Indígenas descem a esplanada dos ministérios em direção ao STF para a realização de uma vigĺia contra o Marco Temporal | Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil_

Homologação de terras indígenas amplia acesso a serviços de saúde

Unidades de atendimento à saúde indígena estão mais presentes em territórios demarcados, mas serviço ainda não atende necessidades dos povos 

Schirlei Alves

Marcella Semente

Ademarcação do território é a principal pauta defendida por mulheres indígenas que ocupam posições de liderança – e isso tem relação com o acesso aos serviços de saúde. Em municípios com Terras Indígenas (TI) homologadas, a presença de Unidades de Atendimento à Saúde Indígena (UASI) é maior em comparação com aqueles onde os territórios estão em fases anteriores à homologação. 

Levantamento exclusivo da Gênero e Número mostra que 65% dos 406 municípios onde há territórios indígenas homologados possuem UASI. Já entre os 76 municípios onde TIs estão em fases anteriores à homologação, 32% possuem unidades de saúde especializadas. No total, há 482 municípios com TI em diversos estágios de demarcação. Vale destacar que uma TI pode abranger mais de um município. 

Uma TI homologada é aquela que já foi registrada ou está na fase final de registro no cartório e na Secretaria de Patrimônio da União. As fases anteriores compreendem estudos de identificação, aprovação da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), contestações, declarações dos limites e demarcação física.  

Os dados também mostram que, mesmo onde há UASI, a demanda pode ultrapassar 2 mil indígenas para cada unidade, como ocorre em 27 municípios. 

O Brasil tem hoje 628 TIs e, segundo dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES/SUS), 1.052 UASI – 15% mais do que as 914 existentes em 2019, porém ainda abaixo das 1.057 registradas em 2018. Algumas das unidades estão localizadas em capitais e em municípios que não são terras indígenas.  

O levantamento foi realizado a partir dos dados da Funai, do Ministério da Saúde e do Censo Demográfico do IBGE (2010), que registrou uma população indígena de 896 mil pessoas. Embora o IBGE já tenha divulgado uma estimativa do Censo 2022, de que há 1,6 milhão de indígenas no Brasil, o dado ainda não foi publicado de forma desagregada por município. Os dados utilizados na reportagem indicam, portanto, a demanda mínima de população indígena por UASI. 

Demanda por Unidades de Atendimento à Saúde Indígena

Em 27 municípios, há mais de 2 mil indígenas por UASI

População indígena x uasi

Relação do número de habitantes indígenas por Unidade de Atenção à Saúde Indígena (UASI), por município

Quanto mais escura é a cor, há mais indígenas para menos unidades de saúde

sem UASI

<200

200 - 400

400 - 800

800 - 2.000

>2.000

Menos de 200

indígenas

por UASI

Mais de 2 mil

indígenas

por UASI

A linha preta representa a marcação das Terras Indígenas

A população indígena está distribuída por todo o Brasil e 58% dela concentra-se em Terras Indígenas (IBGE, 2010), espalhadas por 482 municípios (FUNAI). Em municípios em que a TI foi homologada, 65% possuem UASI, já entre os municipios em fase anterior à homologação, esse percentual é de 32%.

Fonte CNES/SUS, Censo 2010 (IBGE) e FUNAI

Demanda por Unidades de Atendimento à Saúde Indígena

Em 27 municípios, há mais de 2 mil indígenas por UASI

População indígena x uasi

Quanto mais escura é a cor, há mais indígenas para menos unidades de saúde

Relação do número de habitantes indígenas por Unidade de Atenção à Saúde Indígena (UASI), por município

sem UASI

<200

200 - 400

400 - 800

800 - 2.000

>2.000

Menos de 200

indígenas

por UASI

Mais de 2 mil

indígenas

por UASI

A linha preta representa

a marcação das Terras

Indígenas

A população indígena está distribuída por todo o Brasil e 58% dela concentra-se em Terras Indígenas (IBGE, 2010), espalhadas por 482 municípios (FUNAI). Em municípios em que a TI foi homologada, 65% possuem UASI, já entre os municipios em fase anterior à homologação, esse percentual é de 32%.

Fonte CNES/SUS, Censo 2010 (IBGE) e FUNAI

ler Marco temporal pode colocar em risco 133 terras indígenas que ainda não foram demarcadas

Para Angela Kaxuyana, membro da Associação Indígena Kaxuyana, Tunayana e Kahyana (AIKATUK), da TI Kaxuyana Tunayana, no município de Oriximiná (PA), a demarcação do território possibilita acesso a políticas públicas de saúde, educação e segurança. 

“Para que você, enquanto mulher indígena, possa olhar outras demandas, de forma que te dêem segurança e qualidade de vida, é preciso garantir o reconhecimento de onde você vive. Porque são as mulheres as mais atingidas, violentadas, castigadas, cobradas e vulnerabilizadas quando não se tem território demarcado. Com a demarcação, há a possibilidade de se ter um posto de saúde construído dentro da aldeia, de se ter uma escola e estrutura mínima necessária”, explica Kaxuyana, que integrou a executiva da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab), entre 2017 e 2022. 

Angela Kaxuyana fala durante manifestação da. Aliança em Defesa dos Territórios contra o garimpo. Indígenas Kayapó, Munduruku e Yanomami marcham juntos no Acampamento Terra Livre (ATL), fortalecendo união histórica entre povos que já foram inimigos no passadoAliança em Defesa dos Territórios se manifesta contra o garimpo| Foto: Benjamin Mast / La Mochila Produções / ISA
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Tiago Moreira, antropólogo do Instituto Socioambiental (ISA), associação sem fins lucrativos que atua com pesquisa relacionada a comunidades indígenas, quilombolas e extrativistas, lembra que povos indígenas ainda sem terras demarcadas estão mais sujeitas a invasões e conflitos envolvendo atividades de garimpo ilegal e grilagem de terras. 

