Foto:Thiago Torres/Agencia Brasil

Em meio ao aumento de número de óbitos, população indígena sofre com falta de assistência e subnotificação dos casos de covid-19

Levantamento oficial não leva em consideração os indígenas que vivem nos centros urbanos e acabam sendo cadastrados nos hospitais do SUS como “pardos”; ausência de médicos e leitos de UTI nas proximidades das aldeias aumenta exposição dos povos ao coronavírus

Por Vitória Régia da Silva*

Vitória Régia da Silva

  • Disparidades e subnotificação

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  • Falta de ações do governo

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  • Plano emergencial 

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  • Resistência Feminina

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Na margem direita do Rio Tapajós, o distrito de Alter do Chão, que faz parte do município de Santarém, no Pará, é onde vive Val Munduruku, jovem ativista indígena e estudante de Gestão Pública da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Em março deste ano, sua mãe, que mora em Jacareacanga, no Alto dos Tapajós, fez uma visita. Depois de alguns dias, ao voltar à sua cidade, testou positivo para a covid-19.

“Eu fiquei muito abalada. Não sabemos ainda ao certo onde que ela contraiu, se foi em Santarém, no translado ou no seu município mesmo. Ela contraiu, ficou bem ruim no hospital, mas agora está reagindo ao tratamento e já está em casa bem melhor. Foram dias bem tensos porque é muita falta de informação e, nesse caso, não podemos acompanhá-la no hospital, já que precisa ficar isolada”, contou Val Munduruku em entrevista a Gênero e Número.

Em pouco mais de 100 dias desde que o primeiro caso de covid-19 foi registrado em território nacional, o Brasil já se tornou o terceiro país com o maior número de mortes pelo novo coronavírus. Segundo o boletim epidemiológico do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), do Ministério da Saúde, atualizado em 8 de junho, são 2.085 casos confirmados e 82 óbitos de indígenas pela doença neste período.

A taxa de letalidade do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Rio Tapajós, onde Val Mundukuru mora, é duas vezes maior que a do estado de São Paulo, um dos epicentros da epidemia, segundo a SESAI. O que revela vulnerabilidade e impacto maiores do novo coronavírus nessa população.

Segundo a professora e organizadora da Marcha Mundial das Mulheres Celia Xakriaba, a ausência do Estado tem acelerado muito mais a mortalidade nos territórios indígenas.“Essa guerra humanitária não significa o extermínio da totalidade da população brasileira ou da humanidade, mas pode significar o extermínio da totalidade de muitos povo indígenas”

 

 

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ler Leia também: “A ausência do Estado tem acelerado muito mais a mortalidade nos territórios indígenas”

O Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) é a unidade gestora descentralizada do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena (SasiSUS). No Brasil, há 34 DSEI divididos estrategicamente por critérios territoriais, tendo como base a ocupação geográfica das comunidades indígenas, não obedecendo, assim, aos limites dos estados. A estrutura de atendimento conta com unidades básicas de saúde indígenas, pólos base e as Casas de Apoio à Saúde Indígena (CASAI).

“Aqui a situação está bem crítica. Não temos testes e essas questões básicas. O isolamento social ainda é muito violado. Pela necessidade, as pessoas atravessam fronteiras para comprar comida ou mesmo para receber o auxílio emergencial. Tem gente que está morrendo nos postos de saúde porque não conseguem chegar em um hospital no município”, desabafa Mundukuru. 

O DSEI com maior taxa de indígenas contaminados por covid-19 é Guamá-Tocantis, que fica no Pará e possui 186 aldeias de 42 etnias diferentes. A taxa dos casos confirmados é 3,4 vezes maior do que a do Brasil e 2,2 vezes maior que a do estado do Rio de Janeiro. Para Val Mundukuru, falta efetividade à SESAI e à Fundação Nacional do Índio (FUNAI), o que deixa essa população à margem das ações governamentais.

Disparidades e subnotificação

Existe uma disparidade entre os números oficiais de afetados pela covid-19 e levantamentos de organizações indígenas. Os números do Ministério da Saúde (2.085 casos confirmados e 82 óbitos) são muito menores do que os divulgados pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), que também faz esse levantamento. De acordo com a organização, são 2.600 casos confirmados e 247 mortes pelo novo coronavírus (três vezes maior do que o dado oficial).

