Na reta final do primeiro turno das eleições, mulheres foram vítimas de violência política a cada dois dias
De ofensas a tentativas de assassinato, houve 114 ocorrências de violência contra candidatos e eleitores antes do primeiro turno; segundo levantamento inédito, regiões Sudeste e Nordeste foram as campeãs de violência eleitoral
Por Agência Pública, Amazônia Real, Gênero e Número, Marco Zero Conteúdo, Ponte Jornalismo, Portal Catarinas, Projeto #Colabora, Agência Saiba Mais, Plural*
Candidata pela segunda vez neste pleito, a vereadora Elizangela Altoé (PT), de Cachoeiro de Itapemirim (ES), denunciou ter sido agredida pelo empresário Robson Salles Gratival, dono da loja de motos ZeroKm, enquanto cumpria agenda de campanha na sexta-feira (13/11). O empresário a teria agredido verbalmente, jogado uma lata de cerveja na candidata e ainda a teria derrubado no chão. “Quando eu estava no chão, o agressor me segurava pelo cabelo, tive machucados na mão e no braço. Fui agredida por ser mulher e por ser de esquerda, do PT”, conta a candidata. Após as agressões, ela foi encaminhada para o hospital do município. Altoé registrou um boletim de ocorrência na 7º Delegacia Regional da Polícia Civil da cidade, que investiga o caso.
Esse tipo de agressão afasta mulheres da política, que já são minoria nos espaços de tomada de decisão, segundo Altoé. “O lugar onde fui agredida era um lugar muito comum de candidatos fazerem campanhas, por isso eu compreendo que a agressão foi a mim enquanto candidata mulher. Isso mostra o olhar das pessoas em relação à mulher e como é mais fácil para eles nos agredir (…) Desde esse dia, eu parei de fazer campanha”, conta. Em vídeo que circula pelas redes sociais, é possível ouvir o empresário chamando Elizangela de “puta”.
O caso não foi isolado. Um levantamento inédito realizado por uma coalizão de nove veículos jornalísticos contabilizou 114 casos de violência relacionados à eleição ocorridos desde o começo de novembro. Isso significa que houve, em média, um episódio de violência política a cada 3 horas nos primeiros 15 dias de novembro. O levantamento inclui ameaças, ofensas, agressões, tentativas de homicídio e assassinatos. O número de ataques é 60% maior do que o registrado às vésperas das eleições de 2018. Em pelo menos 8 ocasiões, as mulheres foram alvo de violência política de gênero.Para Sandra Carvalho, coordenadora da ONG Justiça Global, que lançou um relatório sobre violência política e eleitoral no país, mulheres e pessoas trans, que cada vez mais estão ocupando espaços políticos, são as mais vulneráveis. “Coloca em risco a própria democracia, à medida em que não permite que essas pessoas que legitimamente foram eleitas como representantes possam exercer os seus mandatos”, destaca. Segundo o relatório elaborado pela Terra de Direitos e a Justiça Global,a cada 13 dias ocorre um caso de ataque à vida contra representantes de cargos eletivos, candidatos/as ou pré-candidatos/as no Brasil.
“O que a gente verifica é que os casos são tratados isoladamente, não como uma violência sistêmica, então, como cada caso é um caso, não se cria instrumentos, tanto de apuração, investigação e responsabilização para quem pratica essa violência, como também de prevenção pelos partidos políticos que elegeram esse segmento, de mulheres negras, pessoas trans. Eles têm que estar preparados para dar um apoio e suporte para que essas pessoas possam exercer com segurança os seus mandatos”, destaca Carvalho.
