Os impactos físicos e biológicos de uma gravidez na infância
A interrupção da gestação mesmo após 22 semanas é mais segura do que o parto no caso de crianças, que ainda estão em fase de crescimento; pediatra afirma que o mais preocupante é o dano psicológico, ‘que pode durar anos, décadas para ser superado’
Casos como o da menina negra de 10 anos grávida, estuprada pelo tio desde os 6, que ganhou o noticiário na última semana, não são incomuns. O sistema público de saúde registrou, somente em 2018, 21.172 nascidos vivos com mães entre 10 a 14 anos. O número alto assusta principalmente se olharmos sob a ótica da legalidade: de acordo com o Código Penal, relações sexuais com meninas de até 14 anos configuram estupro de vulnerável, e isso independe de consentimento ou relacionamento prévio, como esclarece o Supremo Tribunal de Justiça. Sob o ponto de vista médico, uma gestação também é, física e mentalmente, muito penosa para uma criança.
Nada disso foi levado em conta pelas pessoas que pressionaram não só a família como os médicos que realizaram o procedimento na menina capixaba, em um hospital de Recife. Com o argumento de que a menina não precisaria abortar, poderia “somente parir e entregar à adoção”, o grupo contrário ao aborto em qualquer situação desconsiderou os inúmeros efeitos físicos e psicológicos da gravidez.
Especialistas explicam que não há como passar incólume por uma gestação. A bexiga é pressionada, o fígado “sobe” e fica espremido entre o pulmão e o intestino, a produção hormonal aumenta. Há impactos na pressão arterial, sem falar da fadiga, do aumento dos seios e, claro, do peso aumentando gradativamente na barriga. A circulação sanguínea é afetada, pode haver varizes e dores nas pernas. Além de enjoos, vômitos e azia. Em corpos que ainda não estão formados, os efeitos físicos ainda podem ser outros.
“Uma menina de 10 anos de idade provavelmente teve sua primeira menstruação por volta dessa idade. Estando na puberdade, em fase ainda de crescimento, ela necessita de mais nutrientes para o estirão puberal. Uma gravidez, neste contexto, poderia inclusive tornar a criança desnutrida para suprir o feto”, afirma a pediatra Jéssica Nicole Oliveira.
O fato também chama a atenção da Rede Médica pelo Direito de Decidir. Na esteira do aborto da criança de 10 anos, os médicos divulgaram um documento com “Cinco lições que o Brasil deve aprender com o caso da menina”.
O texto alerta para a importância de interromper a gravidez quando a gestante não está em plenitude reprodutiva, o que acarreta maior taxa de complicações obstétricas. Os dados do Ministério da Saúde mostram que, em 2018, nove meninas tiveram morte materna obstétrica direta. Destas, cinco eram negras.
Além dos riscos para a criança que gesta, “colocar para adotar” também não é tão simples, pois bebês nascidos de meninas correm mais riscos, e a gravidez precoce está relacionada a um número mais alto de mortalidade infantil. A Rede Médica pelo Direito de Decidir aponta que eles podem apresentar mais casos de “baixo peso ao nascer, complicações neonatais e mortalidade”.
Idade gestacional
Garantido por lei e amparado pelos estudos científicos, o aborto de meninas de até 14 anos, bem como qualquer interrupção de gravidez prevista na legislação brasileira, não tem limite de idade gestacional. Ainda assim, a menina de 10 anos precisou se deslocar para um estado que aceitasse fazer o procedimento. Não era necessário.
Em casos como este, a vulnerabilidade social e econômica, a demora em reconhecer a gestação e o baixo acesso a serviços de saúde explicam a busca pelo serviço somente no segundo semestre de gravidez, de acordo com a Rede.
Mas os médicos afirmam: ainda que alguns possam julgar arriscado o aborto a partir das 22 semanas, ele ainda é mais seguro do que o parto. “Podemos evitar o trauma biológico de uma gestação, interrompendo-a em tempo hábil”, afirma Jéssica Oliveira. E ressalta: “o dano psicológico sofrido pode durar anos, décadas para ser superado”.
Formação psicológica
A Rede também aponta que, nesta idade, crianças não têm sua formação cognitiva e psicossocial completas. Para Oliveira, o senso comum acredita que meninas “amadurecem mais cedo”, mas não é real:
“Saúde é o bem-estar físico, psicológico e social de uma pessoa”, afirma a pediatra. Em casos como o da menina do Espírito Santo, portanto, todas as áreas são atingidas, “mas o que mais vai implicar em longo prazo, é a saúde mental”.
A menina capixaba, que não teve sua identidade revelada, deixou o hospital na madrugada de quarta-feira (19). Seu destino também foi mantido em sigilo, mas sabe-se que ela não voltará para São Mateus (ES), onde morava, para não correr risco de ser hostilizada por grupos anti-aborto, e que também poderá ter que mudar de nome se entrar para algum programa de proteção oferecido pela Secretaria Estadual de Direitos Humanos do Espírito Santo.
“O dano à saúde mental da criança pode ser maior que a situação biológica em si. Há uma questão social gravíssima relacionada à cultura do estupro e da culpabilização da vítima que deve ser combatida”, alerta a pediatra Jéssica Oliveira.
Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.
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