A região Amazônica é onde está concentrada a maior quantidade de mortes e casos de contaminação entre indígenas. De acordo com a APIB, 203 indígenas morreram por covid-19 entre os estados do Amazonas (130), Amapá (1), Pará (48) e Roraima (24) até o dia 8 de junho.

 

 

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Segundo a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a subnotificação de casos e óbitos na população indígena no Brasil se deve principalmente ao fato que a SESAI só atende e registra os casos que ocorrem dentro das aldeias, deixando de fora os registros de contaminação de indígenas em contextos urbanos.  Essa limitação existe porque a Secretaria tem obrigação de atender apenas quem mora nas aldeias; quem mora nos municípios costuma ser atendido pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Uma outra crítica da organização é o fato de que quando os indígenas conseguem ser atendidos pelo SUS, são cadastrados como pardos devido à falta de conhecimento dos profissionais de saúde. Essa subnotificação dos dados pode ter impactos concretos sobre a política de saúde indígena, já que apenas 64% dos indígenas do país vivem em áreas rurais, enquanto o restante está nos centros urbanos, segundo censo do IBGE de 2010

Essa restrição faz com que a mãe da jovem Val Munduruku, que se recupera da covid-19, não entre na estatística oficial. Ela mora na cidade de Jacareacanga (PA) que, apesar de ser um município de maioria indígena, está no ambiente urbano. A APIB segue uma outra metodologia, que leva em consideração os municípios e as aldeias. 

O povo Munduruku, do qual Val faz parte, registrou 10 mortos pelo novo coronavírus: nove homens e uma mulher. A indígena Francidalva Saw Munduruku, filha do cacique Suberalino Saw Munduruku, da Aldeia Sawre, no Alto Tapajós, morreu no início de maio de parada cardiorrespiratória por consequência da covid-19, em Altamira, segundo a  Amazônia Real.

As Associações Pariri e Wakoborun,  que representam os Munduruku do Médio Rio Tapajós, criou uma petição, que conta com mais de 700 assinaturas, exigindo a instalação de mais leitos de UTI e mais médicos para atuar nas unidades intermediárias nas aldeias. “Somos quase 14 mil Munduruku vivendo nos Tapajós (…) Em Jacareacanga não há nenhum leito de UTI, e em Itaituba, a 400 km de distância, município com mais de 100 mil habitantes, há somente quatro leitos de UTI com respiradores. Nessa situação precária, não tem como sobreviver, e o sofrimento dos nossos parentes só aumenta”, diz um trecho da petição.

Falta de ações do governo

Enquanto o mundo está voltado para a pandemia, o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defendeu, durante a reunião ministerial do dia 22 de abril, passar “a boiada” e “mudar” regras ligadas à proteção ambiental e à área de agricultura e, assim, evitar críticas e processos na Justiça. Uma dessas propostas é o Projeto de Lei 2633/20, conhecido como PL da grilagem, que tem como objetivo a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União, o que pode levar à legalização de áreas ilegalmente ocupadas. Devido à mobilização dos povos indígenas, a PL não voltou à pauta na Câmara dos Deputados.

“É bem contraditório porque, desde o início da pandemia, a hashtag tem sido a luta por ficar em casa. Enquanto a nossa luta sempre foi pelo território, saúde e educação. No momento em que precisamos ficar em casa, o que está sendo sequestrado e negociado é exatamente esse nosso território. Então, não tem como ficar só em casa, ou só na aldeia, quando a nossa morada está sendo ameaçada”, destaca Celia Xakriabá

O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, que gosta de reforçar o apoio irrestrito a povos tradicionais, não fica atrás do Ministério do Meio Ambiente. Em coletiva de imprensa realizada nesta terça-feira (9), no Palácio do Planalto, a pasta apresentou o balanço das ações para suporte a povos e comunidades tradicionais durante a pandemia do novo coronavírus. Segundo o ministério, foram mais de 180 mil cestas de alimento distribuídas para essa população. No entanto, como mostrou reportagem publicada pela Gênero e Número, os gastos da pasta são ínfimos: dos R$ 45 milhões disponibilizados para o ministério para ações contra a covid-19, foram gastos apenas R$ 2 mil até o dia 26 de maio.

