ProUni facilitou acesso à universidade, mas há desafios
Mulheres negras ampliaram participação nos dez cursos universitários mais procurados pelo ProUni (Programa Universidade para Todos), que concede bolsas integrais e parciais de estudo em instituições particulares de ensino superior. Ao longo de 14 anos, a presença delas em programas como Pedagogia, Direito e Medicina mais do que dobrou, segundo levantamento inédito feito pela Gênero e Número e Agência Pública.
A análise da série histórica considera informações sobre gênero e raça das matrículas entre 2006 e 2020, último ano com dados disponíveis nesse recorte, tanto de bolsas integrais quanto parciais, disponibilizados pelo Ministério da Educação (MEC). O ProUni foi criado em 2004.
Em números absolutos, as bolsas de prounistas negras nesses cursos mais do que dobraram de volume, passando de 15.340 em 2006 para 31.868 matrículas, um percentual de 108%.
Mulheres negras bolsistas do Prouni nos 10 cursos mais procurados
1°
2°
Pedagogia
Direito
% das bolsas para
mulheres negras
56%
44%
34%
25%
2020
2020
2006
2006
3°
4°
Administração
Contabilidade
36%
34%
27%
28%
2020
2020
2006
2006
6°
5°
Psicologia
Enfermagem
52%
43%
41%
33%
Pedagogia e enfermagem destinaram mais de 50% de suas bolsas para mulheres negras em 2020
2020
2020
2006
2006
7°
8°
Edu. Física
Eng. Civil
25%
24%
20%
14%
2006
2020
2006
2020
Sistemas de
Informação
9°
10°
Medicina
Sistemas de informação é o único curso em que houve queda na proporção de bolsas oferecidas para mulheres negras
27%
22%
12%
11%
2020
2006
2020
2006
Em 2020, a presença de mulheres negras entre bolsistas dos cursos mais procurados é mais que o dobro da registrada em 2006
Fonte prouni
Mulheres negras bolsistas do Prouni nos 10 cursos mais procurados
% das bolsas para
mulheres negras
Pedagogia e enfermagem destinaram mais de 50% de suas bolsas para mulheres negras em 2020
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Pedagogia
Direito
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Administração
Contabilidade
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Psicologia
Enfermagem
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Edu. Física
Eng. Civil
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Sistemas de
Informação
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Medicina
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2020
2006
Sistemas de informação é o único curso em que houve queda na proporção de bolsas oferecidas para mulheres negras
Em 2020, a presença de mulheres negras entre bolsistas dos cursos mais procurados é mais que o dobro da registrada em 2006
Fonte prouni
Em 2006, elas representavam 28% entre os estudantes bolsistas do Prouni nos 10 cursos mais procurados do ensino superior, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Em 2020, esse percentual cresceu para 38%.
As mulheres negras também foram o grupo demográfico que mais se beneficiou com as bolsas disponibilizadas pelo programa. Em 2012, elas ultrapassaram outros grupos chegando a representar 30% das bolsas – contra 26% de mulheres brancas, 24% de homens negros e 19% de homens brancos. Durante o período analisado, homens brancos foram o único grupo que apresentou queda proporcional no acesso a bolsas do Prouni, passando de 20% em 2006 para 15% em 2020.
Priscila Cristina Evangelista, 36, nascida e criada em Guarulhos, região metropolitana de São Paulo, formou-se em pedagogia, o primeiro da lista dos dez cursos mais disputados, com bolsa de 100%. Quando ela entrou na Faculdade Torricelli, em 2006, ninguém de sua família tinha curso universitário. “Foi essa oportunidade que abriu as portas da universidade para mim. Depois para os meus irmãos, minha mãe e a minha família”. Atualmente, os dois irmãos dela e a mãe também estão formados e ela está cursando a segunda graduação em psicologia pela Universidade de Guarulhos (UNG).
Ana Paula Conceição de Souza, 24, nasceu e cresceu em Parelheiros, bairro periférico do extremo sul de São Paulo. Em 2021, ela passou em psicologia, sexto curso universitário mais disputado do Brasil. Atualmente, ela estuda com bolsa Prouni 100% na Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) de Santo Amaro.
O Prouni para mim significa ascensão, significa acesso, porque, sem a bolsa, eu dificilmente conseguiria custear a faculdade”
Da turma de oito estudantes, três possuem bolsa do Prouni. Ana, que é filha de trabalhadora doméstica e a primeira da sua família a acessar a universidade, é a única negra.
“Nos primeiros anos de faculdade, durante a pandemia, não abria a câmera e não colocava foto de perfil. Logo, os colegas não tinham como saber que era uma mulher negra. E eu comecei a perceber que as pessoas davam muito mais credibilidade para o que eu falava quando eu não tinha identidade. Até professores, sabe?”, conta.
Larissa Araujo Aniceto, 25 anos, moradora de Santo Amaro, periferia do extremo sul de São Paulo, também foi a primeira de sua família a cursar o ensino superior. Em 2016, ela foi beneficiada com uma bolsa de 100% para estudar administração na Fundação Instituto de Administração (FIA). Formada desde 2019, no terceiro curso universitário mais disputado do ProUni, hoje atua como analista de treinamento.
