Casa da Mulher Brasileira de Boa Vista (RR), inaugurada em 03/12; programa é um dos principais da SPM nos últimos três anos | Foto; SPM/MDH

Com queda de 68% no investimento em três anos, Secretaria de Políticas para Mulheres reflete baixa prioridade do tema no governo federal

Conquista dos movimentos de mulheres em 2003, SPM vai dividir espaço com “Família” e Direitos Humanos em ministério liderado por pastora que quer aprovar projeto de lei que dá direitos a embriões e fetos; ex-ministra da SPM Nilcea Freire não vê possibilidade de cooperação entre movimentos de mulheres e um órgão do governo de Jair Bolsonaro, mas acredita que este é um “momento de criar brechas”

Por Carolina de Assis, Flávia Bozza Martins e Marília Ferrari*

Carolina de Assis

  • Primeiro revés

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  • Políticas por e para mulheres

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  • Alianças possíveis

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A Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), criada em 2003 e considerada por especialistas em gestão pública e ativistas uma vitória dos movimentos de mulheres no país, teve uma significativa redução de sua força institucional e seu orçamento nos últimos três anos. De acordo com levantamento da Gênero e Número, o investimento da SPM em ações pela cidadania das mulheres caiu 68% de 2015 a 2018. Neste período, aumentou a prioridade para ações relacionadas à violência contra mulheres, cuja participação no total cresceu até chegar a 100% do investimento da SPM neste ano.

Embora o orçamento da SPM para políticas para mulheres tenha variado nos dez anos seguintes à sua criação e tenha sofrido um corte no primeiro ano do governo de Dilma Rousseff (2011), nos anos seguintes houve um crescimento constante no investimento da Secretaria em ações pela cidadania das mulheres, com pico de R$ 62,7 milhões em 2015. A partir de 2016, porém, os valores anuais e o número e a variedade de ações começam a diminuir até chegar aos R$ 19,9 milhões computados até a primeira semana de dezembro deste ano.

A maior parte dos investimentos nos últimos três anos foi na construção e manutenção das Casas da Mulher Brasileira, centros de atenção a mulheres em situação de violência presentes em oito capitais; no Ligue 180, central telefônica de recebimento e encaminhamento de denúncias de violência contra mulheres; e em ações intituladas “Incentivo à Autonomia Econômica e ao Empreendedorismo das Mulheres”, “Promoção de Políticas de Igualdade e de Direitos das Mulheres”, “Atendimento às Mulheres em Situação de Violência” e “Políticas de Igualdade e Enfrentamento à Violência contra as Mulheres”.

 

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Primeiro revés

O órgão surgiu ligado à Presidência da República e com status de ministério em janeiro de 2003, no primeiro ano do governo Lula, em uma experiência inédita no país de agência estatal no primeiro escalão do governo voltada para a elaboração de políticas públicas em prol das mulheres. Em outubro de 2015, entretanto, a SPM sofreu seu primeiro revés institucional, ao ser “rebaixada” pela então presidenta Dilma Rousseff em uma reforma ministerial.

Desde então a SPM tem saltado por diversos ministérios: terminou o governo Dilma no extinto Ministério das Mulheres, Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, e no governo de Michel Temer passou pela pasta de Justiça e Cidadania, pela Secretaria de Governo da Presidência e pelo Ministério de Direitos Humanos (MDH), onde se encontra desde julho deste ano.

“O status e a força institucional da SPM dentro do governo é uma questão fundamental”, disse Simone Bohn, cientista política e professora da York University, em Toronto (Canadá), à GN. “Quando a Secretaria perdeu o seu status original, em 2015, isso foi extremamente negativo para o processo de consolidação que vinha ocorrendo da força institucional da SPM. Ela continua existindo, mas em uma posição subordinada e sem acesso a determinados canais de ativação de política pública que são muito importantes”, disse Bohn, autora de um estudo sobre a atuação do órgão durante o governo Lula.

E se nos governos petistas a SPM foi liderada por mulheres com um longo histórico de militância feminista, como Nilcea Freire (2004-2010) e Eleonora Menicucci (2012-2015), em junho de 2016 Temer entregou o órgão a Fátima Pelaes, ex-deputada federal (PMDB/AP) evangélica que foi presidente da Frente Parlamentar da Família e Apoio à Vida e se opõe ao direito das mulheres ao aborto inclusive em casos de gestação decorrente de estupro. Desde julho de 2018, a secretária nacional de políticas para mulheres é a advogada Andreza Colatto, filha do deputado federal Valdir Colatto (MDB/SC).

