Procedimentos de laqueadura caem e acesso esbarra em desinformação

Cirurgias têm redução de quase 50% entre 2019 e 2021 e encontram obstáculos nas redes pública e privada de saúde; projeto de lei que facilita o acesso à laqueadura tem poucas chances de avançar no Senado em ano eleitoral

Por Agnes Sofia Guimarães*

  • Controle da Justiça sobre os corpos  

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  • Laqueadura e gravidez indesejada

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Aos 25 anos, a estudante Marília Santos** diz que tem uma certeza: não deseja ter filhos. Em um relacionamento em que o namorado compartilha da mesma opinião, sua escolha não é bem aceita pela família. No entanto, o choque veio quando procurou a médica do seu convênio para entender como fazer o procedimento de laqueadura — cirurgia de esterilização voluntária, em que as trompas de pessoas com útero são amarradas, ou cortadas, evitando que óvulos e espermatozóides se encontrem na fecundação. 

Além de alegar que Marília poderia se arrepender do procedimento, a médica também a informou que, pelo convênio, só era possível realizar a laquedura caso a paciente comprovasse que era portadora de alguma doença mental irreversível, como esquizofrenia, ou estivesse em estágio terminal de alguma doença, como o câncer. 

“Minha família concordou com a médica. Ainda tive que ouvir isso: ‘você não quer ter filhos e seu atual namorado também não, mas se você se separar e depois encontrar um homem que queira filhos…’ E eu disse: ‘se eu quiser também, terei de adotar, e se eu quiser muito, por mais difícil que seja, vou lutar para isso’. Mas ainda assim ouvi que a criança não seria do meu sangue, logo, não poderia saber sobre sua índole”, desabafa.

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Hoje, podem realizar a laqueadura pessoas com mais de 25 anos ou que já tenham dois filhos vivos, segundo a Lei 9263/96, do Planejamento Familiar. O texto também estabelece a necessidade de autorização dos cônjuges para este procedimento e a vasectomia — cirurgia em pessoas com testículos.

No entanto, a Câmara dos Deputados aprovou, em março de 2022, um projeto de lei que visa à diminuição da idade mínima para a realização da laqueadura, de 25 para 21 anos. A proposta (PL 7364/14), da deputada Carmen Zanotto (Cidadania/SC), também prevê o fim da necessidade de autorização do cônjuge para o procedimento. Encaminhada para o Senado, ela não tem previsão de votação.

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Controle da Justiça sobre os corpos  

Mesmo quando pacientes atendem aos requisitos da lei, há obstáculos para quem busca a laqueadura. Segundo dados do Sistema de Informação Hospitalar, do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), a realização de laqueaduras caiu pela metade entre 2019 e 2021. Se em 2019 foram 39.917 cirurgias realizadas, em 2021 foram apenas 20.837. De acordo com a última edição da Pesquisa Nacional de Saúde (maior censo realizado no país sobre o acesso à saúde da população), em 2019,17,3% das mulheres que tiveram relações sexuais nos doze meses anteriores fizeram laqueadura. 

Perfil das mulheres que fazem laqueadura

Dados de 2019 mostram que negras são quase o triplo de brancas

raça

Negras

2.804

Brancas

990

Indígena

36

Amarela

24

estado civil

49%

solteira

42%

casada

Negras

7%

divorciada

viúva

2%

casada

56%

solteira

31%

Brancas

divorciada

11%

viúva

2%

casada

56%

solteira

33%

Indígenas

divorciada

8%

viúva

3%

50%

solteira

42%

casada

Amarelas

divorciada

8%

faixa etária

1.723

1.517

316

287

11

18 a 29

anos

30 a 39

40 A 49

50 a 59

60+

fonte Pesquisa Nacional de Saúde

Perfil das mulheres que fazem laqueadura

Dados de 2019 mostram que negras são quase o triplo de brancas

raça

Negras

2.804

Brancas

990

Indígena

36

Amarela

24

estado civil

Negras

solteira

49%

casada

42%

divorciada

7%

viúva

2%

Brancas

casada

56%

solteira

31%

divorciada

11%

viúva

2%

Indígenas

casada

56%

solteira

33%

divorciada

8%

viúva

3%

Amarelas

solteira

50%

casada

42%

divorciada

8%

faixa etária

18 a 29 anos

316

30 a 39

1.517

40 A 49

1.723

50 a 59

287

60+

11

fonte Pesquisa Nacional

de Saúde

A pandemia pode ter afetado a diminuição das cirurgias, mas a desinformação também ajuda a explicar a resistência ao procedimento. Em muitos casos, profissionais de saúde chegam a falar sobre exigências que não correspondem à verdade, como a necessidade de não só ter a idade mínima para o procedimento, como comprovar a existência de dois filhos vivos — pela lei, esses critérios não precisam acontecer ao mesmo tempo.

Advogada e pesquisadora de Direito em Fortaleza (CE), Patricia Marx confirma que, nos hospitais da cidade, muitos profissionais negam o pedido de pacientes por não conhecerem informações básicas da lei, como a idade mínima para o procedimento. 