“Provavelmente eu teria cursado gestão empresarial (curso técnico) e entraria no mercado, mas com uma menor visibilidade do que a graduação oferece”, diz. Com a graduação, Larissa sente que está “galgando um espaço que foi negado para os meus pais”, uma dona de casa e um funcionário público que cursaram até o ensino médio.
Mais nordestinas e nortistas na universidade
A participação de nordestinas e nortistas negras no ProUni também aumentou no período analisado pela Gênero e Número e Agência Pública. Houve um crescimento de 233% no acesso a bolsas por mulheres negras do Norte e de 216% no Nordeste, que concentra a maior população autodeclarada negra do país, de acordo com a PNAD Contínua do IBGE.
Acesso de mulheres negras
a bolsas do Prouni, por região
2020
2006
% das bolsas
por região e ano
7%
sul
sul
8%
14%
norte
norte
8%
centro-
oeste
11%
centro-
oeste
9%
nordeste
19%
30%
nordeste
Em 2020, 30% das bolsas destinadas a mulheres negras foram para o Nordeste. Em 2006, a proporção foi 19%.
sudeste
54%
Em 2006, 54% das
bolsas destinadas
a mulheres negras
foram para
o Sudeste
40%
sudeste
Tanto no Norte como no
Nordeste, o número de mulheres
negras que ingressaram no
ensino superior pelo Prouni mais
que triplicou entre 2006 e 2020
Fonte prouni
Acesso de mulheres negras a bolsas do Prouni, por região
% das bolsas por região e ano
2020
2006
7%
sul
sul
8%
14%
norte
norte
8%
centro-
oeste
11%
centro-
oeste
9%
nordeste
19%
30%
nordeste
54%
sudeste
40%
sudeste
Em 2006, 54% das bolsas destinadas a mulheres negras foram para o Sudeste
Em 2020, 30% das bolsas destinadas a mulheres negras foram para o Nordeste. Em 2006, a proporção foi 19%.
Tanto no Norte como no
Nordeste, o número de mulheres
negras que ingressaram no
ensino superior pelo Prouni mais
que triplicou entre 2006 e 2020
Fonte prouni
Hoje no último ano da bolsa de doutorado em comunicação na UFPE, Raíssa Santos, 34 anos, moradora do Recife (PE) cursou jornalismo na Universidade Católica de Pernambuco com 100% de bolsa pelo Prouni, em 2007. Criada em uma comunidade periférica ribeirinha chamada Vila Arrais, bairro da Várzea, zona norte do Recife, ela conta que foi uma das poucas pessoas negras de sua turma. “Tinha 60 pessoas e só duas negras, eu e meu amigo, que também era prounista”.
Acessar uma universidade de elite fazia com que Raíssa se sentisse como um “peixe fora d’água”.
A gente não saía para os mesmos lugares que os outros alunos porque não tinha dinheiro. E como tinha meta de nota para não perder a bolsa, o foco era estudar. Não tinha, naquela época, referências de mulheres como eu para me espelhar. Hoje sei que sou inspiração para muitas meninas da minha comunidade”
O objetivo de Raíssa é passar em um concurso federal para fazer um projeto de comunicação na comunidade de Vila Arrais, que fica próxima da Universidade Federal de Pernambuco. “Os jovens que moram lá trabalham como flanelinhas na universidade, mas não se sentem parte do campus. Quero ajudar a inserir esses jovens no ambiente acadêmico”.
ProUni facilitou acesso à universidade, mas há desafios
O ProUni prevê cotas para ocupação de vagas por pretos, pardos e indígenas de forma proporcional às populações desses grupos demográficos em cada estado. Enquanto o acesso das mulheres negras aos cursos mais concorridos aumentou 108% pelo Prouni, a participação de homens negros também cresceu em 63% e de pessoas indígenas e amarelas 51% no período analisado pela reportagem, o que revela o impacto do programa principalmente no acesso à educação superior de grupos minoritários.
De fato, o programa serviu como um fator de diversificação do perfil de estudantes, sobretudo nos cursos mais elitistas, como medicina e direito, por exemplo, mas ainda há muitas barreiras para um maior acesso de pessoas negras ao ensino superior, considera a professora do Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPR, Cláudia Baukat Silveira Moreira. Ela pesquisou o ProUni no seu doutorado e é autora da tese “Um olhar sobre o muro: avaliação do Programa Universidade para Todos”.
O ProUni incluiu pessoas na universidade que sem as bolsas não estariam lá. Mas ainda há muitos desafios. O primeiro é a falta de fiscalização do quanto as bolsas são distribuídas. O segundo é que o programa, sem querer, provocou uma reconfiguração do mercado de ensino superior privado no Brasil”
De acordo com a pesquisadora, antes do ProUni, havia as instituições com fins lucrativos e as beneficentes, que gozam de imunidade tributária. Por lei, essas últimas são obrigadas a aderir ao ProUni. As privadas stricto sensu não têm essa obrigação.
