Mulheres trans e travestis jovens concentram casos de autolesões
Em todas as faixas etárias, encaminhamento para a rede de assistência social, justiça ou outros serviços de saúde após episódios de violência autoprovocada é raro
Crianças, adolescentes e jovens respondem por mais da metade dos 2.761 registros de lesões autoprovocadas entre mulheres trans e travestis no Brasil entre 2018 e 2021. A faixa etária de 18 a 24 anos concentra um de cada três casos do tipo, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde. No caso de crianças, o campo de “identidade de gênero” só é preenchido a partir dos 10 anos de idade.
A identidade de gênero foi incluída na ficha de notificação individual em 2014, que é preenchida por profissionais do serviço de saúde. Quase uma década depois, as únicas opções para esse campo são: “travesti”, “mulher transexual”, “homem transexual”, “não se aplica” e “ignorado”. Pessoas não-binárias também não são contempladas e não há categoria específica para a classificação de pessoas cisgênero, o que reforça a cisnormatividade como padrão.
“É muito assustador quando pensamos que são violências autoprovocadas. A gente tem se debruçado sobre o impacto provocado pelos discursos de ódio, pela tentativa de institucionalização da transfobia. Políticos de extrema direita e grupos anti-trans defendem publicamente pautas que ferem os direitos humanos da população trans. O recado que fica a todo instante é que elas não cabem neste mundo”, lamenta a secretária de Articulação Política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), Bruna Benevides.
A secretária da Antra critica também a falta de formação, periódica e continuada, dos profissionais da rede de saúde para atendimento e correto preenchimento das informações relacionadas à população trans e avalia que os dados sobre violência autoprovocadas refletem o agravamento da saúde mental ocasionado pelo contexto social, político, histórico e econômico.
Violência autoprovocada entre mulheres trans e travestis
Jovens de 18 a 24 anos representam 1 de cada 3 casos notificados
2018
2019
2020
2021
717 casos
854 casos
705 casos
485 casos
280
casos de lesões
autoprovocadas
261
205
211
18 a 24 anos
207
192
167
151
18 a 24 anos
25 a 34
160
146
150
até 18
125
25 a 34
109
123
35 a 44
90
45 ou mais
até 18
100
97
35 a 44
77
71
63
45 ou mais
56
0
Ano com mais casos de lesões autoprovocadas por mulheres trans
Fonte Sinan/MS
Violência autoprovocada entre mulheres trans e travestis
Jovens de 18 a 24 anos representam
1 de cada 3 casos notificados
2018
2021
2019
2020
717 casos
705 casos
854 casos
485 casos
280
casos de lesões
autoprovocadas
261
211
205
18 a 24 anos
207
192
167
151
25 a 34
160
146
150
até 18
125
123
109
35 a 44
90
45 ou mais
97
100
77
63
71
56
0
Ano com mais casos de lesões autoprovocadas por mulheres trans
“A transfobia é extremamente forte. E não é apenas interpessoal, mas institucional e estrutural. Perpassa diferentes espaços e delimita os lugares onde podemos ou não transitar, existir e ocupar. Isso vai afetar nossa saúde física e mental”, aponta Ale Mujica Rodríguez, doutore em saúde coletiva pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Mujica Rodríguez lembra que a identidade de gênero até hoje não foi incluída no censo do IBGE, o que impossibilita saber, por exemplo, quantas pessoas trans vivem no Brasil, incluindo imigrantes. A falta de dados dificulta a elaboração de estudos e, por consequência, o desenvolvimento de políticas públicas.
Os dados do Sinan também apontam para um problema no acompanhamento posterior ao atendimento de mulheres trans e travestis que chegam ao sistema de saúde após um episódio de autolesão. Apenas uma em cada quatro recebeu algum tipo de encaminhamento para a rede de assistência social, justiça ou outros serviços de saúde.
