Fotos: Juliana Chalita / GN

Direito à cidade é privilégio de poucos nos centros urbanos brasileiros

Terceiro debate dos Diálogos Gênero e Número discutiu obstáculos ao acesso à cidade como a transfobia, a violência armada e a precariedade do transporte público urbano no Brasil

Por Carolina de Assis

  • Violência armada lima direito à cidade

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  • Os riscos de retrocessos para as mulheres brasileiras

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O terceiro debate dos Diálogos Gênero e Número, que aconteceu na última terça-feira (5/12), no Parque das Ruínas, no Rio de Janeiro, trouxe um ponto essencial à discussão sobre os direitos das mulheres no Brasil: o acesso à cidade. Como acessar direitos – à educação, ao trabalho digno, à saúde, ao lazer – se o mero deslocamento é privilégio de poucos nos centros urbanos brasileiros?

A conversa foi mediada por Gilberto Vieira, do DataLabe, laboratório de dados e narrativas na favela da Maré, no Rio, e também contou com a escritora e ativista Amara Moira, a jornalista Cecília Olliveira, criadora do aplicativo Fogo Cruzado, e o demógrafo José Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE.

[Clique aqui para saber como foi o primeiro diálogo do dia, “Olhando para os dados de ontem e hoje: desafios para um cenário de equidade de gênero”]

Vieira abriu o debate perguntando a Moira, que é travesti, doutoranda em Literatura pela Unicamp e autora de um livro sobre sua experiência como prostituta, como podemos pensar cidades mais seguras e acessíveis e que permitam o acesso a direitos por pessoas trans. Para ela, isso passa por criar uma sociedade que não estranhe a presença de pessoas trans fora dos guetos aos quais elas são relegadas.

“Quando comecei minha transição dentro da Unicamp, fazendo doutorado, uma das primeiras coisas que ouvi foi de uma pessoa que me viu e perguntou: ‘nossa, você vai virar prostituta?’”, conta Moira. “Nada nas minhas roupas ou no meu corpo dizia que eu estava virando prostituta, a não ser o fato de eu ser uma pessoa trans. Esse é o lugar em que nossos corpos fazem sentido, essa é a narrativa sobre nós.”

Amara Moira

Segundo ela, o senso comum entende que “existe algo de perigoso nos nossos corpos, e esse perigo precisa ficar confinado aos não-lugares da cidade, geralmente onde a gente pode existir. Embora vulneráveis, é onde a gente faz sentido. É onde podemos ser elogiadas, é onde podem andar de mãos dadas com a gente, é onde não é necessário decreto para que nosso nome e nosso gênero sejam respeitados: a prostituição. Isso é muito sintomático de onde e como a gente pode existir.”

[Clique aqui para saber como foi o segundo diálogo do dia, “Acesso à informação e direitos das mulheres”]

Moira também ressaltou como a sexualização dos corpos trans legitima abusos contra crianças e também contra pessoas trans adultas. Um tipo de abuso é o assédio em lugares públicos. “O assédio não é uma cantada, é sempre uma tentativa de nos lembrar da nossa vulnerabilidade. Os homens que assobiam, que falam alguma coisa enquanto eu caminho pela rua, estão me lembrando de que aquele espaço não é meu, que é perigoso eu sair do meu gueto e tentar explorar a cidade como um todo”, afirmou.

Violência armada lima direito à cidade

Como pensar políticas de segurança pública e de acesso à cidade sem dados? A jornalista Cecília Olliveira contou que teve a ideia do aplicativo Fogo Cruzado porque precisava de dados sobre a violência armada no Rio de Janeiro para produzir uma reportagem, mas não os encontrou. Depois de um tempo “contando na mão”, a partir de notas na imprensa, canais das polícias e relatos de conhecidos espalhados pela cidade, Olliveira bolou uma plataforma colaborativa que, além de trazer este levantamento, permitisse que qualquer pessoa informasse sobre a ocorrência de tiroteios ou disparos de arma de fogo na região metropolitana do Rio.

A partir dos dados coletados pelo aplicativo, que completou um ano em julho, a jornalista informou o público que, enquanto estávamos reunidos no teatro do Parque das Ruínas, o Complexo da Maré estava para completar quatro horas seguidas de tiroteios. “Para além da Maré, hoje já foram registrados tiros em Cidade de Deus, Linha Amarela, Lins e Av. Brasil. Isso nos dá uma dimensão do quanto transitar pela cidade é um privilégio. O simples fato de a gente estar aqui e ainda não ter ouvido tiros é um privilégio”, disse Olliveira.

Cecília Olliveira

Os dados coletados pelo Fogo Cruzado apontam uma média de 17 tiroteios ou disparos de arma de fogo por dia no Rio de Janeiro em 2017 – e, segundo a jornalista, estes números são subnotificados. “Estamos imersos em uma situação de violência que nos lima da cidade. As pessoas deixam de sair de casa, de ir para o trabalho, para a escola, deixam de produzir, de prestar serviço, de receber serviços e, obviamente, deixam de viver. Elas são feridas e morrem indo pro trabalho, voltando do trabalho, tentando ir para a escola…”

“As vidas desse tipo de pessoa, de quem a gente sabe a cor e a classe social, não importam. Não importa se essa pessoa não pode sair de casa. Não importa se ela tem aula ou não”, disse Olliveira sobre os moradores das regiões mais afetadas pela violência armada no Rio de Janeiro, que também são as mais pobres e majoritariamente habitadas por pessoas negras. “O ranking do Fogo Cruzado [das regiões com mais tiroteios] mostra os lugares onde a democracia não chegou. A gente fala no nosso ‘direito democrático e constitucional de ir e vir’, mas podia inclusive mudar de nome, porque não é direito, é um privilégio de quem não mora nesses lugares”, afirmou.