“Esses conflitos também afastam os agentes de saúde e responsáveis por outras políticas públicas. Então, é fundamental a homologação final da terra indígena para fortalecer o acesso a políticas públicas, inclusive de gestão territorial e ambiental”, completa. 

Durante o governo de Jair Bolsonaro (PL), a paralisação na homologação de TIs e nos processos de reconhecimento dos territórios, aliada à redução de fiscalização ambiental, gerou conflitos e mortes de indígenas. A crise mais recente, que estampou capas de jornais nacionais e internacionais, foi a dos Yanomamis, o que provocou abertura de inquérito pela Polícia Federal para investigar suspeita de genocídio e omissão de socorro por parte do governo. 

Moreira destaca ainda que, na gestão Bolsonaro, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), que é responsável por coordenar e executar a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas, adotou como diretriz não atender à população indígena fora do território demarcado. “Essa população, que vive em uma área que ainda está em processo de reconhecimento, acabava não sendo atendida”.

Unidades de saúde não atendem demanda

O serviço ofertado nas Unidades de Atendimento à Saúde Indígena (UASI) está longe de atender as necessidades dos povos originários. Segundo a liderança indígena da Amazônia, Nara Baré, nascida em São Gabriel da Cachoeira (AM), o município mais indígena do país, nem sempre uma UASI localizada em determinada região fica próxima de todas as comunidades indígenas. Há situações em que as pessoas precisam caminhar de 7 a 10 dias até chegar a uma unidade de saúde. 

O mesmo ocorre com os agentes de saúde quando precisam percorrer quilômetros por terra ou pelos rios para fazer atendimentos domiciliares. Há casos de comunidades mais isoladas em que o acesso só é possível por vias aéreas e está sujeito ao uso de pistas clandestinas. 

Na Amazônia Legal, há pelo menos 1.269 pistas de pouso e decolagem clandestinas. O levantamento é do repórter Hyury Potter, publicado no The Intercept Brasil em parceria com o jornal The New York Times. Embora as pistas clandestinas tenham ligação com a demanda da mineração na Amazônia, a reportagem mostrou que o transporte aéreo também é usado para atendimentos em saúde dos povos locais.  

“O próprio pólo base [onde está localizada a UASI] acaba não tendo estrutura adequada, até mesmo com os próprios barcos e combustível para fazer essa visita em outras aldeias. O acesso continua sendo restrito. Eles falam que [os povos indígenas] estão sendo cobertos, mas não estão”, destaca Baré.  

Além da falta de estrutura, as lideranças apontam falta de especialistas, medicamentos, equipamentos e qualidade de atendimento. Um exemplo é quando gestantes procuram o sistema de saúde para realizar o parto e acabam não tendo os seus desejos respeitados, como tempo e posição para fazer o procedimento, por exemplo. 

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Muitas vezes, a dificuldade de acesso não é porque essa política não chegou no território, mas ela chegou engessada a tal ponto que se torna inacessível e passa a ser, inclusive, uma violência contra essas mulheres”, aponta Kaxuyana.

Nara Baré na XII Assembleia da COIAB, realizada na Vila Betânia, Santo Antônio do Iça (AM) | Foto: Felipe Beltrame / Brigada Amazônia
ler Corpoterritório

Os atendimentos relacionados a parto e gravidez correspondem a 36% de todos os procedimentos realizados por indígenas no país e 52% dos procedimentos realizados por mulheres indígenas, segundo dados do Sistema de Informações Hospitalares (SIH-SUS).

Um dos pontos que contribui para a falta de direcionamento das políticas públicas, afirma Nara Baré, é a invisibilidade dos povos indígenas, especialmente das mulheres, na produção de dados públicos, tanto sobre acesso a serviços quanto sobre violências. 

“Quando se faz qualquer tipo de menção de dados, nós não aparecemos. Isso é claramente o fazer de conta que a sociedade se importa e se interessa. O próprio Estado fala que ‘as mulheres indígenas estão aqui conosco’, mas quando vão fazer levantamentos de dados, nós não existimos”, completou. 

Tanto Nara Baré, quanto Angela Kaxuyana, apontam que as limitações de atendimento não se restringem apenas às UASI, mas ocorrem em todas as unidades de saúde. A invisibilização dos indígenas que vivem em áreas urbanas é uma barreira para o atendimento qualificado, que respeite suas especificidades culturais e linguísticas. 

“Os povos indígenas que estão no contexto urbano estão totalmente fora desse atendimento [especializado]. É como se quando você saísse [da aldeia] deixasse de ser indígena. É um atendimento seletivo, discriminatório e limitado”, argumenta Kaxuyana.   

A reportagem entrou em contato com os Ministérios da Saúde e dos Povos Indígenas para comentar sobre a gerência dos recursos e políticas públicas de saúde, mas não recebeu resposta até a publicação da matéria. 

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Schirlei Alves

Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.

Marcella Semente

Olindense que adotou o Rio para viver. Integra a Gênero e Número a partir de 2023. Atua como pesquisadora e analista de dados com foco em gênero, saúde e direitos reprodutivos, fecundidade, educação e violência. Já colaborou com o Ipea como assistente de pesquisa e analista de dados, e foi assessora de comunicação na SMS/Camaragibe. Doutoranda em Demografia no Cedeplar (UFMG), mestre em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), especialista em Programas e Projetos Sociais (UNICAP) e Jornalista pela UFPE, atualmente, é graduanda em Estatística também na ENCE.

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