estupros  nos dados de violência sexual e da própria Lei Maria da Penha. As mulheres lésbicas representam cerca de 10% das notificações de estupros contra mulheres do Sinan.

Assim como nos outros tipos de violência, as mulheres negras são a maioria das vítimas de estupro contra lésbicas. Em 2017, elas representavam 58% das vítimas, seguida de brancas (35%), indígenas e amarelas (1%). 

Para Puchta estamos inseridos em uma sociedade que não concede às mulheres negras dignidade de vida, por isso elas são sempre mais vulneráveis aos diferentes tipos de violências como a violência sexual. “A vivência lésbica e negra é muito mais inferiorizada por esse agressor que comete a violência, já que corpos negros são hipersexualizados e vistos como um corpo de servidão na nossa sociedade. Por isso, esse estupro vêm de uma relação de poder que perpassa pela combinação de misoginia, racismo e lesbofobia”, destaca Putcha, que também é uma das co-fundadoras do coletivo Cássia, um grupo de empoderamento de mulheres lésbicas e bissexuais.

 

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Estupro corretivo: a violência sexual lesbofóbica

Em abril do ano passado, uma jovem lésbica de 22 anos estava na Cantareira,  praça e reduto de bares próximo à Universidade Federal Fluminense, em Niterói, Rio de Janeiro quando dois rapazes a convidaram para beber com eles. A jovem aceitou, mas contou  ser lésbica e que estaria interessada em outra mulher do bar. Depois de conversar com os rapazes, despediu-se e se dirigiu a outra mulher. Por volta das 22h, seguiu caminhando em direção ao centro da cidade, onde pegaria um ônibus para casa. Nesse percursos, foi então surpreendida por um dos homens que estava no bar, que a abordou, a perseguiu e a estuprou. Neste caso, narrado no jornal O Fluminense, a vítima revela que foi  agredida com tapas e socos, e que no momento do estupro o agressor  disse“Agora você vai aprender a gostar de homem”.

O caso ocorreu apenas alguns meses antes de ser sancionada a lei 13.718, em setembro de 2018, que criou penas específicas para novas formas de violência contra mulheres e LGBTs. Entre essas, está o estupro corretivo, aquele em que a motivação do estupro é  o controle dos comportamentos social e sexual da vítima. O texto define um aumento de dois terços da pena, em caso de estupro coletivo. O mesmo aumento é estipulado para os casos de “estupro coletivo”, em que o crime é cometido por dois ou mais agressores. 

“O diferencial desse tipo de estupro para outros casos é que a motivação é baseada na inconformidade do autor sobre a sexualidade das vítimas. Por isso, é uma combinação do machismo com a LGBTfobia. O autor considera a sexualidade da vítima  uma transgressão à regra moral, biológica e social. E a ideia é curar ou reverter como se fosse uma doença, porque é isso que o agressor considera que a homossexualidade é”, contextualiza Paula Damasceno, pesquisadora da área de Saúde Coletiva na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

 

A categoria “estupro corretivo” começou a ser discutida a partir da identificação desse crime em alguns países da África, como a África de Sul. No início, a categoria  tratava do estupro principalmente contra lésbicas, sobretudo negras e que têm uma performance mais masculinizada, por serem mais fáceis de identificar. “Com o tempo, proeminência dos casos contínua nesse sentido, mais vários outros grupos são atacados com a mesma lógica como é o caso de mulheres bissexuais e homens trans”, conta Damasceno, que no momento está debruçada sobre o tema, para  a sua tese de doutorado. 

Nem todo caso de estupro contra mulheres lésbicas configura estupro corretivo, entretanto. O agressor não necessariamente vai ter a informação da orientação sexual da vítima em todos os casos que cometer abuso sexual ou estupro. Por isso, só é possível fazer essa diferenciação [se foi ou não estupro corretivo] por meio da motivação do autor do crime, quando é manifestada essa tentativa de reversão da sexualidade da vítima. 