A jornalista também trouxe dados que atestam o impacto dessa violência na vida das mulheres: elas são a maioria da população nas regiões que aparecem entre as dez mais afetadas pela violência armada segundo o Fogo Cruzado. Também são as menos alfabetizadas e as principais responsáveis pelos domicílios nesses lugares. “Estes dados mostram mais uma vez como as mulheres são as que mais têm seus direitos violados, com menos direito de transitar na cidade inclusive pela restrição do direito de ir e vir causada pela violência armada”, disse Olliveira.

Os riscos de retrocessos para as mulheres brasileiras

O professor José Eustáquio Diniz Alves, da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do IBGE, também apresentou dados para atestar o avanço das mulheres brasileiras nos últimos 60 anos. As mulheres superaram os homens no total da população em 1940, e desde então também os superaram em expectativa de vida, no eleitorado e em todos os níveis educacionais, inclusive no doutorado. No entanto, esta tendência de avanço foi interrompida pela crise econômica mais recente e tem sido evidenciada pelos dados coletados pelo IBGE desde 2012, especialmente pela Pesquisa Mensal de Emprego (PME), que tem acusado o recente aumento do desemprego entre as brasileiras.

Alves disse que, embora alguns de seus colegas estejam otimistas sobre a retomada do avanço das mulheres e da população brasileira como um todo, ele permanece pessimista. Para o professor, o Brasil está desperdiçando seu bônus demográfico, que ocorre quando há, proporcionalmente, um maior número de pessoas em idade ativa aptas a trabalhar – momento demograficamente ideal para o crescimento do país. Entre os fatores que atestam este desperdício está justamente a falta de investimento público no acesso à cidade pelas populações mais vulneráveis.

José Eustáquio Diniz Alves

“O desenvolvimento de um país passa também por um transporte público eficiente”, disse Alves, mostrando mapas do metrô de Xangai e do Rio de Janeiro em 1993 e em 2013. Enquanto em vinte anos a cidade chinesa construiu do zero a maior malha metroviária do mundo, a carioca apenas ampliou o número de estações nas duas linhas já existentes. “A gente teve Copa do Mundo, Jogos Olímpicos, Jornada Mundial da Juventude, e a questão do transporte público não foi resolvida.”

O professor lembrou que é a população mais pobre a que depende do transporte público, e exemplificou como a dificuldade de se deslocar pela cidade, agravada pela falta de políticas de bem estar social, afeta o acesso ao mercado de trabalho. “Como uma mulher pobre, que mora na periferia, tem filhos e os cria sozinha – porque é muito frequente o abandono do pai, e ela se torna chefe de uma família monoparental – e que não tem apoio de creche, de políticas públicas, vai gastar duas horas para chegar até o trabalho, mais duas horas para voltar para casa? Fica difícil”, disse Alves.

“Com crise econômica, crise política, falta de perspectivas para as eleições de 2018, eu particularmente estou com uma visão pessimista sobre o futuro do Brasil”, disse o professor. “Na bandeira brasileira está escrito ‘ordem e progresso’, mas a gente está muito mais para ‘desordem e regresso’, especialmente para as populações mais vulneráveis.”

Gilberto Vieira

Olliveira também se disse pessimista com o futuro próximo, especialmente no Rio de Janeiro. “Estamos lidando com ‘políticas de segurança’ de governadores que estão todos presos hoje”, comentou. “Não tinha como dar certo.” Já Moira concluiu com um discurso mais positivo, propondo que as pessoas cisgênero aprendam com as pessoas trans sobre resistência, luta e potência.

“Vocês que não são trans podem aprender bastante com a gente: aprender com alguém que traz o debate de uma maneira que ele não está sendo feito, aprender a repensar as categorias de homem e mulher a partir das pessoas trans, das falas e da existência das pessoas trans”, disse Moira.

“Nunca se falou tanto sobre gênero e sexualidade, nunca fomos tão protagonistas nos debates que envolvem toda a sociedade quanto hoje. É importante que a gente reconheça nossa força e reconheça que os ataques e as agressões contra nós se devem em boa parte porque a gente está conseguindo se visibilizar, ocupar espaços e provocar debates que antes estavam sendo jogados para debaixo do tapete”, lembrou.

O evento “Diálogos Gênero e Número – Dados, Jornalismo e Arte para falar sobre Direitos” foi produzido pela Gênero e Número, com apoio da Artigo 19, Fundação Ford, Fundo Elas, Instituto Patrícia Galvão e ONU Mulheres. Foram seis mesas de diálogos ao longo do dia, e os textos de cobertura de cada mesa serão publicados pela Gênero e Número nos próximos dias. Clique aqui para saber como foram os outros debates.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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