 

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A partir de 2019, a SPM passa a fazer parte do Ministério das Mulheres, da Família e dos Direitos Humanos, conforme anunciado pelo presidente eleito, Jair Bolsonaro, que nomeou a pastora Damares Alves como futura ministra. Também antiaborto, Alves disse que uma prioridade de sua pasta será a aprovação do Estatuto do Nascituro. “Vamos estabelecer políticas públicas para o bebê na barriga da mãe”, disse ela nesta terça-feira (11/12).

O projeto de lei prevê direitos a embriões e fetos e estabelece que estupradores paguem uma pensão alimentícia a crianças geradas em decorrência da violência sexual. Se o violador não for identificado, a “bolsa estupro” às mulheres violentadas e seus filhos ficaria por conta do Estado. O PL também implicaria na criminalização absoluta do aborto no Brasil, inclusive em casos de gestação decorrente de estupro, risco de morte para a gestante e feto anencefálico, casos em que a interrupção da gestação é permitida.

A futura ministra também já disse se preocupar com a “a ausência da mulher de casa”. “Hoje, a mulher tem estado muito fora de casa. Costumo brincar como eu gostaria de estar em casa toda a tarde, numa rede, e meu marido ralando muito, muito, muito para me sustentar e me encher de joias e presentes. Esse seria o padrão ideal da sociedade”, disse Alves.

Políticas por e para mulheres

“A SPM foi um marco na história das políticas para mulheres no Brasil”, disse a ex-ministra Nilcea Freire à Gênero e Número. Freire liderou a pasta por sete anos durante o governo Lula e consolidou a aliança da Secretaria com os movimentos de mulheres e a sociedade civil. Ela citou como precursor da SPM o Conselho Nacional de Direitos da Mulher (CNDM), criado em 1985 vinculado ao Ministério da Justiça. O Conselho passou em 2003 para a estrutura da SPM e segue sendo um dos principais espaços de diálogo entre a sociedade civil e o Estado sobre políticas para mulheres.

Para Freire, um dos principais marcos da SPM foi a primeira Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, realizada em junho de 2004 e liderada pela Secretaria. O encontro, cujo processo foi iniciado em conferências municipais e estaduais, culminou em Brasília com mais de 2.000 mulheres de todo o país reunidas para elaborar as diretrizes do Plano Nacional de Políticas para as Mulheres.

A e-ministra da SPM Nilcea Freire: "é um momento de criar brechas" | Foto: Arquivo pessoal

Foram realizadas outras três conferências nacionais, em agosto de 2007, dezembro de 2011 e maio de 2016 – o afastamento de Dilma da Presidência pelo início do processo de impeachment ocorreu enquanto acontecia a quarta conferência. No fim de novembro, um decreto de Temer convocou a quinta Conferência Nacional de Políticas para Mulheres, com data a ser marcada pelo ministro dos Direitos Humanos. Até o momento, no entanto, não há data prevista para sua realização.

“A conferência criou um ambiente de entendimento entre a sociedade civil e o governo que nunca tinha sido visto antes”, disse Freire. Segundo ela, o encontro “abriu as portas para que os outros órgãos da administração, como os ministérios da Educação, da Saúde, do Trabalho, tivessem também a missão de trazer para o âmbito do Estado e desses organismos dentro do Estado a possibilidade de criar efetivamente políticas que pudessem mudar a vida das mulheres brasileiras”.

A pluralidade nas ações em prol das mulheres também foi um marco da SPM nos governos petistas, com atenção para a formação de educadores e servidores públicos na perspectiva de gênero e para o fortalecimento da participação das mulheres em espaços de poder e no mundo do trabalho, entre outras ações. Recentemente, porém, o enfrentamento à violência contra mulheres e a atenção a mulheres em situação de violência tomou a dianteira como prioridade do órgão: se no governo Lula ações relacionadas a este tema representaram 34,5% dos R$ 274 milhões investidos, e 31% dos R$ 206 milhões investidos no governo Dilma, no governo Temer essas ações representam 82% dos R$ 102 milhões investidos até o momento.

Simone Bohn acredita que será essa a pauta cara aos movimentos de mulheres com possibilidade de avançar no ministério que será liderado pela pastora Damares Alves a partir de 2019. “Em virtude do perfil político da nomeada e de suas declarações, essa pauta não se conflita com nada que ela deseja ou tem como ideologia”, afirmou. “Temas menos controversos como a política de combate à violência contra as mulheres vão ser enfatizados porque não há atores políticos e sociais que se opõem, enquanto temas que são muito importantes para os movimentos de mulheres devem ter menos ênfase e ser marginalizados”, como os direitos reprodutivos e a participação política, por exemplo.

Alianças possíveis

Para a cientista política, mais do que força institucional, um órgão como a SPM precisa estar próximo aos movimentos de mulheres para que sua atuação de fato corresponda às necessidades da maioria das brasileiras.

