Fases avançadas do câncer de mama consomem 80% dos recursos do SUS para tratamento da doença
PROJETO CÂNCER DE MAMA HOJE
Tratamentos para pacientes em estágios mais graves são mais caros, mas representam menos da metade do total realizado no 1º semestre de 2021; queda de diagnósticos no primeiro ano da pandemia pode contribuir para aumentar pressão no SUS
Por Aline Gatto Boueri, Maria Martha Bruno e Natália Leão *
Tratar o câncer de mama em estágios mais avançados é mais penoso para as mulheres e custoso para o Sistema Único de Saúde (SUS). Estes tratamentos representaram pouco menos da metade do total, mas consumiram cerca de 80% de todo o valor destinado a cuidados com a doença no 1º semestre de 2021 pelo SUS, onde sete a cada dez pessoas com a enfermidade se tratam no Brasil.
Os dados são do levantamento exclusivo realizado pela Gênero e Número a partir do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS) para o projeto Câncer de Mama Hoje, em parceria com o Instituto Avon. Os tratamentos analisados incluem quimioterapias e hormonioterapias, por exemplo.
Foram pouco mais de 438 mil de tratamentos para as fases mais avançadas da doença, isto é, 48% dos 914 mil no primeiro semestre de 2021. Eles custaram R$ 241 milhões ao SUS, do total de R$ 296 milhões. Desde o início da pandemia, foram R$ 698 milhões para essas etapas, versus R$ 166 milhões para as fases 1 e 2.
Os quatro estágios do câncerde mama estão relacionados com o grau de disseminação da doença pelo organismo e são importantes para determinar as possibilidades de sobrevida da paciente. A classificação obedece a critérios clínicos e patológicos e deve ser feita junto a profissionais de saúde que acompanham o caso.
Em geral, o terceiro e quarto níveis são considerados avançados. No estágio 3, o tumor já está crescendo nos tecidos próximos ou se espalhou para os gânglios linfáticos, estruturas do sistema imunológico localizadas em áreas do corpo como as axilas. No estágio 4, já há metástase, isto é, disseminação para outros órgãos. Os tratamentos nestas fases demandam mais recursos e têm maior impacto na qualidade de vida das mulheres.
Não há dados oficiais no Brasil sobre incidência da doença entre pessoas trans e não-binárias, mas elas também podem desenvolver a doença, assim como homens. O Instituto Nacional do Câncer (Inca) estima que o Brasil registre mais de 66 mil novos casos de câncer de mama por ano no triênio entre 2020 e 2022.
Tratamentos e recursos no sus
No Brasil, de janeiro a junho de 2021
FASES 1 E 2
FASES 3 E 4
quantidade TOTAL
de tratamentos
VALOR TOTAL
DOS tratamentos
R$ 296 milhões
914 mil
R$241
438
milhões
mil
81% dos recursos
foram investidos nas 2 fases mais avançadas da doença
48% dos procedimentos de tratamento de câncer de mamase referem às fases mais avançadas da doença
fonte SIA/SUS
Tratamentos e recursos no sus
No Brasil, de janeiro
a junho de 2021
FASES 1 E 2
FASES 3 E 4
quantidade TOTAL
de tratamentos
914 mil
438
mil
48% dos procedimentos de tratamento de câncer de mamase referem às fases mais avançadas da doença
VALOR TOTAL
DOS tratamentos
R$ 296 milhões
R$241
milhões
81% dos recursos
foram investidos nas 2 fases mais avançadas da doença
fonte SIA/SUS
Exames de diagnóstico, como as mamografias, ajudam a rastrear e detectar o câncer de mama precocemente. Dados do SIA/SUS mostram que a quantidade deste procedimento caiu 40% entre 2019 e 2020. Em geral, considerando todos os exames de diagnóstico, a queda foi de 28%.
Na contramão, no mesmo período, os tratamentos para debelar a doença subiram 5%. A realização de quimioterapias e hormonioterapias relacionadas a tumores na fase 3 aumentou 7%, o maior percentual de crescimento entre todos procedimentos para os quatro estágios analisados para essa reportagem.
Menor chance de cura
A queda no número de exames preocupa profissionais de saúde, que já veem neste movimento um possível impacto da pandemia de coronavírus no tratamento de câncer.
“O impacto de detectar o câncer de mama em fases mais avançadas é a diminuição na chance de cura. Uma paciente no estágio 3 será tratada para se curar, mas ela tem um risco maior de a doença voltar na comparação com pacientes que começam a se tratar nos estágios 1 e 2”, explica Daniela Dornelles Rosa, membro da diretoria da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC).