O levantamento inédito também registrou pelo menos um caso de transfobia neste contexto eleitoral. A cinco dias da eleição, em 10 de novembro, Patrícia Borges, mulher trans de 30 anos, foi agredida com mordidas e golpes de haste de ferro durante panfletagem na Avenida Paulista, em São Paulo. Ela estava em frente ao shopping Center 3 fazendo campanha para a então candidata Erika Hilton (PSOL), que no domingo (15) foi eleita a primeira vereadora trans e negra da capital, com mais de 50 mil votos. Patrícia contou à reportagem que ela e mais dois colegas entregavam panfletos por volta das 15h quando abordaram uma mulher loira. “Eu disse ‘olha, é importante a gente eleger a primeira vereadora trans, travesti e preta’. Aí ela disse automaticamente ‘tudo cambada de viado, tudo tem que morrer’”, narra.
Em seguida, a mulher teria ido embora, mas voltado cinco minutos depois acompanhada de três homens e segurando uma haste de metal que, segundo Borges, era um suporte de “pau de selfie”. “Ela veio para dar no meu rosto, eu consegui segurar, e nessa que segurei, ela puxou meu cabelo. Aí o menino veio por cima, puxando também o meu cabelo, querendo pegar essa haste de metal e me bater, e chegou ainda o outro querendo me cobrir também. Um puxou de um lado, outro puxou de outro, fiquei tensa, e ela mordeu o meu braço”, relata.
A polícia foi chamada ao local para atender a ocorrência e colheu os dados da mulher. Borges prefere não divulgá-los enquanto a investigação não for finalizada. Acompanhada de um advogado, ela foi à delegacia e registrou um boletim de ocorrência sobre a agressão. Ela não tem dúvidas de que o que aconteceu foi um crime político. “Mas, no final de tudo, fomos abençoadas e abrilhantadas, a Erika foi eleita com 50 mil votos. Foi muito revolucionário, em 2020, a gente conseguir eleger a primeira vereadora trans, travesti e preta, porque os corpos trans e travestis são muito abusados pela prostituição”, destaca.
Episódios de racismo também não ficaram de fora, com pelo menos um caso registrado. A candidata à vice-prefeitura Edilamara Rangel e a candidata a vereadora Kelly Kuster, de Cariacica (ES), estavam subindo em um carro de som para discursar durante uma atividade de campanha na Avenida Expedito Garcia, em 7/11, quando foram chamadas de “criolas” e questionadas sobre sua presença no local por um homem não identificado, depois de terem pedido para ele dar passagem. As candidatas registraram boletim de ocorrência por injúria racial na Delegacia Especializada de Atendimento à Mulher, no dia 9/11.
“Nós estávamos subindo no carro de som e, ao iniciar minha fala de cima do carro, um homem nos chamou de crioula. E quando eu falei que nós éramos advogadas, ele correu. Ele fez isso de forma gratuita, porque viu mulheres negras em cima do carro de som e achou que poderia falar qualquer coisa. Um absurdo, situações como essa não podemos aceitar. Temos que repudiar com veemência os ataques de injúria racial.”
A Polícia Civil confirmou o registro da ocorrência, e a Delegada Milena Senhorinho falou à reportagem que “como foi em um dia de comício, ela estava em um carro de som fazendo propaganda política, poderia ser enquadrado como motivação política, além da racial”. Em outro momento da atividade, um outro homem teria gritado para as candidatas, questionando, “se não teriam roupa para lavar”, mas ainda não foi registrado um boletim de ocorrência sobre este caso.
Os casos envolvendo ataques a políticos não ficaram apenas na violência verbal e agressões. Também houve pelo menos 41 atentados ou tentativas de homicídio e 1 assassinato motivados por disputas políticas registrados no período. O Sudeste foi a região com mais tentativas de homicídio (15), e o Rio de Janeiro foi o estado recordista nesse tipo de violência, com 6 casos apenas durante os primeiros 15 dias de novembro. Em pelo menos um deles, é possível notar o envolvimento da disputa de poder ligado às milícias, que têm avançado no estado.
