Especialistas e grupos que trabalham com o combate à violência contra a mulher se preocupam com as consequências do decreto de flexibilização das regras de posse de armas |Foto: Pixabay

Mulheres são 96% das vítimas agredidas por “ex” com arma de fogo após fim de relacionamento

Homens são principais vítimas da violência policial quando as agressões são com arma de fogo, enquanto mulheres têm nos cônjuges, ex-companheiros e namorados principais agressores; ampliação da possibilidade de ter arma em casa representa tendência a aumento das agressões, alertam pesquisadoras

Por Vitória Régia da Silva e Natália Leão*

Vitória Régia da Silva

  • O que pensa o brasileiro?

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  • As armas protegem as mulheres?

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  • Suspensão de posse e porte na Lei Maria da Penha

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As notificações de agressão por armas de fogo evidenciam que há grande disparidade entre os gêneros das vítimas quando olhamos para quem foi o agressor – autor do crime. Enquanto os homens são as principais vítimas de agressão por policiais e agentes da lei – 91% de todas as agressões cometidas por policiais e agentes com arma de fogo foram contra homens -, as mulheres são as maiores vítimas de agressão por arma de fogo cometidas por pessoas com quem elas mantinham no momento ou mantiveram anteriormente relações amorosas, como companheiros (92% – enquanto os homens somam 8% das vítimas nesses casos), ex-companheiros (96%), namorados (90%) e ex-namorados (95%), segundo levantamento da Gênero e Número a partir de dados obtidos do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan). O levantamento não considera homicídios, apenas agressões que estão registradas pelo Ministério da Saúde no Sinan.

Pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e integrante da equipe de pesquisadores responsáveis pelo Atlas da Violência 2018, Roberta Astolfi explica que papéis de gênero, relações de poder e masculinidade violenta contextualizam o porquê de as mulheres serem mais vítimas de agressão por arma de fogo de companheiros e ex-companheiros.  “A agressão às mulheres, em geral, acontece em casa, que acaba sendo o lugar mais perigoso para ela”, disse à Gênero e Número. Segundo a pesquisadora, esses conceitos também elucidam porque existe uma desproporcionalidade do uso da arma de fogo por força policial contra os homens. “A literatura mostra que a maioria dos autores de crimes violentos são homens jovens e como eles estão mais presentes nesses crimes, os embates e interações com a polícia vão ser mais frequentes”. Ela ainda afirma que a polícia tem um perfil muito estereotipado do criminoso, que é o homem jovem, geralmente negro e morador de periferia.

Os dados do Sinan também mostram uma diferença relevante dos tipos de violência com presença arma de fogo: as mulheres concentram a maior parte das notificações de violência psicológica (93%), tortura (71%) e violência sexual (96%). E elas também são mais da metade das vítimas de reincidência de agressão com arma de fogo (59%).

 

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O levantamento corrobora a preocupação de especialistas e grupos que trabalham com o combate à violência contra mulheres ouvidos pela Gênero e Número em relação às consequências do decreto de flexibilização das regras de posse de armas, assinado em 15 de janeiro pelo presidente Jair Bolsonaro.

O Decreto nº 9.685, que já está em vigor, muda as regras vigentes desde 2004 para a posse de armas no país facilitando que cada cidadão tenha a posse de até quatro armas de fogo. O texto define que não é mais necessário o aval da Polícia Federal para a posse de arma em casa – basta uma autodeclaração para que o direito a posse seja concedido – e amplia a validade do registro de 5 para 10 anos. Estão mantidas as exigências da idade mínima de 25 anos, a ausência de antecedentes criminais e de processos criminais para quem pleitear a posse. Apresentar laudo psicológico e atestado de capacidade técnica também é obrigatório.

“Não podemos falar do decreto olhando só para o texto. Essa medida vem em um cenário desfavorável para os direitos e para a proteção da vida das mulheres”, disse à Gênero e Número a pesquisadora Wânia Pasinato. Segundo Pasinato, que é assessora técnica da ONU Mulheres na área de enfrentamento à violência contra mulheres, é importante analisar o decreto atrelado ao contexto da criação do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. “A ministra Damares Alves e as titulares da pasta têm uma visão moral sobre o lugar da mulher na sociedade que é desfavorável à proteção das mulheres e as coloca em um lugar de submissão, com foco no ambiente familiar. E é esse espaço que agora estará armado e que gera insegurança para elas”, analisa. Ela ainda cita como o combate encampado pelo governo à suposta “ideologia de gênero” pode interferir e suprimir a discussão dos direitos e no combate à violência de gênero na área da educação.

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A ministra da pasta Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves |Foto: Valter Campanato/Ag. Brasil

Os riscos de armas de fogo nas residências não são uma preocupação do governo federal. Durante uma entrevista coletiva à imprensa no dia da aprovação do decreto, o ministro-chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, comparou o risco de se ter uma arma em casa ao de um liquidificador: “Às vezes a gente vê criança pequena que coloca o dedo no liquidificador, liga o liquidificador, vai lá e perde o dedinho. E daí, nós vamos proibir o liquidificador? É uma questão de educação e de orientação.” A analogia foi feita para justificar que a única proteção para crianças e adolescentes dos riscos de pegar uma arma é uma autodeclaração no momento do pedido à Polícia Federal de que a residência possui cofre ou lugar seguro.

“As armas de fogo representam um risco para as mulheres. Por isso, a flexibilização [da posse de armas de fogo] é assustador, já que o lugar mais perigoso para elas, dentro de casa, é onde a arma estará”, afirmou a Coordenadora do Núcleo de Defesa dos Direitos da Mulher (Nudem) da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DPRJ), Maria Matilde Alonso Ciorciari. De acordo com o Dossiê Mulher 2018, do Instituto de Segurança Pública (ISP), 60,8% dos casos de agressão e ameaças contra mulheres no Rio de Janeiro aconteceram dentro de casa em 2017.

