Mulheres, mães, que deveriam, de acordo com a lei, estar em domicílio com seus filhos, mas que têm esse direito violado justamente pelo sistema judiciário. Esse é o cenário no Rio de Janeiro, de acordo com estudo recém-lançado pela Defensoria Pública do Estado. Entre agosto de 2018 e janeiro deste ano, 28% das mulheres que cumprem todos os requisitos para obtenção da prisão domiciliar foram mantidas em regime fechado no Rio.
Elas são gestantes ou mães de crianças pequenas, cometeram crimes sem violência ou ameaça e são majoritariamente negras e pobres. Amparadas pela recente lei federal 13.769/2018, elas deveriam ter sua prisão preventiva convertida em domiciliar, mas punições estabelecidas pela Lei de Drogas e decisões do Judiciário fazem com que apenas uma pequena parcela cumpra pena em domicílio.
A equipe da Defensoria acompanhou a audiência de custódia de 552 mulheres no período da pesquisa e identificou 161 com o perfil descrito pela lei que deveria lhes conceder o benefício da prisão domiciliar: além de serem gestantes ou mães de crianças com até 12 anos, não cometeram crime contra seus filhos nem qualquer ato com violência ou grave ameaça. Destas, 45 delas continuaram em presídios, 100 receberam a liberdade provisória e 16 receberam a prisão domiciliar. Ou seja, entre as presas, a maioria continua em presídios.
Os critérios sancionados pelo Executivo vêm na esteira de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de fevereiro de 2018. Na ocasião, a corte concedeu um habeas corpus coletivo às mulheres que se encaixavam neste perfil, e garantiu que os juízes devem converter a prisão. Até então, tal medida ficava a critério da decisão de cada magistrado. Em seu voto, o ministro Ricardo Lewandowski considerou a decisão “como sendo talvez a única solução viável para garantir o efetivo acesso destes à Justiça, em especial dos grupos mais vulneráveis do ponto de vista social e econômico”. Mas dados como esses da pesquisa realizada pela Defensoria mostram que esses grupos continuam sem garantia de direitos.
De todas as mulheres que passaram pela audiência de custódia no Rio, 74% eram negras e 81% não tinham advogado particular, dependendo, assim, da Defensoria Pública. Das 47 detentas que passaram pela audiência em janeiro, por exemplo, 70% moram nas zonas norte e oeste da capital fluminense. O Índice de Desenvolvimento Social do município, com escala de 0 a 1, mostra que essas regiões atingem 0,591 e 0,554, enquanto a zona sul, área mais visibilizada da cidade, de bairros como Ipanema e Copacabana, chega a IDS 0,722. A diretora de Estudos e Pesquisas de Acesso à Justiça da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Carolina Haber, acredita que há “um certo viés racista” do Judiciário e que isso deve ser levado em consideração na compreensão do cenário.
“Não basta você mudar a lei, tem que haver uma mudança de cultura no sistema de Justiça. E é muito difícil entrar na cabeça dos juízes e inserir questões importantes. Antes da lei, alguns deles falavam que não precisavam seguir a decisão do STF. Agora, com a lei, ainda há um julgamento moral da mulher, que por ser mãe deveria ser uma pessoa exemplar. Na verdade, pensam que é até um bem para a criança”, analisa Haber.
A decisão do Supremo observa, principalmente, a necessidade de a criança conviver com a mãe. Mas Haber observou que este argumento também é utilizado por juízes para manter as mulheres longe de casa, para que elas não influenciem “negativamente” os filhos. Por isso, a diretora acredita que a existência de uma equipe multidisciplinar, com assistente social e psicólogo, à disposição do juiz, poderia facilitar a conversão da prisão em regime fechado para domiciliar.
“Talvez se ele [juiz] soubesse que haverá um profissional para encaminhar a mulher para um emprego ou tratamento necessário, se sentiria mais seguro para não deixá-la presa. Tem muito juiz que também pensa que é melhor ela estar lá [na prisão] do que na rua”, contextualiza.
