A matemática Juliane de Oliveira busca compreender fenômenos acompanhando padrões de comportamento por meio de fórmulas matemáticas |Foto: Divulgação

Matemática contra o coronavírus

Negra e da periferia de Salvador, a doutora em matemática Juliane Oliveira monitora e cria projeções sobre a contaminação do covid-19

Por Letícia Ferreira*, d’Azmina

  • Encarando desigualdades

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  • Políticas públicas foram essenciais

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A matemática tem ocupado um lugar essencial durante a pandemia do coronavírus: é por meio dela que é possível monitorar o impacto do novo vírus na população e tomar decisões para encarar a doença. Ou vai dizer que você estava acostumada a ouvir falar tanto em crescimento exponencial, curvas de crescimento, picos e taxas? E é exatamente para gerar previsões que informem a população e embasem o poder público que a matemática Juliane Fonseca de Oliveira, 31 anos, tem atuado.

“Com os modelos matemáticos, nós estudamos o impacto do isolamento social. Se o número de leitos clínicos suporta a diminuição do isolamento, por exemplo. São informações que ajudam os gestores de saúde a administrar o contágio da doença a nível local”, explica Juliane.

Mulher negra e periférica, Juliane é doutora em matemática pela Universidade do Porto e pela Universidade de Coimbra e uma dos 150 cientistas voluntários à frente da CoVida,  iniciativa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal da Bahia (UFBA) que reúne profissionais de diferentes áreas de estudo para mapear o efeito social, econômico e na saúde da disseminação da doença, como sociólogos, sanitaristas, nutricionais, epidemiologistas.

“Às vezes eu não acredito que eu, vinda no Bairro da Paz cheguei nesse nível”, diz Juliane. O Bairro da Paz é uma área da periferia de Salvador que nasceu de uma ocupação. Foi lá que a cientista viveu e estudou a maior parte da vida, sem nem imaginar que chegaria a estudar matemática e que estaria na linha de frente da ciência de enfrentamento a uma pandemia.

Com a chega do novo coronavírus ao Brasil, ela e cientistas de todo o país juntam esforços para buscar parcerias e criar soluções para o combate à pandemia. Juliane, que é pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs), da Fiocruz na Bahia, aplica na saúde seus conhecimentos de modelagem matemática, uma área que tenta compreender fenômenos acompanhando padrões de comportamento por meio de fórmulas matemáticas.

Na rede de pesquisa solidária CoVida, ela é um dos responsáveis pela manutenção de um painel de monitoramento sobre casos de covid-19 no país e por criar projeções. Juliane alimenta o modelo matemático da ferramenta com dados do Ministério da Saúde e de outras instituições que acompanham a evolução da doença.

Além de trazer os dados da realidade do país, a plataforma usa os modelos matemáticos para fazer uma projeção de até sete dias do cenário de disseminação do coronavírus. Outro interesse da cientista é observar fatores que influenciam a propagação do vírus, o que ela chama de heterogeneidade.

“Cada cidade tem suas características, condições de saúde, saneamento básico, transporte e as pessoas também carregam vulnerabilidades diferentes para adquirir a doença. Nós estudamos essas hipóteses”, explica.

Isso quer dizer que aplicando os modelos matemáticos aos dados sobre covid-19, Juliane quer compreender a dinâmica da doença na população brasileira em diferentes localidades e condições antes, durante e depois do pico da pandemia. Com isso, será possível entender os fatores que levaram ao aumento ou diminuição de casos e ajudar as pessoas a pensar formas de adaptar suas condições socioeconômicas na pandemia.

A cientista observa nos estudos que algumas intervenções, como o distanciamento social, são positivas para controlar a disseminação da doença. Para ela, esse trabalho é essencial também porque os números e gráficos tornam mais compreensíveis para as pessoas informações de algo que é abstrato.