Para Pablo Nunes, doutor em ciência política pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj) e coordenador adjunto do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC), no Rio de Janeiro, tentativas e homicídios contra candidatos e eleitos “atacam o centro da democracia, é algo também que deixa claro que um parlamentar, um candidato, não está seguro, nenhum de nós está” (…) porque não é só uma pessoa que está sendo morta, mas de certa forma o processo democrático está sendo atacado quando existem esses casos de violência.”
Nunes tem acompanhado os casos de violência política contra políticos e levantou 90 assassinatos de candidatos em todo o país. “A morte de um político é muito mais grave porque não é só uma pessoa que foi morta, mas um representante que milhares de votos colocaram lá e foram de certa forma cassados. E quando a gente fala de candidatos, é algo também muito preocupante porque de certa forma a morte de um candidato que está tentando emplacar suas pautas e ser eleito para representar essas demandas é também uma interferência violenta em um dos pilares da democracia, que é exatamente a possibilidade de votar e ser votado”, pontua.
Este ano, tanto vítimas quanto agressores eram de todo o espectro político, e o tipo de violência, diverso. A candidata a vereadora do Rio de Janeiro Simone Sartório (Patriota) teve o carro atingido por um tiro, em Rocha Miranda, na Zona Norte do Rio, no dia 3 de novembro. A candidata voltava para o comitê eleitoral quando foi perseguida por um carro suspeito que tentou parar o veículo em que ela estava quando efetuou o tiro. O caso foi registrado na 30ª DP (Marechal Hermes). Procurada pela reportagem, a Polícia Civil do Rio de Janeiro confirmou que “instaurou inquérito para apurar o fato. As investigações estão em andamento.”
De acordo com o levantamento, o Nordeste foi a região mais violenta na reta final das eleições municipais: um em cada três casos de violência política ocorreram lá, foram 28 casos no total. A Bahia, com 8 casos, foi o estado nordestino com maior número de ocorrências, seguida por Pernambuco e Paraíba, com 6 casos cada. A região Sudeste foi a segunda com maior número de casos: 32, que correspondem a quase um terço do total (28% ) Na região, o estado de São Paulo foi o mais violento e teve o maior número de agressões entre todos os estados do Brasil (14). No Rio de Janeiro, foi onde mais ocorreram tentativas de assassinato: foram 6 atentados de um total de 8 casos de violência.
Expediente:
O projeto Violência nas Eleições é realizado por uma equipe de jornalistas de nove veículos.
Reportagem: Alice Maciel, Anna Beatriz Anjos, Caroline Farah, Ciro Barros, Ethel Rudnitzki, José Cícero da Silva, Julia Dolce, Laura Scofield, Mariama Correia, Rafael Oliveira, Raphaela Ribeiro e Rute Pina (Agência Pública), Gabriella Soares e Rogerio Galindo (Plural), Kátia Brasil e Nicoly Ambrozio (Amazônia Real), Inara Fonseca e Paula Guimarães (Portal Catarinas), Vitória Régia da Silva (Gênero e Número), Débora Britto (Marco Zero Conteúdo), Paulo Eduardo Dias (Ponte Jornalismo), Liana Melo (Projeto #Colabora) e Mirella Lopes e Rafael Duarte (Agência Saiba Mais).
Edição: Andrea DiP, Giulia Afiune, Marina Dias, Natalia Viana e Thiago Domenici (Agência Pública), Rogerio Galindo (Plural), Oscar Valporto (Projeto #Colabora), Rafael Duarte (Agência Saiba Mais), Amauri Gonzo (Ponte Jornalismo), Giulliana Bianconi (Gênero e Número), Paula Guimarães (Portal Catarinas) e Kátia Brasil (Amazônia Real).
Coordenação: Anna Beatriz Anjos e Giulia Afiune (Agência Pública)
Dados e infográficos: Bianca Muniz e Larissa Fernandes (Agência Pública)
Artes: Débora Britto (Marco Zero Conteúdo) e Ana Clara Moscatelli (Agência Pública)
É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.
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