Hospitalizações por aborto no SUS caem 18% em 10 anos
Redução na taxa de fecundidade, aumento no uso de contraceptivos e acesso à informação sobre aborto com medicamentos estão entre hipóteses apontadas por especialistas
O número de hospitalizações por aborto na rede pública de saúde, que atende nove em cada 10 casos no Brasil, passou de 190 mil, em 2013, para 156,4 mil, em 2022 — o que representa uma redução de 18% em 10 anos.
O levantamento da Gênero e Número a partir do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) considera hospitalizações por aborto espontâneo, aborto por razões médicas e legais, outros tipos de aborto, aborto não especificado, outros produtos anormais da concepção, falha de tentativa de aborto e complicações consequentes a aborto e gravidez ectópica ou molar.
Pesquisadores apontam que os abortos inseguros que chegam ao sistema hospitalar costumam ser registrados como aborto não especificado, falha na tentativa de aborto e outros tipos de aborto. Mas especialistas ouvidos pela reportagem acreditam que boa parte dos abortos espontâneos corresponda a abortos induzidos, uma vez que a informação pode ser omitida pela paciente em razão do estigma e do medo provocado pela criminalização.
As hospitalizações por aborto espontâneo e aborto não especificado, que somadas representam 65% do total, tiveram queda de mais de 30% na última década.
Já o número de internações registradas como falha na tentativa de aborto, que correspondem a menos de 1% do total, apresentou oscilações e aumento nos registros. A categoria responde pela maior proporção de mortes na série histórica, como mostramos em levantamento inédito publicado em setembro.
Os resultados do Censo Demográfico 2022, por sexo e idade, divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que a população brasileira está envelhecendo, o que pode ser explicado, em parte, pela redução da taxa de fecundidade, ou seja, a diminuição no número de filhos por mulheres.
A redução da taxa de fecundidade associada ao aumento do uso de contraceptivos é uma das principais hipóteses para explicar a queda nas hospitalizações por aborto, segundo Greice Menezes, pesquisadora do Programa Integrado Gênero e Saúde (Musa), do Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia.
Greice considera que as 156,4 mil hospitalizações registradas em 2022 são o piso dos abortos que acontecem no Brasil – o número mínimo -, já que muitos procedimentos são finalizados com o uso de medicamentos e sem a necessidade de internação. Para a pesquisadora, a queda no número de gestações ao longo das últimas décadas impacta o número de abortos.
“Hoje, as mulheres têm um número menor de filhos em comparação com a década de 1970. E as pesquisas já mostravam isso, com diferenciais importantes no Norte e no Nordeste, entre mulheres mais escolarizadas e menos escolarizadas, entre mulheres negras e brancas”, explica.
Outra hipótese é o crescente uso do misoprostol — medicamento conhecido no Brasil pelo nome comercial Cytotec, indicado para o tratamento de úlceras gástricas, mas também usado como abortivo e indutor do parto.
A técnica medicamentosa para interrupção da gravidez prevê o uso combinado de mifepristona e misoprostol ou o uso isolado de misoprostol. No Brasil, porém, o único medicamento disponível é o misoprostol e seu uso é restrito a hospitais cadastrados.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda o aborto medicamentoso até a 12ª semana de gestação, desde que orientado por profissionais capacitados. A criminalização, porém, empurra as pessoas que querem interromper a gestação para o mercado clandestino, onde compram medicamentos de procedência duvidosa e recebem orientações que nem sempre são adequadas, o que pode levar a complicações.
Ainda assim, o uso do medicamento é seguro e são poucos os casos que demandam finalização do procedimento no hospital, aponta Greice.
Ainda que obtido no circuito de drogas ilícitas e sem a combinação com a mifepristona, o misoprostol tornou o aborto mais efetivo e, sobretudo, mais seguro. Mesmo sem o acompanhamento de um profissional de saúde, com a prescrição feita pelo balconista da farmácia ou por aquilo que a pesquisadora Débora Diniz chama de cultura compartilhada sobre o aborto”
Para Shisleni Oliveira-Macedo, coordenadora de parcerias para América Latina na Women First Digital, as redes feministas que oferecem apoio, informação e cuidado a quem decide abortar também têm impacto na redução de hospitalizações. As orientações, oferecidas voluntariamente, incluem o acompanhamento desde a decisão de abortar até a conclusão do procedimento.
“O alcance das redes de apoio é menor do que o dos traficantes, que se passam por feministas e vendem medicação com orientações absurdas. Como o medicamento é muito seguro, ainda assim, o seu uso gera poucas hospitalizações”, acrescenta Shisleni.
Outros fatores contribuem para a redução das hospitalizações por aborto são o aumento da escolarização das mulheres e do acesso à informação, a maior oferta de contraceptivos, especialmente os de longa duração, como o dispositivo intra-uterino (DIU) e o anticoncepcional subcutâneo (dispositivo com hormônios implantado sob a pele), e a melhoria em programas de planejamento familiar no Sistema Único de Saúde (SUS).
“Existe um processo de melhoria de métodos [contraceptivos]. Algumas secretarias incorporaram o implante [subcutâneo] em alguns grupos vulneráveis, principalmente adolescentes e usuárias de drogas”, avalia Cristião Rosas, ginecologista, obstetra e coordenador da Rede Médica pelo Direito de Decidir.
