Incerteza para trabalhadoras formais marca Dia do Trabalho atípico em meio à crise do novo coronavírus
Governo anuncia mais de 4 milhões de “empregos preservados”, mas cálculo dos valores a serem recebidos é complicado e não há política direcionada para mulheres que têm carteira assinada
Um contador do governo apontava, até a manhã deste 30 de abril, mais de 4,7 milhões “preservados” desde o início da crise econômica agravada pelo novo coronavírus. Entre suspensão temporária do contrato de trabalho e redução de jornada e salários, o número é consequência da MP 936, que tem o propósito de manter, em meio à crise, os rendimentos dos trabalhadores de carteira assinada. E o Dia do Trabalho chega com a incerteza sobre prazos, datas e, principalmente, valores que serão recebidos. Se a carteira assinada já fora garantia de estabilidade de renda, até isso foi tomado pela covid-19 — e pela falta de políticas mais transparentes.
Em uma capital nordestina, a jovem Iara**, de 30 anos, trabalha há três deles como recepcionista de uma empresa de eventos. Uma das poucas funcionárias da empresa com carteira assinada, ela teve suas férias adiantadas para abril, já por causa da crise. Com o fim do período, foi avisada sobre a suspensão temporária do contrato de trabalho, como também prevê a MP 936.
“O justo seria ter opção, e não é colocado dessa forma. A narrativa é que eles estão me fazendo um favor, mas contrato suspenso não é trabalho. Quando somos demitidos, nos conformamos com a real situação, recebemos o seguro-desemprego e os direitos. Mas, da forma que acontece, é uma incerteza, sem saber onde estamos pisando. É difícil”.
A medida assinada por Jair Bolsonaro em 1º de abril prevê que o pagamento do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego e da Renda, chamado de BEm, pode ser de 100% do valor a que o trabalhador teria direito no seguro-desemprego, por um período de até três meses, ou de 70%, quando a empresa tem faturamento bruto de mais de R$ 4,8 milhões e deve completar os 30% restantes desse valor.
Eu tenho contas fixas para pagar, não posso simplesmente esperar o salário cair na conta, sem saber quanto será — Iara, recepcionista com contrato temporariamente suspenso
Iara, entretanto, não foi informada pelo seu empregador em qual dos dois casos a sua situação se encaixa, quando o dinheiro cairá em sua conta bancária e, principalmente, qual será o valor recebido. A apreensão e a angústia aumentam a cada dia, já que ela, junto com uma irmã, é responsável pelo sustento de uma casa com 5 pessoas.
“Eu sou mais uma brasileira que ganha um salário mínimo, e só com o salário mínimo já não dá para pagar as contas fixas. A cesta básica é muito cara, o gás é surreal. A gente mora de aluguel. É um impacto extremo na nossa renda. Eu tenho contas fixas para pagar, não posso simplesmente esperar o salário cair na conta, sem saber quanto será”, desabafa.
Segundo o texto da MP, os acordos deverão ser comunicados em até 10 dias da assinatura e, a partir desta data, a primeira parcela será paga em até 30 dias. Caso a comunicação não seja feita neste período, o salário tem que ser pago integralmente, como previsto em carteira, pelo empregador. Além disso, o BEm só será pago pelo governo a partir da data de comunicação até o fim do período pactuado. O que gera, no caso de Iara, mais incertezas: ela não recebeu qualquer resposta sobre a data da comunicação.
Postos de trabalhos frágeis
Desde o início da crise causada pelo novo coronavírus, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) estima que 4 milhões de trabalhadores já foram incluídos em acordos coletivos, sendo que 2,4 milhões foram prévios à promulgação da MP 936.
Patrícia Pelatieri, diretora-adjunta do Dieese, chama atenção para a ausência de dados sobre fechamento e abertura de postos de trabalho este ano, por causa de uma mudança implantada pelo governo. A partir de 1º de janeiro, empregadores foram dispensados de preencher o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (Caged), com dados de demissões e contratações, e passaram a ter de migrá-los para a plataforma E-social.
“É um apagão de informações em um momento de crise social. E não é que o dado não exista por causa da pandemia. Não existe porque o governo dispensou as empresas de responder ao Caged. Apenas uma parte delas está no E-social. Então, outra parte deixa de responder”, diz Pelatieri. A instituição estima que, desde o início da pandemia, 70 mil demissões tenham ocorrido em todo o país, um terço delas no setor de serviços.
No dia 30 de março, o Ministério da Economia anunciou que a divulgação dos dados sobre criação e fechamento de postos formais de emprego para janeiro e fevereiro está suspensa até a completa atualização das informações por parte das empresas. Segundo o IBGE, no trimestre encerrado em março, o país tinha 12,9 milhões de desempregados, uma taxa de 12,2%.