“Mesmo com a lei, pessoas com zero filhos encontram muitas dificuldade quando vão atrás da cirurgia de laqueadura e vasectomia. Tem profissionais que não sabem a idade mínima para o procedimento, além de hospitais em Fortaleza que não atendem pessoas solteiras. É um movimento generalizado de falta de informação, e nisso observamos que a lei não é o suficiente”, denuncia. 

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Para Amanda Muniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI) e do Lilith – Núcleo de Pesquisa em Direito e Feminismos, é possível identificar o que ela define como um “viés controlador” do Judiciário: uma necessidade de aplicar a lei que não olha, necessariamente, para os direitos de escolha das mulheres que entraram com o pedido, mas sim para questões estruturais e com forte sentido racial. Muniz analisou processos sobre laqueadura em Santa Catarina entre 2015 e 2016. 

“Encontramos decisões em que, quando o Judiciário autoriza o procedimento, não o faz porque está reconhecendo os direitos reprodutivos da mulher, mas porque compactua com uma ideia de eugenia mesmo. Quem é a maioria da população pobre do Brasil? São pessoas negras. Por isso, também temos que ter cuidado ao analisar essa autorização, pois esse mesmo Judiciário também autoriza esterilizações involuntárias em mulheres negras em situações de rua, por exemplo”, alerta. 

Em casos de negativa da laqueadura, e da necessidade de buscar respostas na Justiça, ela acha importante documentar todo o processo, uma vez que não há consenso da decisão que deve ser tomada quando a paciente resolve denunciar o erro médico após uma gravidez indesejada – diversos processos tiveram resultados diferentes (a favor ou não da paciente) devido à falta de documentos explicando como havia sido o diálogo entre hospital, médico e paciente. 

“É necessário que o médico converse sobre todos os riscos da cirurgia, inclusive sobre a reversibilidade, (já que a laqueadura não é 100% eficaz), e a paciente precisa assinar um documento afirmando que foi informada sobre tudo e que está ciente dos riscos. Ela também precisa acessar outros métodos contraceptivos”, destaca a pesquisadora.

Laqueadura e gravidez indesejada

Na Justiça, mulheres que têm o direito à laqueadura negado nem sempre encontram garantia de apoio. A Gênero e Número fez um levantamento das decisões jurídicas sobre o tema entre 2019 e 2021 nos quatro dos maiores Tribunais de Justiça do país, ou seja, aqueles com mais comarcas que tratam do assunto, de acordo com o último relatório do Conselho Nacional de Justiça (CNJ): São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná e Bahia. Os casos mais comuns estão relacionados a pacientes que alegam erro médico nas situações em que a laqueadura, previamente combinada, não foi feita logo após a cesariana, ou que, quando realizada, acarretou em gravidez indesejada. Nestes casos, a paciente alega não ter sido informada de que o procedimento não era 100% eficiente. 

Patricia Marx teve muita dificuldade para realizar a laqueadura. Desde a adolescência, ela sabia que não queria ter filhos. A batalha que enfrentou a levou a criar o projeto “Laqueadura sem filho”, em que busca compartilhar com internautas dicas do que fazer quando o médico ou o hospital não aceitam realizar a laqueadura, além de informações sobre o acesso a outros métodos, inclusive a vasectomia para os homens.

“Apesar de minha pesquisa ser focada na autonomia da mulher e eu não ter dados quantitativos sobre homens, chama a atenção como até mesmo eles têm dificuldade de realizar a vasectomia e acabam carregando estigmas quando não querem a paternidade”, destaca. 

Em relação aos avanços do PL 7364/14, Marx acha importante controlar o entusiasmo. A advogada lembra que há outros projetos que propõem mudanças para o acesso à esterilização voluntária, mas que ainda não chegaram à mesa principal de votação da Câmara. Por outro lado, ela observa o momento eleitoral desfavorável para a pauta. É o ano em que o Senado vai renovar um terço de seus senadores, o que pode prejudicar o andamento do projeto. 

“Não é um tema que podemos dizer que é prioridade. Esse projeto que passou na Câmara ficou oito anos à espera de uma votação. Infelizmente, o ano eleitoral só diminui as possibilidades, ainda mais sobre algo que envolve a liberdade do corpo diante do Estado”, ressalta.

*Agnes Sofia Guimarães foi colaboradora da Gênero e Número

**O nome da entrevistada foi alterado para preservar sua identidade

Agnes Sofia Guimarães Cruz

Jornalista e pesquisadora. É Mestre em Comunicação pela UNESP e atuamente está concluindo o Doutorado em Linguística Aplicada pela Unicamp, em pesquisa sobre Ativismo de Dados e Segurança Pública. Já publicou em sites como Agência Pública, Ponte Jornalismo, Gênero e Número, Porvir e UOL. Em 2015, foi uma das finalistas do Prêmio Jovem Jornalista, do Instituto Vladimir Herzog. Atua como jornalista freelancer em temas ligados a gênero, raça, tecnologia e educação, e também atua como consultora de projetos de pesquisa e orientados por dados. Gosta de praia, música e escreve poesia às vezes.

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