“O que aconteceu, ao longo dos anos, foi que muitas das beneficentes passaram a ser instituições privadas e isso tem relação tanto com o ProUni como com outros fatores econômicos”, explica. Para ela, também falta fiscalização para uma distribuição mais proporcional e justa das bolsas e para uma melhor qualidade no ensino superior particular. “Temos hoje poucos grupos privados assumindo o controle de várias faculdades. Além disso, a pandemia apressou a oferta da educação à distância com uma qualidade muito ruim.”
Simone Nascimento, integrante do Movimento Negro Unificado e co-deputada estadual de São Paulo pela Bancada Feminista, que se formou em jornalismo em 2016 através do ProUni, diz que o programa foi criado como uma política de transição, que deveria ter sido acompanhada de outras ações para fortalecimento da educação básica e da ampliação de oferta de vagas no ensino superior público. “Menos de 20% da juventude brasileira está na universidade. Então é possível sim no Plano Nacional da Educação dos próximos dez anos, pensar em uma transição da faculdade privada para a pública”, defende.
Mesmo dentro das universidades, mulheres negras ainda enfrentam muitos desafios para garantir sua permanência e conclusão dos cursos. No âmbito do ensino superior, as desigualdades sociais, econômicas e raciais se tornam ainda mais evidentes, segundo os relatos ouvidos pela reportagem.
A concessão de bolsas de estudos, sem o complemento de programas de permanência, faz com que a evasão escolar seja mais comum do que se imagina. Segundo os Censos da Educação Superior do MEC mais recentes, em 2021, a taxa de desistência dos estudantes de instituições privadas foi de 38,8% – o que equivale a uma perda de 2,19 milhões de estudantes. De acordo com reportagem da Folha de S.Paulo, o número vem seguindo uma tendência de crescimento observada desde 2017, quando a taxa de evasão nas instituições privadas era de 29,8%.
Sem apoio, Larissa não teria conseguido concluir a graduação. Durante o curso, mesmo com bolsa integral do ProUni, ela precisou contar com ajuda financeira dos pais para gastos com alimentação, xerox e transporte até o campus, que ficava há mais de 20 quilômetros de distância da sua casa. Além disso, enfrentou preconceito por ser a única mulher negra e bolsista. “Isso me impactou durante os quatro anos, a forma como eu lidava com a turma e como eu era acolhida e recebida”, lembra.
Para ela, não basta apenas inserir mulheres negras no ensino superior, sem promover um ambiente receptivo. “Essas dificuldades reforçam as barreiras para o ingresso de mulheres negras na universidade. É importante ter auxílio e incentivo também para que a gente permaneça.”
O Ministério da Educação não respondeu os questionamentos da reportagem até a publicação.
*Colaborou Ana Alice de Lima
Metodologia
Fizemos o download das bases de dados do Prouni (2006-2020) disponíveis no site do Ministério da Educação e as agregamos, formando uma única base com quase 3 milhões de casos. Codificamos as variáveis de interesse de acordo com tabelas de frequência realizadas no próprio banco de dados. Fizemos a associação de raça e sexo para criar variáveis interseccionais, com foco em mulheres negras.
Codificamos os cursos de ensino superior a partir de buscas por trechos dos nomes que não seriam afetados por erros de leitura de caracteres (exemplo: “administra” para cursos de Administração). A busca ocorreu em um documento em formato .html, construído a partir de uma tabela gerada na base de dados.
Para calcular quantos alunos acessaram o ensino superior por meio do Prouni, multiplicamos os cursos pela quantidade de ingressantes do programa em 2021, segundo o Censo da Educação Superior.
Diego Nunes da Rocha é graduado e mestre em Ciências Sociais pelo PPGSA/UFRJ e doutorando em Sociologia no IESP-UERJ. Pesquisador associado do Ceres (Centro para o Estudo da Riqueza e Estratificação Social), Diego tem interesse em estratificação social, em especial no campo educacional. É analista de dados da Gênero e Número.
Jornalista formada pela Universidade Católica de Pernambuco e pós-graduada pela Universidade Federal de Pernambuco. Foi repórter do coletivo de jornalismo investigativo e independente Marco Zero Conteúdo e da editoria de Economia do jornal Folha de Pernambuco. Já assinou matérias no The Intercept Brasil, em revistas da Editora Abril e em outras publicações. Participa do Atlas da Notícia, um mapeamento do jornalismo no Brasil, como pesquisadora do Nordeste. Atualmente é editora e repórter da Agência Pública de jornalismo investigativo.
Jornalista formada pela Escola de Jornalismo Énois e pela Universidade Anhembi Morumbi e pós-graduanda em Jornalismo Contemporâneo e Digital. Já teve reportagens focadas em território e gênero publicadas na Folha, HuffPost Brasil, The Intercept e Revista AzMina. Foi repórter também do ChecaZap (projeto de checagem de informação) nas eleições de 2018. Na Agência Pública desde 2019, é secretária de redação/editora de home. Antes, foi estagiária de reportagem e chegou a participar de coberturas reconhecidas pelo Prêmio Roche de Jornalismo em Saúde.
É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.
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