Futebol além do campo

Futebol além do campo

Coletivos feministas e contra homofobia, racismo e transfobia forçam mudanças no modo de torcer, ajudam os clubes a se modernizar e tentam proteger a democracia

Por Sanny Bertoldo e Maria Martha Bruno*

Pelo segundo domingo consecutivo, torcidas organizadas foram às ruas do Rio e de São Paulo em protestos pela vida da população negra e pela democracia. No Largo da Batata, na capital paulista, uma imensa bandeira lembrando a “Democracia Corinthiana” foi estendida sobre os manifestantes. Organizados e articulados, torcedores mostraram que “não é nem nunca foi só futebol”.

“As pessoas se surpreenderam porque já existe no imaginário coletivo o estereótipo do torcedor alienado”, explica o coletivo Palmeiras Livre ao ser perguntado sobre as manifestações. A política, que esteve na formação de muitos clubes e de suas torcidas organizadas, reafirma que o futebol é espaço de mobilização para além das quatro linhas. Movimentos feministas, anti-homofóbicos e antirracistas são um exemplo disso. 

 “Os atos pela democracia e contra o fascismo são o reflexo de uma sociedade excludente em vários sentidos. A presença das mulheres e das torcidas femininas deve fortalecer ainda mais esses atos, ao encontro da luta por uma sociedade mais igualitária e plural. Os movimentos de minas no futebol já são políticos só de pautarem uma visibilidade e um direito há anos invisíveis”, completa o coletivo Palmeiras Livre, que foi fundado em 2013 e se intitula como um  movimento anti-homofobia e antitransfobia, contra o racismo e todo tipo de sexismo.

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Segundo pesquisa do Datafolha de 2019, 71% das mulheres do Brasil torcem por um time de futebol. Mesmo assim, muitas ainda sofrem com assédio, insegurança nos estádios e posturas de dirigentes que vão de encontro às demandas das torcedoras. Criado há dois anos, o movimento Vascaínas contra o Assédio luta para tornar as arquibancadas um lugar mais acolhedor. E tem conseguido. “Muita gente ainda faz piada e não entende, mas acredito que o simples fato de existir um movimento que apoia as mulheres já mudou a arquibancada porque várias mulheres se sentiram acolhidas justamente porque nos unimos. Muitas voltaram a frequentar ou se sentiram seguras para irem pela primeira vez, por exemplo. Só isso já faz tudo valer a pena”, conta Beatriz Pessôa, do grupo da coordenação e comunicação do movimento.

Ação do movimento Vascaínas contra o assédio nos estádios | Foto: Arquivo pessoal

Algumas integrantes do grupo estiveram na manifestação antifascista e pela democracia do dia 31 de maio em Copacabana, no Rio de Janeiro. Apesar de apoiar a causa, o Vascaínas contra o assédio preferiu não participar dos atos como movimento. “O que foi pedido nas ruas nada mais é do que democracia, que é onde todas temos espaço. Além, claro, da pauta antirracista, que somos totalmente a favor. Nós nos posicionamos sempre pontuando sobre esse tema, e somos um movimento plural, que é conduzido sempre com esse olhar. Levantamos a bandeira antifascista e repudiamos todo o autoritarismo e retrocesso”, diz Pessôa.  

Por respeito à manutenção do isolamento social, o Flamengo da Gente, um dos coletivos democráticos do clube mais popular do Brasil, também não foi às ruas como instituição neste domingo, dia 7. Mas o grupo mantém o apoio às causas democráticas, expressas em um de seus lemas: “A democracia começa pelos mulambos”.    

“A gente precisa ser firme e ter sempre em mente o que nós somos e o que requeremos. Por mais que o cenário vá se complicando, a gente não pode recuar. Eu entendo, respeito e acho que as manifestações são necessárias”, diz Carol Rocha, membro do grupo, formado por 450 pessoas e fundado em 2017. Em rota de colisão com a diretoria do Flamengo, que em maio pousou ao lado de Jair Bolsonaro em visita ao presidente em Brasília, o Flamengo da Gente motivou uma nota do clube no ano passado dizendo que não se envolvia com política, após uma manifestação do coletivo pela memória de Stuart Angel, atleta do Flamengo morto na ditadura militar.

