Entre as gestantes e puérperas mortas por covid-19, 54% são negras
Elas também foram a maioria das gestantes contaminadas pelo vírus (56%) e das que apresentaram casos mais graves da doença, com necessidade de internação e de leitos de UTI; especialistas apontam a falta de assistência obstétrica e o racismo estrutural na saúde como as principais justificativas para esse cenário
O impacto da covid-19 nas gestantes e a mortalidade materna pelo vírus tem cor. Desde o início da pandemia, as mulheres negras foram 1.095 das gestantes e puérperas que morreram da doença, o que representa 54% deste grupo até 23 de março de 2022, segundo dados do Observatório Obstétrico Brasileiro, que reúne informações e análises dos casos de gestantes e puérperas notificados no Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe (SIVEP-Gripe).
As gestantes e puérperas negras também foram as mais contaminadas pelo vírus (56%), em comparação com brancas (42%), indígenas (0,9%) e amarelas (0,8%). Somente em 2021, foram 5941 gestantes e puérperas negras com covid-19. Elas também foram as que mais desenvolveram complicações, representando 48% do total de internações, e utilizaram 47,5% dos leitos de UTI entre as mulheres desse grupo.
Para Carla Andreucci Polido, obstetra e professora na Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), não há notícia de outro país que tenha tido um número tão significativo de morte materna por covid como o Brasil. Uma pesquisa publicada no periódico médico International Journal of Gynecology and Obstetrics, em 2020, já mostrava que o país estava na dianteira das mortes de grávidas no mundo (era responsável por 77%).
O Brasil, segundo Polido, deixa a desejar em relação à redução de morte materna há muito tempo, e isso está diretamente relacionado ao acesso à saúde. Existe um prejuízo à saúde obstétrica no país por conta de falhas em várias etapas do atendimento. No caso da morbidade materna grave e da morte materna, ela destaca que os estudos propõem a teoria das três demoras que justificam esse cenário: no atendimento, na identificação do fator de risco e no acesso ao lugar de atendimento e procedimentos tardios ou inadequados no atendimento a essa gestante.
“Não existe uma questão biológica envolvida, é uma questão de racismo estrutural que ainda impacta negativamente uma população brasileira. Mesmo as gestantes brancas sofrem com essas demoras relacionadas à assistência obstétrica, mas isso atinge mais a população mais vulnerável, como mulheres pretas e pessoas que moram nas periferias de grandes centros ou no interior do Brasil”, pontua a obstetra. “As pretas têm uma maior vulnerabilidade de acesso à saúde. Nas mesmas condições das mulheres brancas, elas chegam e são intubadas mais tardiamente, por isso, têm uma resposta pior porque o tratamento chega mais tarde. Estamos falando do acesso à saúde limitado a essa esfera da população”.
Um estudo da Universidade de Oxford, publicado em julho de 2020, já apontava para esse cenário. De acordo com a análise, a mortalidade de mulheres negras grávidas ou no pós-parto devido à covid-19 era quase o dobro da observada em mulheres brancas pela mesma causa no Brasil. Além disso, o estudo evidencia que mulheres negras foram internadas em pior estado e apresentaram maiores taxas de internação em unidade de terapia intensiva, ventilação mecânica e óbito. Para os pesquisadores, o racismo e o sexismo, assim como a falta de acesso à saúde e de oportunidades para a população negra, “aprofundam a tragédia das mortes maternas por covid-19, particularmente quando o país não está adotando medidas verdadeiramente eficazes de contenção da pandemia”.