 

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Na última sexta (5), o deputado federal Célio Studart (PV/CE) apresentou o Requerimento de Informação 588/2020, no qual solicita ao ministro da Justiça e da Segurança Pública explicações sobre as ações da pasta voltadas à proteção das comunidades indígenas no que tange à disseminação de covid-19. O requerimento aguarda o parecer do relator na mesa diretora da Câmara dos Deputados

É neste contexto de falta de assistência e luta por seu território que a população indígena faz coro às manifestações pró-democracia e contra o governo federal. “Depois da chegada dos brancos e da igreja em nossos territórios, nunca mais houve democracia para os povos indígenas. Porém, com essa onda de ferir a liberdade dos brancos, nos vemos em uma situação de total genocídio. A verdadeira democracia para nós é a demarcação de nossas terras, algo que o governo atual não está nenhum pouco a fim de fazer nem de dialogar”, pontua Val Munduruku. 

Plano emergencial 

Para reduzir os impactos da covi-19 sobre os povos tradicionais e prestar apoio a estas populações vulneráveis, está em pauta no Senado o Projeto de Lei 1142/2020, que cria um plano emergencial de enfrentamento à covid-19 para povos indígenas, quilombolas e ribeirinhas. O projeto prevê auxílio emergencial aos povos indígenas, no valor de um salário mínimo mensal, por família, enquanto durar o estado de emergência e o isolamento social; além de distribuição de cestas básicas e material de higiene. As barreiras sanitárias e restrições de acesso às aldeias também estão previstas no projeto.

Segundo Val Munduruku, é muito importante a aprovação desse projeto porque vai atender as necessidades da população indígena. “Não é de hoje que os povos tradicionais sofrem por não ter uma política efetiva voltada especificamente para nós, principalmente na saúde. O governo liberou um auxílio emergencial que atende mais quem está nos grandes centros urbanos e não atende quem está nos territórios indígenas e na base, porque tem muito parente que não tem nem CPF ou que não pode sair de suas comunidades”.

A proposta foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 21 de maio com relatoria da deputada federal Joenia Wapichana (REDE/RR), a primeira mulher indígena na Câmara. Na última hora, o governo incluiu missões religiosas nos artigos 13 e 15 deste projeto de lei, igualando a atuação de religiosos a de profissionais de saúde no acesso às comunidades. 

Para Celia Xakriabá, essa inclusão é uma estratégia que remete à mesma que foi usada no passado com jesuítas e missionários e levou à morte de indígenas. “Na região Norte, os povos de difícil acesso e isolados são os que estão mais ameaçados com essa proposta porque o vírus chegou lá exatamente por isso, por conta de missionários. Isso é uma armadilha também porque libera o acesso dessa bancada religiosa, que historicamente tem sido nossa inimiga no Congresso Nacional”, destaca.

Resistência Feminina

Enquanto as medidas efetivas do governo não são aplicadas, as lideranças femininas indígenas se articulam para minimizar os efeitos da pandemia causada pela covid-19. Val Munruku faz parte da Associação de Mulheres Indígenas Suraras do Tapajós, que está organizando uma campanha de arrecadação para suprir a necessidade básica e emergencial da população Indígena impactada pelos efeitos socioeconômicos da pandemia do novo coronavírus. 

“E nesse momento temos nos articulado para estarmos fortes e unidas apesar de toda essa crise. A fabricação de máscara e arrecadação de alimentos com apoio de parceiros têm sido contínuas, para que possam suprir um pouco das necessidades, que são muitas”, conta a jovem ativista. 

Neste sentido, as mulheres Xakriabá conseguiram mobilizar 60 mulheres, que estão responsáveis por toda a fabricação de máscaras para serem distribuídas ao território e para ajudar nas barreiras de monitoramento.

*Vitória Régia da Silva é repórter da Gênero e Número

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Vitória Régia da Silva

É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É Presidente e Diretora de Conteúdo da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de sete anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.

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