Muitas das que recorrem às redes feministas de apoio ao aborto já têm filhos e foram abandonadas pelos parceiros. Além da necessidade de realizar o aborto, uma das principais demandas compartilhadas por elas é a fome. Há situações em que as voluntárias da rede de acompanhantes precisam arrecadar dinheiro para oferecer uma cesta básica e garantir que a pessoa que aborta se alimente bem durante o procedimento com medicamentos, pois um dos efeitos colaterais é a diarreia.
“Em casos de subnutrição ou de alimentação insuficiente, isso pode trazer riscos, porque ela pode ter uma queda de pressão e desmaiar”, conta Maria*, integrante de uma das redes de acompanhantes de aborto.
A segunda demanda mais recorrente, especialmente entre as mulheres em situação de vulnerabilidade, é a violência doméstica. Em um dos casos atendidos por Maria*, após realizar o aborto, a mulher conseguiu sair do ciclo de violência doméstica e fugir com os dois filhos para a casa de um parente.
Ela nos disse que ter conversado com alguém e recebido orientações a ajudou a criar coragem para fugir de casa. Pesou também o fato de estar aliviada por não ter que cuidar de mais um bebê, que a vincularia ainda mais ao seu agressor”
Nem todas, porém, têm para onde fugir.
“Os casos que atendemos são emocionalmente demandantes. Então, a gente compartilha as histórias umas com as outras, dentro da rede, para trocar orientações e apoio. Porque a gente sabe que quando o dinheiro [doado] acabar, ela vai voltar a viver em insegurança alimentar ou vai continuar morando com aquela pessoa violenta, pois não tem outro lugar para ir”, desabafa Maria*.
Abortos legais crescem, mas ainda há barreiras
As hospitalizações por aborto por razões médicas e legais, que compreendem os procedimentos permitidos por lei no Brasil (gravidez decorrente de estupro, risco para a vida da gestante e anencefalia do feto) aumentaram 42% nos últimos 10 anos. Apesar do crescimento, o número de abortos legais é muito pequeno se comparado aos demais e representa apenas 1% do total.
Os especialistas apontam que ainda há barreiras no serviço de saúde pública para garantir o direito a interromper legalmente a gestação, como falta de informação dos próprios profissionais que trabalham na rede pública, falta de compartilhamento de informações com o público, escassez de equipes treinadas nas unidades de saúde e resistência de alguns profissionais, que alegam objeção de consciência, mesmo em casos legais.
Mesmo com todos esses obstáculos, Helena Paro, obstetra e coordenadora do Núcleo de Atenção Integral a Vítimas de Agressão Sexual (Nuavidas), do Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), acredita que as redes e os profissionais de saúde que apoiam o serviço do aborto legal têm contribuído para o maior acesso ao direito ao aborto.
Essa é a nossa resistência, nos serviços de saúde brasileiros, em se qualificar mais e também em colocar, junto à mídia, as informações sobre os direitos das mulheres”
Já Cristião Rosas destaca que o preenchimento das categorias de aborto no sistema de saúde já foi bastante problemático, mas tem melhorado com o passar dos anos, o que também pode impactar no maior registro de abortos legais.
As barreiras para realizar o aborto legal, no entanto, podem ocorrer antes de chegar ao serviço de saúde. Foi o que aconteceu com uma adolescente de 16 anos que procurou as redes feministas para realizar o procedimento.
Ao conversar com uma das voluntárias, a jovem descobriu que tinha direito ao aborto legal, pois havia sido vítima de estupro. Como é menor de idade, precisou da autorização dos pais, mas teve o pedido negado por eles.
Segundo Maria*, a adolescente foi obrigada a prosseguir com a gravidez indesejada, fruto de uma violência. Como o estupro ocorreu em uma festa, os pais atribuíram a responsabilidade da violência à vítima, com a justificativa de que a filha teria assumido o risco.
“A gestação entrou como uma espécie de punição”, lamenta Maria*.
*Maria é uma mulher comum, que pode já ter abortado ou ter ajudado alguém a abortar. Segundo a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA), o aborto é um fenômeno frequente entre mulheres de todas as classes sociais, grupos raciais, níveis educacionais e religiões.
Metodologia
Realizamos o download das bases de dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH) no site do datasus (https://datasus.saude.gov.br/transferencia-de-arquivos/#), filtramos apenas os casos cujo CID-10 principal foi entre “o02” e “o089” e as agregamos, mês a mês, para os anos de 2013 a 2022. Além disso, codificamos as variáveis de interesse de acordo com tabelas de frequência realizadas no próprio banco de dados. O download foi realizado em 25/09/2023.
Obs: o estado de Roraima não apresentou dados para os códigos do CID-10 analisados no mês de junho de 2022.
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Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.
Diego Nunes da Rocha é graduado e mestre em Ciências Sociais pelo PPGSA/UFRJ e doutorando em Sociologia no IESP-UERJ. Pesquisador associado do Ceres (Centro para o Estudo da Riqueza e Estratificação Social), Diego tem interesse em estratificação social, em especial no campo educacional. É analista de dados da Gênero e Número.
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