“As demissões estão afetando muito as mulheres. Embora ainda não tenhamos estes dados, percebemos impactos em setores como o de calçados e de confecções, onde a maioria são trabalhadoras. São mulheres que estão em cadeias compostas por micro e pequenas empresas. As medidas adotadas pelo governo também para as empresas foram tardias e muitas delas não chegam na ponta, onde estão as trabalhadoras. São postos de trabalho frágeis em empreendimentos frágeis”, analisa Pelatieri.
Além das medidas apresentadas na MP 936, sindicatos têm encontrado dificuldades para negociar temas que estão além da lei, como aqueles que envolvem as condições de trabalho em casa. “Tudo isso é pensado em uma mesa de negociação, para além da garantia de salário e do posto de trabalho. Mulheres estão mais ocupadas do que nunca com as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos, dois fatores que complicam o home office”, lembra a diretora-adjunta do Dieese.
As medidas adotadas pelo governo também para as empresas foram tardias e muitas delas não chegam na ponta, onde estão as trabalhadoras — Patrícia Pelatieri, diretora-adjunta do Dieese
Funções ocupadas por mulheres
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), do IBGE, 82% dos postos formais de recepcionistas, como Iara, são ocupados por mulheres. A maioria feminina também existe em outras profissões profundamente atingidas pela quarentena de prevenção ao novo coronavírus: cozinheiros (82%), especialistas em tratamento de beleza (94%), trabalhadores de limpeza (70%) e balconistas e vendedores de loja (61%).
A reportagem também ouviu Paula**, cozinheira em uma capital sulista, que teve seu contrato de trabalho suspenso “de surpresa”. No início da quarentena, o restaurante em que trabalha decidiu atender encomendas e abrir somente para retirada, mas o modelo não se sustentou. Depois de uma dispensa remunerada de 10 dias, os chefes anunciaram a suspensão do contrato de trabalho.
“Quando vieram falar de suspender o contrato, para mim foi uma surpresa. Eu topei, mas só depois eu fui entender o que era. Mas entre ser demitido com falência ou suspensão, melhor a suspensão”, avalia a moça, que mora sozinha.
Com a suspensão de alguns benefícios, como vale-alimentação, e sem a comissão proveniente das vendas do restaurante, Paula calcula que haverá uma redução de até 40% na sua renda, mas também não tem certeza do valor correto que receberá. A previsão, de acordo com seus empregadores, é que o pagamento seja feito no início de maio.
Sem análise de gênero
Daniel Duque, pesquisador de economia aplicada no Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV IBRE), avalia que a medida provisória que atende os trabalhadores formais está dentro do esperado, principalmente em relação às cifras gastas. Mas algumas ações poderiam ser executadas de forma a observar as especificidades do trabalhador brasileiro e, principalmente, das trabalhadoras.
“Uma complicação que não precisava era colocar a reposição do governo como percentual do seguro-desemprego. Não houve nenhum motivo técnico que faça com que essa reposição fique relacionada ao seguro, acho que na verdade foi mais um meio de justificar uma reposição”, analisa.
Outro fator de atenção é a falta de sensibilidade com a situação de muitas mulheres, que são mãe solo ou acumulam a função de sustentar outros familiares, como pais e avós.
“Neste cenário, fica muito claro que elas são as mais responsáveis, há desigualdade de gênero no trabalho adicional que essa pandemia gerou. O benefício emergencial para autônomos teve uma boa sensibilidade de incluir benefício duplo para mães que criam seus filhos sozinhas. Isso poderia ter sido levado também para o setor formal, mas sequer houve a discussão de uma reposição maior. Isso seria superlegítimo, mas não foi considerado.”
No último Boletim Macro do FGV IBRE, Duque traz uma previsão de queda de 14,4% da massa de rendimentos efetivos do trabalho em 2020, causada tanto pela queda da renda média quanto pelo percentual de população ocupada.
Mesmo com a implementação de “grandes programas de transferência de renda”, Duque e o instituto avaliam que não há como compensar os valores perdidos durante a pandemia. E o trabalho informal, que em condições normais se torna uma opção individual para complemento ou ampliação da renda, está majoritariamente descartado.
“O problema é que setor informal neste momento não é uma opção, porque as aglomerações estão proibidas. E é um setor que opera muito em aglomerações. Vai ter um momento em que não vai ter onde recorrer para ganhar renda. Quando tudo estiver se normalizando, com emprego e renda, aí sim, haverá um aumento no setor informal. Primeiro há o desemprego muito alto, depois aumento do mercado informal, e o passo seguinte é a chegada no mercado formal”, avalia.
*Lola Ferreira é repórter e Maria Martha Bruno é editora da Gênero e Número.
** Os nomes foram alterados a pedido das entrevistadas
Formada pela PUC-Rio, foi fellow 2021 do programa Dart Center for Journalism & Trauma, da Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia. Escreveu o manual de "Boas Práticas na Cobertura da Violência Contra a Mulher", publicado em Universa. Já passou por Gênero e Número, HuffPost Brasil, Record TV e Portal R7.
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