Tratamentos e recursos no sus
No Brasil, por fase, entre 2020 e o 1o semestre de 2021
FASE 1
FASE 2
FASE 3
FASE 4
quantidade de tratamentos
Em milhares
555
533
502
470
357
377
mil
333
322
285
269
190
169
2019
2020
2021
R$ 18
R$ 31
R$ 37
R$ 36
milhões
R$ 75
R$ 76
R$ 101
R$ 140
R$ 166
R$ 181
R$ 267
R$ 276
VALOR DOS tratamentos
Em R$ milhões
fonte SIA/SUS
Tratamentos e recursos no sus
No Brasil, por fase, entre 2020
e o 1o semestre de 2021
FASE 1
2
3
4
2019
357 mil
R$ 31 milhões
R$ 75
533
R$ 166
470
322
R$ 267
2020
377 mil
R$ 36 milhões
555
R$ 76
502
R$ 181
333
R$ 276
2021
190 mil
R$ 18 milhões
285
R$ 37
269
R$ 101
169
R$ 140
fonte SIA/SUS
Oncologista especializada em câncer de mama, Rosa afirma que, além dos custos emocionais de descobrir a doença em estágios mais avançados, há também o impacto econômico sobre o sistema de saúde e previdenciário.
“No estágio 4, quando há metástase, muitas pacientes têm que se afastar do trabalho e se tratar pelo resto da vida. É possível controlar muitos tipos de câncer de mama por vários anos, mesmo nessas circunstâncias. Mas muitas mulheres terão de entrar no INSS para se dedicar ao tratamento, então o SUS também vai pagar esta conta. Além disso, a profissional vai sair do mercado de trabalho e contribuir menos”, explica.
Rosa explica que há semelhanças nos tratamentos adotados nas fases iniciais e nas avançadas, mas, nos casos mais graves, muitas pacientes precisam cuidar também dos efeitos do tratamento. “No estágio 3, a paciente faz procedimentos muito parecidos com aqueles das fases iniciais, mas a chance de precisar de mais quimioterapia, por exemplo, é maior. Com isso, ela pode necessitar de internações para tratar a toxicidade do tratamento, o que também demanda mais investimentos do SUS”, complementa.
“Vamos precisar de um novo SUS”
A chegada de pacientes com estágios mais avançados exige ainda maior investimento em infraestrutura e na capacitação de profissionais da saúde.
“O SUS foi concebido com base na atenção primária e com estratégia de saúde da família. Prevenção e detecção sempre foram a fortaleza do SUS, para evitar ao máximo que os pacientes cheguem na atenção secundária [serviços e procedimentos de média complexidade] e na atenção terciária [alta complexidade], etapas que demandam tratamentos mais especializados e mais caros”, aponta Alessandro Bigoni, pesquisador do departamento de epidemiologia da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (FSP-USP) e do Centro de Estudos em Planejamento e Gestão de Saúde da Faculdade Getúlio Vargas (FGV Saúde).
Investimento do sus desde o início da pandemia
Valor investido pelo SUS em tratamentos de câncer de mama, entre 2020 e jun/2021
R$ 698 milhões
Investimento nas fases avançadas da doença
FASES
3 E 4
FASES
1 E 2
R$ 166 milhões
Investimento nas fases
iniciais, no mesmo período
fonte SIA/SUS
Investimento do sus desde o início da pandemia
Valor investido pelo SUS em tratamentos de câncer de mama, entre 2020 e jun/2021
R$ 698 milhões
Investimento nas fases avançadas da doença
FASES
3 E 4
FASES
1 E 2
R$ 166 milhões
Investimento nas fases
iniciais, no mesmo período
fonte SIA/SUS
Alessandro é um dos autores da nota técnica “Pressões Orçamentárias da Saúde para 2021 e além”. O documento, assinado por médicos, pesquisadores e pelo Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), faz dois alertas. Primeiro, sinaliza que o SUS passou a ser subfinanciado a partir de 2016 devido às medidas de austeridade fiscal do governo de Michel Temer (MDB). Segundo, atenta para a insustentabilidade do sistema caso esse cenário seja mantido nos próximos anos.
“Os casos que a atenção primária não conseguir segurar vão gerar uma sobrecarga financeira ao menos pelos próximos cinco anos. A pandemia vai demorar para terminar, mas quando isso acontecer, vamos precisar de um novo SUS”, alerta o pesquisador.