Lei de drogas sem proporcionalidade
A falta de estabilidade financeira acompanha as mulheres antes e depois do cárcere. Antes, a vulnerabilidade social e econômica é responsável por inseri-las na engrenagem do tráfico de drogas. Depois, a falta de oportunidades no mercado de trabalho e a marca do sistema prisional dificultam sua independência financeira. Esta é uma das observações de Ana Paula Pellegrino, pesquisadora do Instituto Igarapé e coautora do estudo “Na porta de saída, a entrada no trabalho: políticas para a expansão do emprego de presos e egressos no Rio de Janeiro”.
À Gênero e Número, Pellegrino explica que o lugar social que as mulheres pobres e negras ocupam refletem no cargo que elas geralmente ocupam nas organizações criminosas. A pesquisa da Defensoria Pública aponta que, entre as mulheres habilitadas a cumprirem a pena em casa, 69% foram enquadradas na Lei de Drogas. A lei 11.343, sancionada em 2006, especifica que, entre outras atividades, preparar, guardar ou entregar drogas ilícitas acarreta a mesma pena que vender ou expor. A pena é de cinco a 15 anos de reclusão. Pellegrino aponta critérios que prejudicam mais mulheres, a exemplo das chamadas “mulas”, que transportam drogas em viagens em troca de dinheiro, ou das mulheres que levam substâncias ilícitas para seus maridos em unidades prisionais.
“As mulheres muitas vezes se inserem em posições de baixo escalão na estrutura no tráfico de drogas, tendo funções não-violentas, e muitas vezes cumprem funções que no dia seguinte terão outra pessoa para substituí-la. Algumas dessas mulheres são, inclusive, coagidas por uma situação de ameaça ou por medo de o companheiro sofrer alguma violência. E a Lei de Drogas traz uma figura muito ampla do que é tráfico, e enquadra todos os comportamentos em um só”, observa. Ela explica que isso acaba prejudicando a proporcionalidade da punição. “Pune mais as pessoas que estão mais abaixo [na hierarquia], que também são aquelas mais fáceis de prender.”
Para reverter este quadro, uma comissão juristas entregou ao presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia (DEM/RJ), em fevereiro deste ano, um anteprojeto de lei para atualização da Lei de Drogas. Capitaneada pelos ministros Ribeiro Dantas e Rogerio Schietti Cruz, ambos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), a comissão agora espera que a Câmara dê prosseguimento às discussões propostas no anteprojeto, mas ainda não há previsão de datas.
O texto prevê dois a cinco anos de detenção para transporte de drogas ilícitas sob coação, sendo que o juiz pode deixar de aplicar ou diminuir em até 50% “se, em razão do transporte, o agente é obrigado a enfrentar perigo concreto a sua vida ou saúde, situação desumana ou degradante”. A mesma pena é observada para quem tenta entrar em unidades prisionais com drogas.
Pesquisadora do sistema prisional e da política de drogas, Pellegrino analisa como positiva essa possível atualização. “Essas mulheres se envolveram com o tráfico, mas em um crime pequeno, que merece uma pena proporcional. Elas não são atores violentos, não representam risco iminente à sociedade, portanto poderiam ter penas alternativas à prisão”, destaca.
Exemplo na Costa Rica
Na Costa Rica, uma lei de 2013 levou em consideração a questão de gênero para garantir a proporcionalidade na aplicação das penas e punições para tráfico de drogas. O texto altera a lei de drogas do país e garante diminuição de pena específica para mulheres que estejam em condição de pobreza, sejam chefes de famílias em situação vulnerável, responsáveis por menores de idade, ou caso ela mesma seja uma pessoa idosa em condição vulnerável. A lei prevê que o juiz também converta a prisão em domiciliar ou ofereça punições alternativas ao regime fechado.
Por enquanto, no Rio de Janeiro, a Defensoria Pública cobra o cumprimento da lei mais recente, enquanto age individualmente. Neste ano, 20 casos foram notificados ao Supremo Tribunal Federal como exemplo de que o Judiciário fluminense não cumpre os critérios para a prisão domiciliar. Paralelamente, para toda mulher atendida pelo órgão que não é colocada em liberdade provisória após a audiência de custódia é pedido um habeas corpus individual.
*Lola Ferreira é jornalista e colaboradora da Gênero e Número.
Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.
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