Segundo Bohn, a literatura internacional sobre experiências de agências estatais como a SPM dão conta de que elas têm mais êxito na implementação de políticas de fortalecimento da cidadania das mulheres em governos progressistas, marcados por uma forte aliança com movimentos sociais. Mas isso não significa que a direita – ou a extrema-direita de Bolsonaro e seu futuro governo – não tenham políticas para mulheres, ressalva.

“São políticas públicas que enfatizam o papel das mulheres como mães, como as pessoas que ficam em casa tomando conta dos filhos”, disse Bohn, ecoando declarações da futura ministra, entre elas a de que não querer ser mãe “é uma luta contra a natureza humana”. “Essa concepção de mulher é anacrônica, porque se você olhar o perfil da mulher brasileira, uma grande proporção está no mercado de trabalho e não se adequa a esse perfil. A direita também tem ideias claras de políticas públicas para mulheres, mas elas não são necessariamente as políticas que os movimentos de mulheres brasileiras desejam.”

A Rede Nacional de Mulheres Negras no Combate à Violência é um destes movimentos. “A visão da futura ministra, segundo suas declarações, é muito pequena perante a realidade que as mulheres brasileiras vivem e passam todos os dias”, disse Luanda Gaetano, representante da rede, à Gênero e Número. “Estamos no século 21, apesar de algumas pessoas insistirem em viver no século 18. As mulheres trabalham, estudam, são acadêmicas, dirigem, são diversas e são livres para viverem as suas vidas”, afirmou.

Dilma Rousseff e Eleonora Menicucci, então ministra da SPM, na 46ª reunião do CNDM, em março de 2016. | Foto: Leo Rizzo/SPM

A rede fundada em 2008 em Maceió (AL) é uma das representantes da sociedade civil eleitas em abril para o mandato 2018-2021 do Conselho Nacional de Direitos da Mulher será parte das conversas com o futuro ministério. “Estamos abertas ao diálogo amplo para se afinar as atuais diretrizes e em consonância com o movimento de mulheres negras e movimento de mulheres”, disse Gaetano, não descartando a necessidade de se ter “paciência” neste processo.

Para Bohn, os movimentos de mulheres devem tentar dialogar com o futuro ministério na tentativa de manter políticas que já estão em andamento, como as ações de combate à violência, e também para “tentar convencer a nomeada da importância de determinadas pautas”. “O Ministério da Saúde tem diversos relatórios oficiais  que mostram que a falta de acesso aos direitos reprodutivos no Brasil tem consequências gravíssimas para a saúde pública. É uma parte do governo reconhecendo um problema que outra parte não toma conhecimento”, exemplifica.

Já a Rede Nacional Feminista de Saúde Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, também membro do mandato atual CNDM, prevê “fortes enfrentamentos quanto às pautas feministas” com o novo governo. Formada por organizações, coletivos e ativistas que se dedicam à saúde das mulheres e seus direitos sexuais e reprodutivos, a Rede não vê por ora “nenhuma possibilidade” de cooperação com o novo ministério. “Quando ela [Damares Alves] assumir e estiver frente à realidade, talvez deixe de ver Cristo na goiabeira e possamos conversar”, disse a Rede à Gênero e Número em referência a relato da pastora em um culto de que teria visto Jesus subindo em uma árvore.

Nilcea Freire também não vê muita possibilidade de cooperação entre os movimentos de mulheres e um órgão do governo de Jair Bolsonaro. “Mas não podemos desistir”, ressalva, afirmando que este é um “momento de criar brechas”.

“A sociedade civil e os movimentos sociais podem criar possibilidades de trabalho nos níveis municipal ou estadual, porque a nível federal acho mais difícil”, disse a ex-ministra. “Este vai ser um momento para refletir sobre como podemos trabalhar com órgãos da sociedade civil como conselhos de saúde ou de educação, na medida em que não temos uma institucionalidade com essa força. O importante será trazer para o âmbito da sociedade as nossas pautas e criar, como o movimento tem feito, uma ambiência que nos permita confrontar, porque o presidente eleito já disse a que veio, não é só a ministra.”

A reportagem enviou à SPM questões sobre o orçamento e as ações da Secretaria nos últimos anos e à futura ministra, Damares Alves, uma solicitação de entrevista, mas não obteve resposta da Secretaria ou de Alves até o fechamento deste texto.

*Carolina de Assis é editora, Flávia Bozza Martins é analista de dados e Marília Ferrari é infografista da Gênero e Número.

Carolina de Assis

Carolina de Assis é uma jornalista e pesquisadora brasileira que vive em Juiz de Fora (MG). É mestra em Estudos da Mulher e de Gênero pelo programa GEMMA – Università di Bologna (Itália) / Universiteit Utrecht (Holanda). Trabalhou como editora na revista digital Gênero e Número e se interessa especialmente por iniciativas jornalísticas que promovam os direitos humanos e a justiça de gênero.

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