Com Conceição Evaristo, ABL pode fortalecer quadro de membros mais diverso de sua história
Em 2018, Conceição Evaristo pode se unir ao grupo de “imortais” que hoje consiste em um homem negro, cinco mulheres e 33 homens brancos e ser a primeira mulher negra na ABL; entidade fundada em 1897 tem sido domínio quase absolutamente masculino e branco e chegou a contar com regra no regimento interno para a exclusão de mulheres
Aos 71 anos, Conceição Evaristo é uma das mais reconhecidas autoras negras do Brasil. De sua escrevivência, como chama seu processo de escrita que nasce do cotidiano, das lembranças e da experiência de vida dela própria e de seu povo, ela compõe romances, contos e poemas que revelam a condição do afrodescendente no Brasil. A escritora, que publicou seu primeiro livro aos 44 anos e venceu o Prêmio Jabuti na categoria contos em 2015 com “Olhos d’água”, pode se tornar a primeira mulher negra a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras.
Embora tenha tido um homem negro entre seus fundadores – o escritor Machado de Assis – a ABL tem sido um espaço quase exclusivamente de homens brancos: eles são 287 dos 295 nominados “imortais” até hoje, ou 97%. As mulheres, todas brancas, são oito até agora, e as duas pessoas negras que passaram pela Academia até hoje são homens.
Apesar do histórico de exclusão de mulheres e de pessoas negras da Academia, o retrato da ABL em 2018 pode ser um bom auspício para a candidatura de Evaristo. A leva atual de imortais é a mais diversa na história da instituição: entre os 39 membros vivos, cinco são mulheres brancas e um é um homem negro. Elas representam 12,5% e ele, 2,5% do total, a maior proporção desses dois grupos nos 121 anos da instituição.
“Por certo que a vitória no pleito representará um importante divisor de águas na história da ABL, mas a formalização da candidatura de Conceição Evaristo já é, em si, um marco histórico”, avalia Michele Asmar Fanini, doutora em sociologia, com pós-doutorado realizado no Instituto de Estudos Brasileiros da USP e especialista em sociologia da cultura, da literatura e de gênero.
A pesquisadora, que em sua tese de doutorado estudou as mulheres na Academia Brasileira de Letras, destaca a representatividade, a interseccionalidade e o crescente apoio popular para a ampliação do potencial simbólico da candidatura de Evaristo. “Não poderia haver nome mais apropriado para compor tal genealogia literária do que uma escritora que faz de sua literatura palco de ‘escrevivência’”, afirma.
Evaristo nasceu em uma favela em Belo Horizonte e conciliou seus estudos com o trabalho como empregada doméstica até se mudar para o Rio de Janeiro, aos 25 anos. Graduou-se em Letras, é mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio e doutora em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF). É autora, entre outras obras, de “Ponciá Vicêncio” (2003), “Becos da Memória” (2006), “Insubmissas lágrimas de mulheres” (2011), “Olhos d’água” (2014) e “Histórias de leves enganos e parecenças” (2016).
O debate e o apoio popular à candidatura da Conceição Evaristo foi forjado nas redes sociais após um post no perfil do Facebook da jornalista e colunista do jornal O Globo Flávia Oliveira, no dia 24 de abril.“Há uma percepção antiga sobre a falta de representatividade na ABL. Após a morte de Nelson Pereira dos Santos, começaram a circular nomes de mais homens brancos para a vaga e fiz uma provocação ao meu colega colunista do Globo, Ancelmo Góis, lançando os nomes de Nei Lopes, Martinho da Vila e Conceição Evaristo”, disse Oliveira à Gênero e Número. A provocação da jornalista acabou publicada na coluna de Góis sob o título “Falta Preto na ABL”. A sugestão foi comprada por mulheres e homens nas redes e também pela escritora, que oficializou sua candidatura no dia 18 de junho.
Para a Oliveira, há um significado simbólico grande se Conceição Evaristo for eleita para ocupar a cadeira número 7, de Castro Alves, conhecido por escrever sobre escravidão e injustiça social, na casa de um dos maiores escritores negros do país, Machado de Assis. A jornalista lembra também que “a intelectualidade brasileira é mais diversa” daquilo que a ABL tem representado em seu quadro. “Há muitas mulheres, negras e brancas, que poderiam estar lá. Há grandes pensadores negros que poderiam estar lá. Passou da hora de começar a mexer nas estruturas”, acredita.
Essa também foi a primeira vez que uma eleição na Academia Brasileira de Letras virou tema de debate nas redes sociais. A campanha por Conceição Evaristo na instituição gerou 3,6 mil menções no Twitter desde o dia 1º até 25 de junho, de acordo com levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (DAPP-FGV). Através, principalmente, da hashtag #ConceiçãoEvaristoNaABL, perfis na rede social se mobilizaram com 1,9 mil tuítes em apoio à candidatura da escritora e à nomeação da primeira mulher negra à Academia.