“A ideia da conversão de sexualidade está presente em várias esferas e uma delas é a da violência. As ideias da suposta “cura gay’, terapia de reversão sexual e estupro corretivo são uma das maiores violências que podemos sofrer, por que somos tratadas como loucas, aberração e nos seria imposta a heteronormatividade compulsória”, disse a integrante da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL) Virginia Figueiredo.

Segundo Figueiredo, primeira mulher assumidamente lésbica a se candidatar a um cargo eletivo, nas eleições de 1996, uma pesquisa da LBL apontou que entre 2012 e 2014, cerca de 9% das vítimas de estupro que procuraram o Disque 100, serviço de denúncias e proteção contra violações de direitos humanos do governo, eram lésbicas 

Não há dados oficiais de casos de estupros corretivos no Brasil. No geral, os casos são registrados apenas como estupro – que ainda assim é um crime subnotificado. Um dos poucos levantamentos sobre violências cometidas contra lésbicas, o “Dossiê Sobre Lesbocídio no Brasil”, lançado no ano passado por Núcleo de Inclusão Social (NIS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro e do Nós: dissidências feministas, mostra que houve 54 mortes de lésbicas no país em 2017, e que em cerca de 3% desses casos foi cometido estupro seguido de assassinato. Mas como nem todo caso de estupro corretivo é seguido de morte, ainda é difícil saber a frequência com que esse tipo de estupro acontece. 

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As ideias da suposta "cura gay', terapia de reversão sexual e estupro corretivo são uma das maiores violências que podemos sofrer, por que somos tratadas como loucas, aberração e nos seria imposta a heteronormatividade compulsória - Virginia Figueiredo, integrante da Liga Brasileira de Lésbicas (LBL)

Em 2018, no espaço “Tribuna das Mulheres” da Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara ativistas LGBTs denunciaram o aumento das denúncias de estupros corretivos contra lésbicas. Na ocasião, Janaína Oliveira, da Rede Nacional de Negras e Negros LGBT, destacou a dificuldade de encontrar dados específicos sobre casos de violência contra mulheres lésbicas e bissexuais.

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A busca pela suposta “conversão” da sexualidade na América Latina

Enquanto na legislação brasileira estupro corretivo ainda é um termo novo, em outros países da América Latina essa discussão já tem precedentes. No Peru, organizações da sociedade civil e representantes do governo denunciam que o estupro corretivo é uma prática recorrente e não casos isolados.. No Equador há denúncias de que o estupro corretivo seja usado como um tratamento em clínicas que prometem a suposta “cura gay”. A ideia por traz desse fenômeno é de reversão e não aceitação da sexualidade do outro. 

No Brasil, corre em sigilo no Ministério Público investigação que apura indícios de que seis instituições que afirmam fazer a chamada ‘conversão da sexualidade’, segundo relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), com a colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). As unidades são, na sua maioria, religiosas e estão distribuídas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Sergipe. O Conselho Federal de Psicologia (CFP) proíbe psicólogos de oferecerem serviços para tratamento da homossexualidade. Desde 1990 a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.

“Temos uma disputa de narrativas, em que a narrativa da suposta “cura gay” volta com muita força. Essa ideia sempre existiu, mas estava mais amena e nesse cenário ganha mais vigor. E isso reverbera na percepção da sociedade sobre esse tema e se ele deve ser enfrentado, e se sim, de que forma. Estamos em um momento em que é questionado se é uma forma legítima ou não de tratamento. Essa guinada nos últimos anos, em que tivemos uma mudança de paradigma e de avanço do conservadorismo, afeta diretamente essa questão”, pontua Damasceno.

Um exemplo disso é que psicóloga Rozangela Alves Justino, uma das autoras da ação que liberou a “cura gay ” no país em 2017, anunciou a candidatura em uma chapa ao Conselho Federal de Psicologia (CFP), órgão responsável por regulamentar a profissão no Brasil. Ela já foi punida, em 2009, por realizar pela terapia de ‘reversão sexual’.

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Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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