 

O que pensa o brasileiro?

Apesar de Bolsonaro ter declarado que assinou o decreto por respeito à decisão da população no referendo realizado há 14 anos, em 2005, em que 63% dos brasileiros votaram em referendo a favor do comércio de armas, uma pesquisa do Datafolha realizada em dezembro de 2018 revela que 61% dos brasileiros entrevistados defendem que a posse de armas seja proibida. Segundo o instituto, entre outubro e dezembro, a parcela de pessoas que considera a posse de armas “um direito do cidadão” diminuiu de  41% para 37%.

A pesquisa também revela que o apoio à proibição da posse e armas é mais alto entre as mulheres (71%) do que entre os homens (51%), entre os mais pobres do que entre os mais ricos (66% a 43%), entre os moradores das regiões Nordeste (66%) e Sudeste (63%) do que entre os moradores da região Sul (50%).

O debate também foi presente nas redes e a flexibilização da posse de armas de fogo mobilizou 78,4 mil postagens no Twitter entre as 16h do dia 14 e as 16h do dia 15 de janeiro, segundo levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV). Das 32 postagens mais compartilhadas nesse período, 16 são contrárias à flexibilização da posse de armas, argumentando que a medida pode aumentar o número de mortes de inocentes, principalmente grupos vulnerabilizados como mulheres, crianças e LGBT+.  Após o decreto, muitas mulheres relataram nas redes sociais episódios de violência doméstica e questionaram qual seria o desfecho caso o agressor tivesse acesso facilitado a uma arma de fogo usando a hashtag #SeEleEstivesseArmado para refletir sobre as consequências da flexibilização da posse de armas.

Protesto contra violência contra as mulheres no Rio de Janeiro |Foto: Getty Images

As armas protegem as mulheres?

Depois que o presidente assinou o decreto que  flexibiliza a posse de armas de fogo, a deputada federal Joice Hasselmann (PSL/SP) divulgou um vídeo que foi produzido e gravado nos Estados Unidos em que aparece com uma pistola e um fuzil praticando tiro. O vídeo foi publicado nas suas redes sociais para comemorar a aprovação do decreto. A deputada escreveu ainda que esse é só o “1º passo” e que vai lutar ao lado de Bolsonaro para liberar o porte de armas. “A mulherada do meu país andará em cima do salto e com sua arma”, publicou Hasselmann no Twitter, afirmando que assim ela faz nos Estados Unidos.

“Está emergindo um discurso e existe uma grande ilusão de que há empoderamento para as mulheres através das armas, mas é sempre importante lembrar que um elemento importante para o crime é a surpresa e que a pessoa que quiser te atacar sempre estará em vantagem”, pontua Roberta Astolfi. Para a pesquisadora, as armas não podem ser vistas como forma de prevenção e nem de combate à criminalidade: “Segundo a legislação, as mulheres podem ter acesso a posse e porte de armas de fogo. Não se trata de impedir, mas que se tenha em mente o que significa uma maior circulação de armas”, alertou.

O estímulo para que as mulheres se armar para combater a violência de gênero só faria com que aumentasse a violência em toda a sociedade e fosse estimulada uma política de violência por reação, na análise de Wânia Passinato: “O que temos que garantir para as mulheres é que elas não sofram violência e não que elas tenham que ter recursos como armas para reagir à violência com outra violência”.

Outro ponto levantado pelas especialistas ouvidas pela Gênero e Número é que, historicamente, quem detém a posse de armas são os homens e que as mulheres não têm armas e nem se defendem dessa forma. “Nas violências domésticas e familiares contra as mulheres existe uma relação de extrema desigualdade, dependência financeira e emocional. Essas relações fazem parte de um ciclo de violência, do qual as mulheres não conseguem sair e muito menos se defender, ainda mais com uma arma de fogo”, disse a coordenadora do Nudem, Maria Matilde Alonso Ciorciari. Ela também afirma que são raros os casos em que essa reação acontece.

Suspensão de posse e porte na Lei Maria da Penha

A Lei Maria da Penha (Lei 11340/06) prevê como uma das medidas protetiva de urgência a suspensão da posse e do porte de arma do agressor. Como a autorização da posse de armas é dada pela Polícia Federal e é a Polícia Civil que investiga os casos de violência de gênero, é necessário que a mulher entre com uma solicitação junto à Polícia Civil para a suspensão da posse e informe os dados do agressor.

“O controle [da medida protetiva] ainda é muito frouxo, não funciona bem e nem é articulado. Deveria haver uma checagem, mas como não há, as mulheres precisam denunciar e entrar com o pedido de suspensão”, pontua a pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública,

Após a assinatura do decreto presidencial, a Defensoria Pública de São Paulo formulou, por meio do seu Núcleo Especializado de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, um modelo de solicitação de medida protetiva que suspende a posse e o porte de armas por quem tenha histórico de violência doméstica e familiar. A solicitação será distribuída a todos os defensores públicos e busca visibilizar o dispositivo e o acesso das mulheres vítimas de violência.

*Vitória Régia da Silva é jornalista e Natália Leão é pesquisadora e analista de dados da Gênero e Número.

** Os dados para esta reportagem foram obtidos pela equipe da Gênero e Número responsável pela construção do projeto Mapa da Violência de Gênero,  que faz parte da segunda geração de projetos apoiados pela ALTEC e será lançado em breve.

Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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