Acompanhamento de mulheres trans e travestis após lesões autoprovocadas [2018 - 2021]
Somente 1 de cada 4 mulheres trans e travestis recebeu algum tipo de encaminhamento após atendimento médico
2.761
casos
Dos 2.761 casos
(2018-2021), somente
674 (equivalente a
24,4% dos casos)
receberam algum
encaminhamento
24,5%
674
casos
encaminhados
por faixa etária
% de casos
encaminhados
38,4%
612
casos [2018 - 2021]
até 18 anos
235
encaminhamentos
22,3%
825
18 a 24
184
20,5%
633
25 a 34
130
16%
387
35 a 44
62
20,7%
304
45 ou mais
63
Fonte Sinan/MS
Acompanhamento de mulheres trans e travestis após lesões autoprovocadas [2018 - 2021]
Somente 1 de cada 4 mulheres trans e travestis recebeu algum tipo de encaminhamento após atendimento médico
A psicanalista e diretora do Núcleo Psicossocial da Casa Um, ONG que oferece assistência à população LGBTQIA+, em São Paulo, Lívia Lourenço Dias já atendeu casos de automutilação, especialmente entre pessoas jovens.
Na avaliação da profissional, as lesões autoprovocadas não ocorrem por falta de aceitação da própria identidade de gênero, mas pelas violências e exclusões vivenciadas em suas experiências sociais, a começar pela família.
As pessoas não sofrem porque elas são trans, mas porque elas são vítimas de preconceito, violência e são excluídas desde cedo”, explica a psicanalista.
Depois que as possíveis redes de apoio se esgotam, laços com familiares e amigos se cortam e instituições como escola e rede de saúde negligenciam a sua existência, as tentativas de suicídio emergem, avalia Dias. “É quando vem a ideia de querer acabar com tudo, parar de sofrer, dar um alívio a partir dessas auto agressões.”
Segundo a psicóloga clínica, travesti e coordenadora do Fundo LGBTQIA+ (Fundo Positivo), Emilly Mel Fernandes, não se pode pensar em saúde mental sem levar em conta os fatores sociais, econômicos e culturais aos quais as pessoas trans estão submetidas.
“A gente não consegue trabalhar com a saúde mental de pessoas trans sem o contexto de raça e classe, sem levar em conta a ancestralidade e o histórico de violências. Não é porque sou trans que sou potencialmente suicida. A gente tem que falar de um adoecimento mental causado por uma estrutura social, que é a transfobia, a falta de acesso e recurso”, destaca.
Apenas em 2018, a transexualidade deixou de ser tratada oficialmente como uma patologia. Em junho daquele ano, a Organização Mundial da Saúde parou de incluir o chamado “transtorno de identidade sexual” ou “transtorno de identidade de gênero” na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID).
“A nossa saúde mental também é perpassada quando profissionais de saúde não validam os saberes produzidos sobre os nossos corpos e nos patologizam ou nos invisibilizam. Quando eu chego lá com uma demanda de hormonização e olham pra mim e falam: não sei, aponta Fernandes.
As especialistas ouvidas pela reportagem, em sua maioria transexuais, alertam para a necessidade de interação entre os movimentos sociais e o poder público no sentido de qualificar o atendimento, trabalhar questões de prevenção e melhorar as notificações sobre as violências sofridas pelo público LGBTQIA+.
O Ministério da Saúde foi procurado para comentar os problemas de notificação e encaminhamento de mulheres trans e travestis após atendimento por autolesões, mas não retornou até o fechamento desta reportagem. O espaço fica aberto para incluir o posicionamento da pasta.
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Atua com jornalismo investigativo orientado por dados e sob a perspectiva dos direitos humanos. Formada desde 2008 pela Univali, colaborou para o Epoch Times, no Canadá, e atuou como repórter nos principais jornais do Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Seus trabalhos mais recentes foram para a Folha de S.Paulo, Abraji, Agência Lupa, O Joio e O Trigo, The Intercept Brasil e Portal Catarinas. Recebeu como reconhecimento os prêmios ABCR de Jornalismo, Unimed e RBS. Em 2022, concluiu especialização em Jornalismo de Dados, Automação e Data Storytelling pelo Insper.
Olindense que adotou o Rio para viver. Integra a Gênero e Número a partir de 2023. Atua como pesquisadora e analista de dados com foco em gênero, saúde e direitos reprodutivos, fecundidade, educação e violência. Já colaborou com o Ipea como assistente de pesquisa e analista de dados, e foi assessora de comunicação na SMS/Camaragibe. Doutoranda em Demografia no Cedeplar (UFMG), mestre em População, Território e Estatísticas Públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas (ENCE/IBGE), especialista em Programas e Projetos Sociais (UNICAP) e Jornalista pela UFPE, atualmente, é graduanda em Estatística também na ENCE.
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