Encarando desigualdades

O trabalho de Juliane é um ponto fora da curva no que diz respeito à presença de mulheres na matemática. Mulheres são apenas 26% das cientistas da área e recebem só 11% das bolsas de produtividade em pesquisa (PQ) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico (CNPq) nas áreas de matemática, probabilidade e estatística, segundo levantamento do G1 . Isso se soma ainda à questão racial: bolsistas do CNPq que se identificam como pretos e pardos não chegam a 30%, de acordo com levantamento da Gênero e Número.

Ainda na graduação, ela conviveu com essas desigualdades na sala de aula. Entre os 60 alunos do curso na Universidade Federal da Bahia de 2008, apenas cinco eram mulheres. Juliane acredita que esse cenário está em transformação, mas que o espaço para a voz das mulheres nas ciências exatas ainda é limitado. “Para assinar um estudo com um grupo de pesquisa, tem o primeiro autor, segundo autor. Os homens têm mais espaço e isso faz diferença”.

Filha de mãe passadeira e pai pedreiro, a pesquisadora é apaixonada por matemática desde criança. Juliane gostava de resolver todos os problemas dos livros que tinha acesso na escola pública. Foi um professor no terceiro ano do ensino médio que apresentou novas dinâmicas à ela nas aulas de matemática.

“Ele fazia desafios, explicava para a sala toda. Antigamente eu não percebia, mas hoje consigo ver: você está em uma aula de matemática, geralmente as perguntas são direcionadas para os meninos e isso acontece até na universidade”.

No mesmo ano, Juliane concorreu a uma vaga na licenciatura em matemática da Universidade Federal da Bahia, mas não passou. Ela percebeu com os exercícios da prova que estava muito aquém do que o exame exigia.

Mais velha entre quatro irmãos, ela começou a trabalhar em um emprego de meio período e no resto do tempo estudava sozinha e com o apoio de um cursinho gratuito. “Foi muito difícil. Minha mãe fez muito sacrifício para que os quatro filhos pudessem estudar. Quando consegui aquele trabalho, tudo o que eu ganhava ia para minha mãe”.

Políticas públicas foram essenciais

A trajetória acadêmica de Juliane contou também com políticas públicas. Após ingressar no curso de matemática da UFBA, ela frequentou as aulas graças a uma bolsa de apoio para estudantes de baixa renda.

Com outra política para a educação superior, o extinto programa de intercâmbio Ciência Sem Fronteiras, a matemática conseguiu uma bolsa para fazer o doutorado logo após a graduação. Portugal foi o país escolhido pela familiaridade com a língua, mas para a sua surpresa, o curso tinha aulas em inglês.

“Eu não perguntava, eu só copiava tudo. Tive que estudar inglês em casa, tentando praticar para conseguir fazer as coisas. Nas apresentações do primeiro ano eu memorizava tudo, era um teatro”. Após o sufoco com o idioma no doutorado, hoje Juliane se comunica bem e na avaliação final do doutorado recebeu um convite para colaborar com uma pesquisa sobre tuberculose em cinco países, incluindo o Brasil, sua estreia na aplicação de modelagem matemática na saúde.

Na volta ao Brasil, após quatro anos de doutorado no exterior, a matemática percebeu também as mudanças na universidade com mais estudantes negros. “Senti que estava finalmente vendo a cara da Bahia na Universidade Federal da Bahia”.

Antes de se dedicar voluntariamente ao grupo que estuda o novo coronavírus, a cientista pesquisava modelos matemáticos na Fiocruz para compreender os efeitos da zika, um vírus que teve um ciclo recente no Brasil. Juliane também estudou dengue e chikungunkya.

O banco de dados sobre as doenças combina diferentes bases de dados como o cadastro único, pesquisas do IBGE e outros repositórios para entender os fatores que determinam a contaminação. Assim, faz um retrato do antes, durante e depois dos ciclos das doenças no Brasil relacionando com aspectos socioeconômicos.

É o uso da matemática para ajudar a decidir os rumos da saúde no Brasil com base em dados – e não opiniões.

*Este conteúdo faz parte da parceria da Gênero e Número com Azminadata_labe e ÉNois na cobertura do novo coronavírus, com foco em gênero, raça e periferia

Lola Ferreira

Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.

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