“Uma vez que as pacientes comecem a chegar ao SUS com o câncer em estágios mais avançados, é preciso garantir que elas consigam fazer o tratamento da forma mais rápida possível”, completa. A Lei dos 60 dias obriga o SUS a oferecer o tratamento nesse prazo, a partir do diagnóstico de câncer. Já a Lei dos 30 diasobriga o SUS a realizar exames de diagnóstico em pacientes com suspeita de câncer nesse prazo.
De acordo com o Inca, o câncer de mama é o segundo mais incidente entre as mulheres no Brasil, após o câncer de pele. A Sociedade Brasileira de Mastologia alerta para o aumento da incidência entre mulheres no Brasil e no mundo. O estilo de vida da população, com hábitos mais sedentários e alimentação pouco saudável, bem como gestações mais tardias, são fatores que contribuem para o crescimento dos casos entre mulheres mais jovens.
Beatriz Jardim, epidemiologista e doutoranda pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IMS/UERJ), lembra também que a mudança no perfil demográfico da população brasileira tem impacto no aumento da incidência do câncer de mama no país, uma vez que a doença é mais frequente em pacientes com mais de 60 anos.
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no início do século 21 a expectativa de vida ao nascer para mulheres era de 73 anos. Em 2019, chegou a 80 anos. Mas para Jardim, o aumento nos tratamentos também é um bom sinal: “O SUS até agora tem sido capaz de responder à demanda dos pacientes que atende”.
Nota metodológica
O projeto Câncer de Mama hoje realizou levantamento e análise de dados através do DATASUS, utilizando a ferramenta TabNet. Foram levantados dados do Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA-SUS), do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS) e do Sistema de Informação do Câncer (SISCAN) coletados entre os dias 04/05/2021 e 14/09/2021, considerando a quantidade de procedimentos realizados, podendo ser pela mesma pessoa. Além disso, foram solicitados ao Ministério da Saúde e às Secretarias Estaduais de Saúde de Pará, Bahia, Distrito Federal, Rio de Janeiro, São Paulo e Rio Grande do Sul, via Lei de Acesso à Informação (LAI), dados referentes ao orçamento destinado ao diagnóstico e tratamento do câncer de mama.
Os pedidos via LAI foram respondidos pelo Ministério da Saúde (via INCA) e por todas as Unidades da Federação, com exceção do Rio de Janeiro e de São Paulo. Entretanto, os dados não eram referentes apenas ao câncer de mama e consideravam tratamentos oncológicos em geral. Desta forma, não foram utilizados.
Também enviamos às Secretarias de Saúde questionamentos via assessoria de imprensa sobre o cenário revelado pelos dados e o que estava sendo feito para revertê-lo. Somente São Paulo, Pará e Rio Grande do Sul responderam.
Após levantamento no SIA-SUS, os procedimentos ambulatoriais relacionados ao câncer de mama foram agrupados em duas categorias: tratamento e diagnóstico. A análise considerou somente o valor total e a quantidade de procedimentos aprovados para pagamento pelas Secretarias de Saúde. É importante destacar que cada paciente pode fazer mais de um procedimento, logo, os dados não servem para contabilizar o número de pessoas que procuraram o SUS para diagnosticar ou tratar o câncer de mama.
Os dados do SIA-SUS também foram agrupados de acordo com o estágio, segundo as diretrizem encontradas no Observatório de Oncologia (https://observatoriodeoncologia.com.br).
Tais dados foram coletados por ano. Vale ressaltar que é possível que haja um atraso de até três meses no registro de procedimentos pelo sistema e não há um protocolo específico de registro de casos por estágio, o que também pode gerar registros em que o procedimento registrado não seja o mesmo que foi feito na paciente. Além disso, os dados se referem a data de faturamento do serviço de saúde, e não a data de realização do serviço de saúde.
Já os dados do SISCAN se referem ao número de pacientes que realizaram mamografias de rastreamento ou de diagnóstico pelo SUS. O sistema não diferencia o tipo de mamografia realizada pela paciente.
Os dados levantados no SIH-SUS não foram utilizados, pois com os dados disponíveis até o momento da apuração, não era possível medir o impacto da pandemia na mortalidade e nas internações.
*Aline Gatto Boueri é repórter colaboradora, Maria Martha Bruno é diretora de conteúdo e Natália Leão é coordenadora de dados da Gênero e Número. Esta matéria foi realizada em parceria com o Instituto Avon.
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