A pesquisadora e doutora em Saúde Pública com ênfase em Epidemiologia (ISC/UFBA) Emanuelle Góes concorda. “Na verdade, a covid evidenciou o que a gente já vivia particularmente, as mulheres negras já lideravam as mortes maternas antes do contexto da pandemia. E a gente atribui isso ao racismo estrutural e às diversas barreiras que as mulheres negras sofrem até chegar ao serviço de saúde. Elas sofrem barreiras territoriais, de acesso e institucionais. Isso mostra um mapa da desigualdade que vai direcionando as gestantes e puérperas negras para a morte, infelizmente”.
covid entre gestantes e puérperas negras
21,7 mil
mulheres gestantes e
puérperas tiveram covid
desde o início da pandemia
12,4 mil
2021
6,9 mil
casos
2020
2,4 mil
2022 até
23 de março
2,2 milhões
de doses de vacinas em gestantes foram aplicadas
1a dose
1 milhão
2a dose
900 mil
3a e 4a dose
300 mil
Desde o início da pandemia, 56% das gestantes e puérperas que tiveram covid eram mulheres negras
amarelas
0,8%
indígenas
0,9%
brancas
42%
negras
56%
A maior parte das mulheres negras foi contaminada no
3° trimestre da gestação
puerpério
1° trimestre
2° trimestre
3° trimestre
1 a 3 meses
de gestação
3 a 6 meses
6 a 9 meses
45 a 60 dias
pós-parto
7%
19%
51%
19%
48% das gestantes internadas eram mulheres negras; 47% foram para a UTI
internadas
uti
negras
negras
brancas
brancas
36%
37%
48%
47%
NA*
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14%
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amarelas
*casos em que não se tem informações
indígenas
0,8%
0,8%
indígenas
amarelas
0,4%
0,7%
Das gestantes curadas, 47% eram negras; 54% das que morreram também
curadas
óbitos
negras
brancas
negras
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37%
33%
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54%
NA*
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14%
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indígenas
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*casos em que não se tem informações
0,8%
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amarelas
indígenas
0,7%
0,7%
54%
dos casos de covid-19 sem informações (NA) sobre recuperação ou morte são de mulheres negras
Parte das mulheres gestantes e puérperas tiveram que se deslocar de suas cidades em busca de atendimento
63%
foram atendidas
em seu próprio município
37%
tiveram que se deslocar
47%
delas eram negras
fonte Observatório Obstétrico Brasileiro
Última atualização 23 de março de 2022
covid entre gestantes e puérperas negras
21,7 mil
mulheres gestantes e
puérperas tiveram covid
desde o início da pandemia
12,4 mil
2021
6,9 mil
casos
2020
2,4 mil
2022 até
23 de março
2,2 milhões
de doses de vacinas em gestantes foram aplicadas
1a dose
1 milhão
2a dose
900 mil
3a e 4a dose
300 mil
Desde o início da pandemia, 56,2% das gestantes e puérperas que tiveram covid eram mulheres negras
amarelas
0,8%
indígenas
0,9%
brancas
42%
negras
56%
A maior parte das mulheres negras foi contaminada no
3° trimestre da gestação
1° trimestre
1 a 3 meses
de gestação
7%
2° trimestre
3 a 6 meses
19%
3° trimestre
6 a 9 meses
51%
puerpério
45 a 60 dias
pós-parto
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48% das gestantes internadas eram mulheres negras; 47% foram para a UTI
internadas
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*casos em que não se tem informações
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*casos em que não se tem informações
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Das gestantes curadas, 47% eram negras; 54% das que morreram também
curadas
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*casos em que não se tem informações
amarelas
0,8%
indígenas
0,7%
54%
dos casos de covid-19
sem informações (NA)
sobre recuperação ou
morte são de mulheres
negras
Parte das mulheres gestantes e puérperas tiveram que se deslocar de suas cidades em busca de atendimento
63%
foram atendidas
em seu próprio município
37%
tiveram que se deslocar
47%
delas eram negras
fonte Observatório
Obstétrico Brasileiro
Última atualização 23
de março de 2022
Baixa adesão na vacinação
O Brasil tem 3,1 milhões de gestantes e puérperas. Nos últimos dois anos, foram 2,2 milhões de doses aplicadas em gestantes e puérperas, com 900 mil imunizadas com a segunda dose ou dose única e apenas 300 mil com a terceira ou quarta dose. No fim de 2021, a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), braço da Organização Mundial da Saúde (OMS), alertou o Brasil e outros países da América para priorizarem a vacinação de mulheres grávidas e puérperas contra a covid-19.