Além dos tuítes, a movimentação online tem se dado por meio de um abaixo assinado pela eleição da escritora, organizado pelo coletivo Diálogos Insubmissos de Mulheres Negras. Em 10 de julho, a petição contava com mais de 21 mil assinaturas.
Faltam pretos e mulheres na ABL
Ana Maria Machado (que ocupa a Cadeira 1), Rachel de Queiroz (Cadeira 5), Dinah Silveira de Queiroz (Cadeira 7), Cleonice Berardinelli (Cadeira 8), Rosiska Darcy de Oliveira (Cadeira 10), Lygia Fagundes Telles (Cadeira 16), Zélia Gattai (Cadeira 23) e Nélida Piñon (Cadeira 30) são as oito mulheres imortalizadas na ABL até hoje – menos de 3% do total de membros que passaram pela casa.
Nos primeiros 80 anos de existência da ABL, pertencer aos seus quadros só era permitido a homens. Depois de mais de 40 anos de debates e tentativas de algumas mulheres de se incorporarem à ABL, em 1951 os acadêmicos selaram a vocação excludente da instituição ao acrescentar ao Regimento Interno a restrição à participação de “brasileiros do sexo masculino”.
“A Academia foi fundada em uma época em que a mulher era considerada ‘essencialmente’ inferior aos homens, menos habilitada às atividades intelectuais”, comenta a pesquisadora Michele Asmar Fanini. “Uma série de discursos e correntes de pensamento respaldavam e conferiam ‘legitimidade’ às assimetrias entre os gêneros, naturalizando uma hierarquização construída socialmente.”
Foi somente em 1976 que a ABL mudou seu Regimento Interno para permitir a candidatura de escritoras. No ano seguinte, Rachel de Queiroz tornou-se a primeira mulher a integrar a Academia. Antes disso, outras intelectuais tentaram integrar a ABL, mas foram rejeitadas. Foram os casos de Amélia Beviláqua, a primeira escritora a propor candidatura à ABL, em 1930, e Dinah Silveira de Queiroz, que propôs sua candidatura pela primeira vez em 1970 e foi eleita em 1980.
Enquanto o gênero – apesar dos obstáculos e da resistência dos acadêmicos – acabou se transformando em pauta em diferentes ocasiões, as discussões sobre a raça dos membros da acadêmia “só encontram silêncio”, diz Fanini. Quase 110 anos depois de Machado de Assis, um dos fundadores e presidentes da ABL, um homem autodeclarado negro passou a integrar o quadro de membros da Academia: Domício Proença Filho, que ocupa atualmente a cadeira 28. Ele foi eleito em 2006 e foi presidente da instituição entre 2016 e 2017.
“Tanto o gênero quanto a raça sempre se revelaram assuntos tabu entre os acadêmicos. Sob a justificativa de que a Academia é uma instituição neutra e refratária a ‘proselitismos’, suas pautas esquivam-se do que, arbitrariamente, categorizam como ‘polêmico’. Silenciar sobre temas tão caros à nossa formação social não deixa de ser uma tomada de partido”, avalia Fanini.
E já circulam informações de que a tomada de partido dos acadêmicos no dia 30 de agosto, data da eleição para a cadeira 7 da ABL, será pelo status quo branco e masculino. Segundo reportaram os colunistas Ancelmo Gois, d’O Globo, e Maurício Meireles, da Folha de São Paulo, os imortais não gostaram da mobilização popular pela eleição de Conceição Evaristo. Disseram que “a Casa não funciona na base da pressão” e que o apoio popular a Evaristo na ABL não deve se refletir em votos. O colecionador de manuscritos Pedro Corrêa do Lago e o cineasta Cacá Diegues seriam nomes mais fortes entre os acadêmicos para a sucessão de Nelson Pereira dos Santos.
A Gênero e Número procurou a assessoria de imprensa da Academia Brasileira de Letras, que preferiu não comentar o assunto mas afirmou que, caso Evaristo “se adequar a todas as exigências e passar por todo o processo de candidatura, poderá ser eleita”.
*Vitória Régia da Silva é jornalista e colaboradora da Gênero e Número
Dados abertos: acesse aqui a base de dados do levantamento sobre gênero e raça na Academia Brasileira de Letras.
É jornalista formada pela ECO/UFRJ e pós graduanda em Escrita Criativa, Roteiro e Multiplataforma pela Novoeste. Além de jornalista, também atua na área de pesquisa e roteiro para podcast e documentário. É gerente de jornalismo e vice-presidente da Associação Gênero e Número, onde trabalha há mais de seis anos. Já escreveu reportagens e artigos em diversos veículos no Brasil e no exterior, como o HuffPost Brasil, I hate flash, SPEX (Alemanha) e Gucci Equilibrium. É uma das autoras do livro "Capitolina: o mundo é das garotas" [ed. Seguinte] e colaborou com o livro "Explosão Feminista" [Ed. Companhia das Letras] de Heloisa Buarque de Holanda.
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