“Mas a diretoria do Flamengo reflete comportamentos do governo federal. A gente consegue inclusive perceber um modo operandi parecido”, diz Rocha. A falta de entrevistas coletivas, a volta aos treinos “na marra” (ainda sem autorização da Prefeitura do Rio) e as portas abertas a políticos como Wilson Witzel e o deputado estadual Rodrigo Amorim (PSL) são alguns dos sinais que atestam a avaliação da torcedora. “Não é simplesmente uma relação institucional. É uma ligação ideológica”, avalia.
Membros do Flamengo da Gente em manifestação pela memória de Stuart Angel, atleta do clube morto na ditadura militar | Foto: Arquivo pessoal

Relação com outras torcidas

As bandeiras feministas também têm rendido frutos ao Movimento Toda Poderosa Corinthiana, que reúne torcedoras corintianas há quatro anos por um objetivo comum. Impensáveis há algumas décadas, ações como a pressão pela não contratação de um jogador que já havia sido enquadrado na Lei Maria da Penha, que protege mulheres vítimas de violência doméstica, surtiram efeito e provaram que o tabuleiro de forças do futebol brasileiro ganhou mais uma peça. Antes invisíveis aos patrocinadores, o movimento também conseguiu com que a fornecedora de material esportivo do Corinthians fabricasse o modelo feminino da segunda camisa oficial do time.

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Nós sempre tivemos muito contato com os movimentos de times adversários. Sempre foi muito mais fácil porque a gente está lidando com temas comuns a todos os movimentos, que são o feminismo, a luta pelos direitos. O que vimos no domingo foi o clubismo deixado de lado e a união das torcidas por um ideal comum, a democracia — Analu Tomé, uma das fundadoras do Movimento Toda Poderosa Corinthiana

O Corinthians tem um histórico de ativismo político. A “Democracia Corinthiana”, movimento protagonizado por jogadores como Sócrates e Casagrande na década de 1980, durante a ditadura militar, participava ativamente das decisões do clube e se manifestava a favor do movimento “Diretas Já”. Este posicionamento político acabou sendo encampado pelas torcidas organizadas do clube. Na manifestação pela democracia do último domingo, em São Paulo, a Gaviões da Fiel foi a torcida organizada com mais representantes.

“No Movimento Toda Poderosa Corinthiana, nós sempre tivemos muito contato com os movimentos de times adversários. Sempre foi muito mais fácil porque a gente está lidando com temas comuns a todos os movimentos, que são o feminismo, a luta pelos direitos. O que vimos no domingo foi o clubismo deixado de lado e a união das torcidas por um ideal comum, a democracia”, diz Analu Tomé, uma das fundadoras do movimento. “Nós defendemos o feminismo combatendo o machismo não só no futebol, mas também no dia a dia. E acabamos também lidando com outras causas, como a homofobia, o racismo, a xenofobia. É o que eu sempre falo: uma pessoa não é apenas um machista, ela vem num pacotinho. Se ela é machista, com certeza é homofóbica. Se é homofóbica, com certeza é racista. Se é racista, com certeza é a favor da tortura. Se é a favor da tortura, com certeza é contra a democracia. Se é contra a democracia, com certeza é fascista. No fim, está tudo ligado”.

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O antifascismo e o antirracismo também estão no centro das discussões do Palmeiras Livre. Em sete anos, o coletivo, que inicialmente começou como uma “página” com a  temática LGBT+, acabou ampliando suas ações para combater também o racismo e o machismo. No fim, dizem, o saldo é positivo até aqui. Ao levar mudanças a um ambiente historicamente dominado pelos homens e suas regras, estes coletivos ajudam o futebol a se modernizar. “Entendemos que, de alguma maneira, estamos sendo vistos e ouvidos. Nas arquibancadas, tivemos conflitos com alguns membros de torcidas organizadas pelos nossos posicionamentos que combatem as masculinidades tóxicas, presentes de modo gritante dentro do futebol. No entanto, o fim do grito de “bicha” nos estádios foi um enorme avanço”.

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*Sanny Bertoldo é editora e Maria Martha Bruno é diretora de conteúdo da Gênero e Número

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