Para a obstetra e professora da UFSCar, a baixa adesão à vacinação das gestantes se deve ao desencontro de informações. Além dos profissionais de saúde que contraindicam vacinação em grávidas, há desinformação nas instâncias governamentais.
“Não temos uma política clara de incentivo à vacinação. As gestantes ficam divididas e, muitas vezes, os profissionais de saúde que as estão atendendo não dão o suporte necessário para que elas tenham a informação de que a vacinação na gravidez protege da morte ou de uma morbidade grave”, explica Polido. “Houve uma grande falha de estratégia de políticas públicas incentivando a vacinação de grávidas, assim como está acontecendo com a população infantil, que também tem uma adesão baixa à vacina por desinformação e falta de política clara de incentivo contra a covid”.
Retorno ao trabalho presencial
O presidente Jair Bolsonaro sancionou o Projeto de Lei 2058/21, que foi publicado no Diário Oficial da União em 10/3, com mudanças nas regras sobre o trabalho de gestantes durante a pandemia de covid-19. A proposta regulamenta o retorno da empregada grávida ao emprego, inclusive a doméstica, após imunização completa, de acordo com os critérios do Ministério da Saúde, em caso de encerramento do estado de emergência e se a gestante se recusar a se vacinar contra o novo coronavírus, com termo de responsabilidade. A proposição altera a legislação anterior, Lei nº 14.151, de 12 de maio de 2021, que dispõe sobre o afastamento da empregada gestante, inclusive a doméstica, não imunizada contra o coronavírus, das atividades de trabalho presencial.
Para a doutora em saúde pública, essa decisão vai impactar ainda mais as desigualdades raciais já postas no país. “Primeiro é que a lei de afastamento atingiu muito menos as mulheres negras, que estão em sua maioria no trabalho informal e doméstico. Esse retorno das gestantes e puérperas é delicado, principalmente pela demora da vacina. É uma decisão precoce e sabemos que quem retorna presencialmente agora são as mulheres negras, que estão em posições de maior vulnerabilidade no mercado de trabalho em comparação com as brancas”, diz Emanuelle Góes.
Políticas e diretrizes
Segundo Carla Andreucci Polido, precisamos ter políticas de saúde voltadas a essa população. Isso não acontece para as causas mais frequentes de morte materna no Brasil, hipertensão, hemorragia e infecções, como não aconteceu no caso da covid-19, já que essa é uma população negligenciada do ponto de vista de políticas públicas.
“Precisaríamos ter uma assistência à gestante e à puérpera muito mais estruturada, com identificação precoce das situações de risco, monitorização ativa das gestantes. Então, seria importante que elas fossem testadas sistematicamente durante a gestação e que, a partir da testagem positiva, que fossem prontamente acompanhadas ativamente, com acesso rápido a internação e intubação. Mas elas chegavam para o atendimento de saúde em estado muito grave e com uma limitação de recursos a serem oferecidos, uma vez que a gente não fez a vigilância ativa dessas pessoas em situação de gestação e pós-parto”, completa.
Goés também cita como Política Nacional de Saúde Integral da População Negra seria importante nesse sentido: “Na política, a gente tem como objetivo principal enfrentar o racismo de forma estrutural. Tendo a política implementada ao nível municipal, que é onde a vida acontece, a gente poderia ter superado algumas coisas, como melhoria da informação sobre raça/cor. A política poderia nos ajudar a ter um cenário mais bem estruturado, bem organizado, para pensar ações e políticas para reverter esse cenário”.
É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.
Designer formada em Comunicação Visual Design pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, integra a equipe da Gênero e Número desde 2020. Tem experiência na área do design de informação, editorial, ilustração, além de projetos sobre visualização de dados. Trabalhou no Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular no qual desenvolveu também trabalhos de identidade visual, design gráfico em exposições e sinalização.
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